sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Trabalho sobre ação de improbidade - APD V

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA nnnn VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO DISTRITO FEDERAL

(sacrifiquei a estética em homenagem ao meio ambiente)





Processo nº aaaaaaaaaaa





Banco ... XXXX, ZZZZ e YYYY, devidamente qualificados nos autos do processo em referência, por seus advogados (instrumentos de mandato já acostados aos autos), que recebem intimações no endereço infra-impresso, vêm, respeitosamente, apresentar, no prazo legal,

CONTESTAÇÃO

aos termos da ação de improbidade cumulada com ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal perante esse egrégio Juízo, fazendo-o com amparo nos fatos e fundamentos a seguir alinhados.


I. DA AÇÃO PROPOSTA

2. Invocando os arts. 127 e 129, III, da Constituição Federal, e dispositivos da legislação infraconstitucional, o Ministério Público Federal promove ação de improbidade cumulada com ação civil pública tendo por objeto:

(i) a aplicação, a dez réus (entre os quais os Defendentes), “das sanções impostas pela Lei de improbidade”, porquanto suas ações e omissões, ao ver do MP, “subsumem-se às vedações dessa lei”; e

(ii) a obtenção de ressarcimento dos danos que teriam sido “causados indevidamente aos acionistas dos fundos de investimento de renda fixa por esses atos ímprobos”, aplicando-se também para essa última finalidade os dispositivos da Lei de Mercado de Capitais e do Código do Consumidor.

3. Conforme as suas participações, os Réus podem ser assim agrupados:

(a) Diretores do Banco Central do Brasil
1. xxxxxi
2. bbbbbi

(b) Presidente da Comissão de Valores Mobiliários
3. cccccc

(c) Diretores do Banco xxxx
4. zzzzz
5. yyyyy
6. wwww

(d) 7.Banco xxxxx
(e) 8. Banco Central do Brasil
[1]

(f) 9. Comissão de Valores Mobiliários

(g) 10. União.

II. DO RESUMO DOS FATOS, COMO NARRADOS PELO AUTOR, E DOS PEDIDOS

4. O Ministério Público Federal, à luz de noticiário da imprensa sobre queda dos rendimentos dos fundos de investimentos de renda fixa, ocorrida a partir de maio de 2002, instaurou inquérito civil público para apurar responsabilidades, colhendo informações do Banco Central do Brasil (BACEN) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

5. Segundo ele, das respostas obtidas, teriam restado evidenciadas distorções na contabilização dos fundos de investimento, causadas pelo descumprimento das normas referentes à “marcação a mercado” impostas por aquelas autarquias, distorções que acabaram por resultar em prejuízo para os investidores.

6. Com referência aos Defendentes, afirma o MP:

“zzzzz, Presidente do Banco, deverá responder em conjunto com os diretores da área, porque no exercício de suas atribuições de supervisão e controle das atividades de área do Banco teve participação no desenvolvimento e acompanhamento dos atos dos administradores dos fundos de investimento de renda fixa aqui tratados, praticados sem a observância de normas legais e regulamentares de marcação a mercado... e com repasse de indevidos prejuízos aos cotistas de boa fé, quando do ajuste previsto na Circular CVM nº 365/02 (sic), tudo isso configurado como atos de má gestão bancária. É beneficiário da omissão da fiscalização/supervisão das autoridades responsáveis do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários, a eles são aplicados os arts. 3º e 5º da Lei nº 8.429/92.

Yyyy e wwww diretores executivos do Banco zzzz, são responsáveis pela gestão dos fundos de investimento, registros contábeis, controle interno, sendo o último responsável pela prestação de informações relativas a essas carteiras. Nessa condição, são responsáveis pela prática de inúmeras operações financeiras realizadas sem a observância de normas legais e regulamentares quanto à marcação a mercado dos ativos integrantes das carteiras dos fundos de renda fixa.... e, ainda, ao fazê-lo, dando cumprimento ao disposto na Circular CVM nº 365/02 efetuaram repasse de prejuízos indevidos decorrentes de seus atos de má gestão, aos cotistas de boa fé dos fundos de investimento, razão porque sendo beneficiários da omissão da fiscalização/supervisão das autoridades responsáveis do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários, a eles são aplicados os arts. 3º e 5º da Lei nº 8.429/92. ” (fls. 66/67)

7. Ainda no que respeita aos Defendentes, pediu o MP ao final de sua peça:

5) seja julgado procedente o pedido da ação ora proposta, confirmando-se a tutela antecipada
[2] que ora se requer, para condenar às obrigações de fazer e não fazer supramencionadas;

6) a condenação dos réus nas sanções previstas no artigo 12 da Lei nº 8429, bem como o ressarcimento do prejuízo, por danos materiais e morais, estes últimos arbitrados por V. Exa.(...)


III. DO CONTEÚDO DESTA CONTESTAÇÃO

8. A presente contestação objetiva fornecer subsídios para que esse douto Juízo possa extinguir o processo sem resolução de mérito ou dar pela improcedência da ação (rectius, do pedido). Para tanto, os Defendentes reiterarão, parcialmente, as preliminares suscitadas e toda a matéria de mérito, dado que V. Exa. entendeu não ser possível o seu exame ao ensejo da deliberação de que cuida o art. 17, § 8º, da Lei 8.428, de 1992.

9. No que respeita ao aspecto processual, será demonstrado que:

(i) a cumulação de ações pretendida pelo MP é inviável porque, tratando-se de litisconsórcio facultativo, há necessidade de o Juiz ser competente para as duas ações, o que não se verifica no presente caso
[3];

(ii) a inicial da ação civil pública mostra-se em desacordo com a lei de regência (e, nesse ponto, inepta), naquilo que pretende a condenação dos réus às específicas obrigações de fazer ali requeridas;

(iii) há ilegitimidade genérica do MP para postular reparação de danos em relação que não se caracteriza como de consumo, e há ilegitimidade específica do MP Federal para a propositura de ação cujo julgamento não se acha contido no campo de competência da Justiça Federal; há, ainda, ilegitimidade do MP para postular reparação de dano moral de terceiro, à revelia deste.

10. Mesmo que assim não fosse, e admitindo – sem nada conceder – pudesse prosseguir o presente feito, a substituição processual pretendida pelo MP encontra obstáculo processual na ausência de vulnerabilidade de parcela significativa dos pretensos atingidos pelas supostas perdas, universo compreendido pelas pessoas jurídicas, em regra (como gênero) e pelas pessoas físicas e jurídicas classificadas (havidas normativamente) como investidores qualificados, assim considerados aqueles que ostentam conhecimentos e recursos em níveis (fixados em norma) que os excluem do conjunto dos investidores comuns.

11. Reconhecido que a ação reúna condições de ser examinada em seu mérito – o que se admite apenas para efeito de argumentação –, sua improcedência se revela manifesta, já que, tendo a conduta do gestor dos fundos se pautado pela estrita observância das normas emanadas dos órgãos de supervisão competentes, não há relação de causa e efeito entre o comportamento do gestor e o alegado prejuízo dos investidores, realidade facilmente aferível na análise da estrutura e da natureza jurídicas das relações existentes entre os detentores de cotas de fundos de investimento e a instituição que se encarrega da administração dos ativos a eles correspondentes, que podem ser assim resumidas:

(i) a natureza jurídica dos fundos de investimento e das relações por eles mantidas com as instituições financeiras encarregadas da administração dos correspondentes patrimônios não permite atribuir à instituição administradora e aos seus diretores responsabilidade pela oscilação do valor das cotas (fração ideal mínima, atribuível ao investidor, do patrimônio do fundo de investimento);

(ii) não existe parâmetro que se possa considerar preciso para apuração do valor das cotas, tendo em vista que, tecnicamente, os valores dos ativos – exceto na hipótese de realização – representam meras estimativa de fluxos de caixa futuros, encerrando, os correspondentes lançamentos contábeis, por isso mesmo, perspectivas de ganhos e de perdas financeiras que podem não se realizar;

(iii) em situações ordinárias, os critérios de apuração do valor dos ativos pelo fluxo de caixa descontado (a denominada precificação na “curva do papel”) ou pelo preço estimado de realização (a chamada “marcação a mercado”) são convergentes, não resultando em diferenças significativas de valores;

(iv) o Banco zzzz sempre obedeceu as regras impostas para apuração e contabilização dos valores dos ativos dos fundos por ele administrados, não se identificando nexo de causalidade entre suas condutas e eventuais prejuízos que possam ter sofrido detentores de cotas de fundos de investimento se a efetiva realização de ativos, por decorrência de saque por eles ordenado, se mostrou prejudicial aos seus interesses.

Para esse fim será demonstrado, analiticamente que:

(i) até a edição da Circular nº 3.086, de 15 de fevereiro de 2002, do Banco Central do Brasil, vigoravam, quanto à avaliação do patrimônio líquido e do valor das cotas dos fundos de investimento, as regras estabelecidas pela Circular nº 1.922, de 1991, que instituiu, no âmbito do COSIF, normas contábeis para os fundos de investimento;

(ii) segundo as regras do COSIF, o patrimônio líquido dos fundos deveria ser apurado diariamente e expressar a real situação patrimonial das respectivas carteiras. O COSIF não fixou qualquer critério para apuração do valor dos ativos, exceto no caso de ações que tivessem sido negociadas em bolsas de valores;

(iii) na vigência das regras do COSIF, os títulos de renda fixa deveriam ser indistintamente registrados pelo valor efetivamente pago e atualizados diariamente, reconhecendo-se os eventuais ágios ou deságios dos títulos em razão da fluência do prazo de vencimento dos papéis;

(iv) nas resoluções adotadas pelo Conselho Monetário Nacional até o momento da edição da Circular nº 3.086, de 2002, embora fizessem referência à obrigatoriedade da adoção de critério de avaliação dos ativos integrantes da carteira do fundo pelo seu valor de mercado, jamais estabeleceram critério único, específico, para o exercício de tal procedimento, o que somente veio a correr com a edição da Circular nº 3.086, de 2002, que, assumindo o fato de estar instituindo regime de avaliação de ativos não disciplinado nas normas do COSIF, reconheceu a necessidade e estabeleceu prazo para a realização dos ajustes necessários, fixando-o para o dia 30 de junho de 2002;

(v) o prazo inicialmente estabelecido pela Circular nº 3.086, de 2002, foi depois prorrogado pela Circular nº 3.096, de 6 de março de 2002, também do Banco Central do Brasil, para 30 de setembro de 2002;

(vi) no curso do tempo concedido para as necessárias adaptações, o prazo foi antecipado pela Instrução CVM nº 365, de 29 de maio de 2002, para o dia 31 de maio de 2002;

(vii) a partir da Circular nº 3.086, de 2002, estabeleceu-se tratamento distinto para os ativos destinados a negociação (títulos e valores mobiliários adquiridos com o propósito de serem ativa e freqüentemente negociados) e para os ativos a serem mantidos até o vencimento (títulos e valores mobiliários adquiridos com o propósito de serem mantidos em carteira até o vencimento);

(viii) as próprias normas adotadas pelo Banco Central do Brasil e pela Comissão de Valores Mobiliários reconhecem as dificuldades técnicas para a exata apuração do valor dos ativos integrantes das carteiras dos fundos, dificuldades essas resultantes do acentuado lapso de tempo para divulgação, pelo SELIC, dos negócios realizados, assim como do fato de o principal parâmetro de mercado – a taxa ANDIMA – referir-se sobretudo a expectativas dos agentes econômicos;

(ix) somente em situações atípicas de mercado, marcadas por sentimentos de insegurança ou de expectativas pessimistas quanto à evolução do quadro econômico, é que se justifica reconhecer o eventual descasamento entre o valor dos ativos evoluído por critérios exclusivamente financeiros e aquele que resulta das percepções, de cada momento, dos agentes econômicos;

(x) o reconhecimento imediato dos deságios das LTFs (principal ativo dos fundos), tal como determinado pela CVM, acabou por afetar o valor contábil das cotas dos investidores e conseqüentemente a rentabilidade do mês de maio de 2002, refletindo o desempenho das LFTs naquele período.


IV. DAS PRELIMINARES
IV.1 CONSIDERAÇÕES PREAMBULARES - CUMULAÇÕES

12. O que se tem no presente processo, e que o torna aparentemente complexo, é o fato de o Autor ter provocado distintas espécies de cumulação, não inteiramente adequadas à ortodoxia do Direito Brasileiro, e que consistem em:

(i) cumulação de ações, buscando exercer distintas pretensões de direito material; e

(ii) cumulação de sujeitos, provocando litisconsórcio passivo de dez réus.

13. Cumpre decompor essas cumulações e demonstrar que por seu intermédio se está a combinar pretensões incompatíveis. A rigor, a situação é, também, de incompatibilidade de procedimentos, mas os Defendentes se escusam de insistir no ponto.


IV.2 INVIABILIDADE DA CUMULAÇÃO DE QUE CUIDA A INICIAL: Incompetência da Justiça Federal para julgar a Ação Civil Pública

14. A teor do disposto no artigo 292, § 1º, II, do CPC, para que possa ocorrer cumulação de pedidos é necessário que, para conhecer de todos eles, seja competente o mesmo juízo; e isso não ocorre no caso concreto.

15. Com efeito, como já destacado no preâmbulo desta contestação, a ação é proposta contra dez réus, compreendendo diretores do BACEN, Presidente da CVM, diretores do Banco zzzz, Banco zzzz, BACEN, CVM e União. Para fins de compreensão da linha de argumentação que se passa a desenvolver, cabe dividi-los em apenas dois grupos: (a) o dos servidores públicos, dirigentes das duas autarquias; e (b) o do Banco zzzz e seus diretores.

16. Pois bem, a cada um desses grupos é atribuída a prática de atos, ora absolutamente independentes uns dos outros, ora com pontos de interseção, sendo certo, porém, que cada grupo é acusado de ser agente de certa quantidade de atos em que o outro grupo não tem participação. Apenas à guisa de exemplo, aos co-réus aaaaa, bbbbb e ccccc (incluídos no primeiro grupo) é atribuída omissão no dever de fiscalizar os fundos e a falta consistente no não-atendimento da recomendação do Ministério Público Federal para que instassem esses fundos a ressarcir os supostos prejuízos causados aos investidores. Daí o exercício, contra eles, da pretensão de reparação de danos morais e materiais que teriam sido causados ao erário.

17. Diversamente, aos co-réus xxxx, yyyy e wwww (incluídos no segundo grupo) são atribuídos atos de má-gestão bancária, consistentes na prática de operações financeiras sem a observância de normas legais e regulamentares, causadores de prejuízos aos cotistas dos fundos. Daí a pretensão de reparação desses alegados danos. A questão é que tudo se encontra na inicial como se constituísse um mesmo e único conjunto de fatos, correspondentes a uma única causa petendi, a ensejar pedido de condenação em litisconsórcio passivo.

18. Nada esconde o fato, no entanto, de que a rigor o Ministério Público Federal está a promover duas ações distintas, contra distintos grupos de réus, com diferentes pretensões de direito material:

(i) uma ação de improbidade administrativa, que tem como causa de pedir conduta alegadamente omissiva dos servidores públicos indicados no primeiro grupo de réus, e que busca sua condenação ao ressarcimento de supostos danos materiais e morais causados ao erário, conforme pedido lançado na seção XV, nº 6 da petição inicial (fls. 81 dos autos); e

(ii) uma ação civil pública, que tem como causa de pedir supostos atos de má-gestão bancária praticados pelos réus indicados no segundo grupo, alegadamente causadores de prejuízos aos cotistas dos fundos, e que busca sua condenação à reparação dessas alegadas perdas e danos (fls. 79 dos autos).

19. Ora, se se trata de duas ações distintas contra distintos réus, por que o MP provocou essa cumulação?

20. É fácil pôr a descoberto o estratagema contido na inicial: o MPF pretende, partindo da competência da Justiça Federal para julgamento da ação de improbidade contra servidores federais, estender essa competência ao julgamento da ação civil pública, por meio da formação de um litisconsórcio passivo, como forma de obviar a sua evidente ilegitimidade ativa para propositura de ação civil pública.
[4]

21. A pretensão é, todavia, incabível, dado que as regras processuais de formação do litisconsórcio não autorizam a conseqüência pretendida pelo Autor.

22. Não se desconhece, em sede de doutrina e jurisprudência, a existência da vis atractiva da competência da Justiça Federal, na hipótese de existência de litisconsórcio necessário. Em outras palavras, se ocorrer esse tipo de litisconsórcio, estende-se a competência da Justiça Federal (in casu, ratione personae) a legitimados passivos ordinariamente subordinados à Justiça dos Estados.

23. Bem de ver, entretanto, que o processo civil brasileiro só concebe o litisconsórcio necessário quando (i) a lei expressamente o impõe, ou (ii) a natureza da relação jurídica o exige, sendo certo que nenhuma das duas hipóteses está presente na espécie dos autos.

24. É que não existe, no Direito brasileiro, lei alguma que imponha a formação de litisconsórcio na presença da situação descrita nos autos. Se assim é, então não ocorre a hipótese prevista em “i”. Da mesma maneira, a natureza da relação jurídica deduzida na petição inicial não é daquelas que exijam, mercê da necessidade de uma decisão unitária indispensável, de natureza constitutiva, a participação de todos os réus no pólo passivo da relação processual, até porque as pretensões exercidas no presente processo não são de natureza constitutiva e sim condenatória. E porque assim é, também não ocorre a hipótese prevista em “ii”.

25. Na situação descrita na inicial, o máximo que se poderia admitir em termos de litisconsórcio seria a ocorrência da hipótese descrita no art. 46, IV, do CPC, que recita:

“Art. 46. Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando:
......................
IV- Ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato e de direito.”

26. Esse litisconsórcio, contudo, que é facultativo e não obrigatório, somente é admissível nas hipóteses em que o juiz já é absolutamente competente para todas as ações. Nesse sentido, o magistério de Celso Agrícola Barbi:

“Casos do item IV e questão de competÊncia – É conveniente observar que a afinidade por um ponto comum de fato ou de direito não dá lugar a conexão, tal como ela é definida no art. 130. Em conseqüência, o litisconsórcio nesse caso só poderá ser formado se as ações forem de competência do mesmo Juiz”.(sublinhado e negrito não são do original)
[5]

27. Pontes de Miranda também acentua:

“Se há afinidade de questão jurídica ou de fato, o litisconsórcio é chamado facultativo impróprio. Tem de estabelecer-se por acordo expresso ou tácito dos litigantes. É um litisconsórcio convencional sem que se pré-exclua a possibilidade de se começar o processo somente por uma parte, ou por mais litisconsortes, a que os outros se juntem por adesão, segundo os princípios da declaração unilateral de vontade aplicáveis ao chamamento explícito ou implícito do proponente ou dos proponentes em ação. Observe-se que esse litisconsórcio, à diferença dos demais, não traz determinação de competência. É preciso que a competência do Juízo exista por si mesma, para a cumulação subjetiva.” (sublinhado daqui)
[6]

28. Da lição da doutrina decorre que, mesmo que se admita, para efeito de argumentação, que a situação de que cogitam os autos é subsumível na hipótese prevista no art. 46, IV, do CPC, daí não resulta a competência da Justiça Federal para julgamento da ação civil pública. Ao revés, somente se competente o mesmo órgão jurisdicional para ambas as ações é que se admitirá o cúmulo subjetivo.

29. Assim, sendo certo que a competência para julgamento da ação de improbidade não exerce, por si só, qualquer espécie de vis atractiva em relação à ação civil pública — dado que os alegados atos omissivos imputados aos servidores públicos são de sua exclusiva responsabilidade e não se confundem com os supostos atos comissivos atribuídos aos demais réus, gestores de fundos de natureza privada —, o que cabe aos Defendentes é demonstrar que o rol de competências do art. 109 da Constituição
[7] não abarca a ação civil pública proposta contra os administradores dos fundos.

30. A simples leitura do precitado art. 109, inextensível por lei ou pela vontade das partes, deixa evidenciado que nenhum de seus incisos alberga a pretensão do MPF de estender essa competência à Justiça Federal.

31. É bem verdade que a petição inicial tenta superar esse óbice afirmando que a simples presença do Ministério Público Federal fixa a competência da Justiça Federal e que o que se tem de identificar é se a pretensão deduzida está entre as atribuições conferidas ao MPF.

32. Com a devida vênia, não é o que diz a lei de regência do Ministério Público Federal (Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União), cujo art. 37 recita expressamente:

“Art. 37. O Ministério Público Federal exercerá as suas funções:
I – nas causas de competência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais e dos Juízes Federais, e dos Tribunais e Juízes Eleitorais;
II – nas causas de competência de quaisquer juízes e tribunais, para defesa dos direitos e interesses dos índios e das populações indígenas, do meio ambiente, de bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;”

33. A leitura do texto legal deixa evidente que há dois critérios que regulam a atribuição do Ministério Público Federal para atuar em determinado feito:

(i) o de que cogita o inciso I, que faz defluir a legitimidade do Ministério Público Federal diretamente da competência da Justiça Federal e Eleitoral, e das instâncias de superposição da Justiça Federal; e

(ii) o especificado no inciso II, que combina atribuições ratione personae (interesses dos índios e das populações indígenas) com atribuições ratione materiae (defesa do meio ambiente, de bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico).

34. Ora, a lei é clara. Só teria atribuições o Ministério Público Federal para propor a presente demanda se (i) competente a Justiça Federal, de acordo com as regras de competência fixadas no art. 109 da Carta Política; ou (ii) o tema em discussão – interesses de cotistas de fundos de investimento – coubesse num dos conceitos, retroenunciados, relativos à atribuição ratione materiae.

35. Desse modo, não presente qualquer das hipóteses descritas no art. 109 da Constituição, a conclusão que se impõe é a de que a competência para apreciar demandas desse jaez é da Justiça Estadual. A questão, portanto, não é, como colocado por V. Exa. na decisão que admitiu o processamento das ações, relativa à negação do direito de acesso ao Poder Judiciário para exame de conflito de interesses. Com a vênia habitual, o problema se resolve singelamente pelas regras de competência e pelas regras de divisão de atribuições dentre os diversos setores do Ministério Público Federal e Estadual. O que não se pode permitir é a junção dessas duas pretensões, contra diferentes grupos de réus, em clara violação às regras processuais de formação do litisconsórcio e às de outorga de competência (constitucional) que, comezinho em Direito, são regras de interpretação estrita.

36. Assim, manifesta a incompetência absoluta da Justiça Federal para o julgamento de uma delas – a ação civil pública –, impõe-se seu pronto indeferimento e a conseqüente extinção da demanda, prosseguindo o processo apenas relativamente à ação de improbidade administrativa. É o que, com o devido respeito, desde logo requerem os Defendentes.


IV.3 DA INÉPCIA DA INICIAL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA

37. Se de outras máculas não padecesse a petição inicial como um todo, revelar-se-ia mais do que evidente a inépcia da inicial da ação civil pública, a determinar o seu indeferimento na forma do disposto no art. 295 do Código de Processo Civil, com a conseqüente extinção do processo sem resolução de mérito.

38. Convém, para pôr de manifesto o que se argúi, transcrever o pedido formulado na ação civil pública.

5) seja julgado procedente o pedido da ação ora proposta, confirmando-se a tutela antecipada que ora se requer, para condenar às obrigações de fazer e não fazer supramencionadas;

39. As obrigações de fazer e não fazer (a cuja condenação se pede) são assim especificadas:

“1) a concessão da tutela antecipada na forma pleiteada, determinando:

1.a) ao Banco Zzzz, na pessoa de seus respectivos presidente e demais diretores, obrigação de fazer, consistente em providenciar a reparação das perdas indevidas imputadas ao patrimônio dos fundos de investimento em face do descumprimento das normas legais e regulamentares pertinentes, notadamente quanto à inobservância dos critérios de avaliação dos títulos de renda fixa a valor de mercado e que se refletiram principalmente nos saldos de investimentos apurados pelo valor das cotas divulgadas nos primeiros 5 dias úteis seguintes à edição da Instrução Normativa nº 365, de 29 de maio de 2002, remetendo a esse juízo relação com informações detalhadas sobre os ajustes realizados nas carteiras desses fundos, com a indicação dos efeitos financeiros no valor das cotas, reportando a cada investidor, individualmente, o percentual do ajuste e o valor a ser ressarcido. Para efeito de cálculo, o valor de mercado deve ser considerado como o valor médio diário das transações registrado no SELIC em confronto com os valores registrados na contabilidade dos fundos.

40. Destaca-se, da transcrição, o pedido da condenação da obrigação de fazer: reparação das “perdas indevidas”, a que se soma a remessa de relação com informações detalhadas “sobre os ajustes realizados nas carteiras desses fundos, com a indicação dos efeitos financeiros no valor das cotas, reportando a cada investidor, individualmente, o percentual do ajuste e o valor a ser ressarcido”.

41. O interesse de agir das partes, que constitui condição da ação, consiste na necessidade/utilidade e adequação do provimento jurisdicional vindicado e de acordo com a via eleita. Ora, por meio da ação civil pública, regida pela Lei nº 7.347/85, cabe ao parquet apenas e tão-somente formular pedido genérico de condenação, ao contrário do que foi formulado na inicial, que já pretende, com todas as especificações, a imediata execução, sem intervalo, do julgado.

42. Da mesma maneira, a legitimidade conferida pela Lei n° 7.913, de 7 de dezembro de 1989, ao Ministério Público, para propor ação civil pública visando ao ressarcimento de danos que titulares de valores mobiliários e investidores do mercado tenham sofrido, permite-lhe apenas formular pedido condenatório genérico. Caberia a cada investidor, posteriormente, se julgado procedente o pedido, promover a liquidação e execução da sentença, nos limites de seu prejuízo, que – é importante consignar –, se existente, não corresponde direta e simplesmente ao questionado ajuste do valor das cotas, por decorrência da reapreciação do valor dos títulos públicos mediante a denominada “marcação a mercado” (já que esse traduz mero indicador de natureza contábil), mas à diferença entre o valor de mercado da cota e o que foi adotado no momento da aquisição ou do resgate realizado pelo investidor. Exatamente por isso, se for o caso, caberá a cada investidor, no momento próprio, demonstrar a ocorrência de circunstância que caracterize o prejuízo e justifique o recebimento de indenização.

43. Nem por outro motivo, ao examinar a competência do Ministério Público na defesa de direitos individuais homogêneos, o professor e hoje Ministro do Superior Tribunal de Justiça Teori Albino Zavascki
[8] tece os seguintes comentários sobre a Lei n° 7.913, de 7 de dezembro de 1989, em especial, acerca da sentença condenatória proferida em Ação Civil Pública:

“Detalhe importante: as importâncias da condenação “reverterão aos investidores lesados, na proporção de seu prejuízo” (art. 2°), mas caberá a cada investidor, individualmente, habilitar-se para recebimento do quinhão que lhe couber (art. 2°, § 1°). A atuação do Ministério Público será, portanto, na condição de substituto processual do conjunto dos investidores e, embora isso não conste de modo expresso na lei, a sentença condenatória terá, aqui também, caráter genérico e impessoal.”(destaques daqui)

44. No mesmo sentido é o entendimento da jurisprudência, como se pode depreender da ementa do acórdão proferido pela egrégia Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da Quarta Região, nos autos da apelação cível n° 200488, julgada em 24 de maio de 2000:

“PROCESSUAL CIVIL. FGTS. EXTINÇÃO DO FEITO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INEXISTÊNCIA DE LITISPENDÊNCIA COM AÇÕES INDIVIDUAIS. 1. O direito individual subjetivo de ação, assegurado pela Carta Magna, não pode ter impedido o seu exercício, pelo fato de existir uma ação civil pública - como a distribuída à 29ª VF-RJ - através da qual foi concedido reajuste de acordo com os índices inflacionários expurgados, a todos os optantes pelo FGTS no Estado do Rio de Janeiro, sobre os saldos de suas contas fundiárias, a qual o MM. Juiz a quo tomou por base para expressar o seu convencimento. Acesso ao judiciário, garantido em sede constitucional, que permite o ajuizamento e trâmite de ação individual, ainda que com o mesmo objeto da ação civil pública. 2. O direito subjetivo de ação sobrepõe-se às iniciativas de ações coletivas, dado que estas produzem uma sentença de caráter genérico - "provimento jurisdicional intermediário entre a absoluta abstração da norma e a concretude da sentença proferida em demanda individual", consubstanciando, assim, a validade da atuação do Ministério Público apenas para a fase de cognição, ficando afastada, no entanto, a legitimidade do parquet para propor a liquidação e a execução daquela sentença genérica proferida na ação coletiva (STJ, RESP Nº 129.039/SC). 3. A jurisprudência tem admitido que a apreciação do meritum causae em hipóteses análogas à presente, seja feita pelo juiz através de vários meios (conf. RESP Nº 127.468-RS, REL. MIN. PEÇANHA MARTINS,DJ DE 19.12.97, pg. 67.473).
Omissis”

45. Deflui daí, claramente, a incompatibilidade entre a via eleita e o pedido formulado, sendo inútil o resultado postulado pelo Autor, que não será o beneficiário do ressarcimento. Cristalina, então, é a falta de interesse de agir do Ministério Público na ação civil pública de que aqui se cuida, motivo por que deve ser declarada a inépcia da inicial e, também por essa razão, extinto o processo sem resolução de mérito, nos termos do inciso VI do art. 267 do Código de Processo Civil.


IV.4 DA ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO

46. Este capítulo pretende demonstrar, sob diferentes ângulos, a falta de legitimidade do Ministério Público, de uma maneira geral, e do Ministério Público Federal, em particular, para as ações aqui discutidas. Também abordará os limites em que, se admitida, é viável a substituição processual pelo MP, e a impossibilidade de o MP postular danos morais de terceiro, à revelia deste.

47. O primeiro passo nesse iter é a demonstração de que, no caso, não se faz presente relação de consumo, elemento vital, na espécie, para a legitimação genérica do MP.


IV.4.1 DA ILEGITIMIDADE GENÉRICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO, PELA NÃO-CARACTERIZAÇÃO DE RELAÇÃO DE CONSUMO.

48. As atribuições do Ministério Público são fixadas na Constituição, que, em seu art. 127, dispõe que cabe a ele “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

49. É, entretanto, o art. 129 da Carta Básica que dá as balizas dessas atribuições, em termos de legitimatio ad causam:

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público.
I - promover a ação penal pública;
(...)
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta constituição;
V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;
(...)
IX- exercer outras funções que lhe forem conferidas, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

50. Essas atribuições, ao tempo em que traduzem reserva de competência estabelecida constitucionalmente, também configuram, por outro lado, limites de legitimação que o Ministério Público não pode ignorar (muito menos ultrapassar) em suas iniciativas judiciais. Representam, por isso, intransponíveis óbices à sua legitimidade para a propositura das ações civis públicas cogitadas pelas Leis nºs 7.347/85 e 7.913/89.

51. Na esteira da lição de Carlos Maximiliano, repetida por toda a doutrina que lhe é posterior, “competência não se presume”. Por isso, em sede de atribuições e competências, formula-se a indagação: por que o agente do Estado pode?

52. Nesse sentido, o magistério de Adilson Abreu Dallari, referenciado especificamente ao Ministério Público:

“Competente não é quem quer, mas, sim, quem pode, quem recebeu da ordem jurídica poderes para praticar determinados atos. Não existe competência fora da lei, a começar da Lei Maior, a Constituição Federal ...
(...) significando, também, que não lhe compete substituir-se ao cidadão, defendendo interesses individuais disponíveis. Obviamente não pode o legislador ordinário alterar, nem para mais, nem para menos, competência fixada e limitada pela Constituição”
[9]

53. Ora, apresenta-se o MP como legitimado para intentar esta ação civil porque estaria, teoricamente, agindo na defesa dos direitos da coletividade dos consumidores lesados (arts. 81 e 82 da Lei nº 8.078, Código de Defesa do Consumidor), única hipótese em que, segundo certo entendimento jurisprudencial, cabe sua atuação para defesa de direitos individuais disponíveis, dado que a regra constitucional somente cogita da legitimidade do MP para a defesa de interesses difusos e coletivos.

54. A questão é que pretender assimilar a relação de direito material descrita nos autos — em que se busca a defesa de direitos de detentores de cotas de fundos de investimento — a uma relação de consumo albergável na regência do CDC, por força do disposto no § 2º do art. 3º daquela lei, é incidir em contradição essencial.

55. Não há nada mais em antagonismo com o conceito de consumo do que o de investimento. Como de conhecimento convencional, investem-se justamente os recursos que não foram destinados à aquisição de bens de consumo. Assim, mesmo admitindo, por hipótese, que contratos bancários, genericamente considerados, possam situar-se sob o pálio do Código de Defesa do Consumidor, parece claro que, in casu, as várias relações jurídicas que se travam entre as partes — fundos de investimento estabelecidos em condomínio, administradores dos fundos e titulares das cotas — podem ser tudo, menos uma relação de consumo.

56. Deveras, o Banco Zzzz S. A., na qualidade de administrador de fundos de investimento, nada tem que ver com as demais atividades que realiza e para as quais recebeu autorização específica do Banco Central do Brasil.

56.1 Com efeito, por determinação do Conselho Monetário Nacional (Resoluções 2.451/1997 e 2.486/1998), as instituições financeiras são obrigadas a promover a segregação da administração de recursos de terceiros das demais atividades da instituição. Dito de outra maneira, a atividade de administração dos fundos de investimento é atividade especialíssima que não se confunde com quaisquer outras exercidas pelo Defendente – Banco Zzzz. Assim sendo, não se pode concluir, como faz o Autor, que todo e qualquer serviço bancário seja enquadrado na legislação especial do consumidor.

56.2 Essa questão é fundamental, pois o que se discute nesta ação é a alegada má-administração pelo Réu, Banco zzzz, dos seus fundos de investimento de renda fixa, que não teria seguido o critério de avaliação contábil dos ativos deste fundo tal como determinado pelo Banco Central do Brasil.

56.3 Sem embargo de ser essa a causa petendi, o Ministério Público pauta a sua legitimidade no Código de Proteção e Defesa do Consumidor como se a especialíssima atividade desempenhada pelo Réu (administração de fundos de investimento financeiro) se equiparasse às operações diárias e corriqueiras de uma instituição financeira.

56.4 Nada mais equivocado. Tanto é assim que para exercer a atividade de administração de um fundo de investimento financeiro a instituição financeira não pode prescindir de um registro especial junto ao Banco Central do Brasil, nos termos do artigo 6º, do regulamento anexo à Circular 2.616/1995.

56.5. Sobre ser a administração de fundos de investimento financeiro uma atividade segregada das demais atividades da instituição financeira, Eduardo Fortuna, em sua celebrada obra a respeito do mercado financeiro, ensina que: “Um dado importante é que, obrigatoriamente, deve existir dentro da instituição financeira, de forma bastante consolidada, o conceito do chamado chinese wall, que é a separação clara entre a administração dos recursos da tesouraria das instituições financeiras e a administração dos recursos de terceiros.”
[10]

56.6. Por isso mesmo, diante dessa realidade específica que circunda a atividade de administração dos fundos de investimento, José Geraldo Brito Filomeno, um dos membros da comissão elaboradora do CDC, enfatiza que, in verbis:

“E os investidores no mercado de valores mobiliários, serão eles considerados também consumidores com relação às instituições ou empresas que propiciam tal tipo de investimento?
A resposta é certamente negativa.
Tanto isso é verdade, que a Lei nº 7.913, de 7 de dezembro de 1989, previu ações especificas do ressarcimento a investidores, prevendo ainda a Lei n.º 6.024, de 13 de março de 1974, medidas acautelatórias quando se tratar de liquidação extrajudicial de instituição de crédito.”
[11]

56.7. No mesmo diapasão, quadra considerar que o condômino que adquire cotas de um fundo de investimento não pode ser considerado consumidor tal como tipificado pelo artigo 2º da Lei 8.078/90, quando por outro motivo não seja, em decorrência da própria definição legal que os normativos de regência emprestam à da matéria. Confira-se, por exemplo, o que dispõe a Circular BACEN 2.616/1995:

“Art. 1º. O fundo de investimento financeiro, constituído sob a forma de condomínio aberto, é uma comunhão de recursos destinados à aplicação em carteira diversificada de ativos financeiros e demais modalidades operacionais disponíveis no âmbito do mercado financeiro, observadas as limitações previstas neste Regulamento e na regulamentação em vigor.”

56.8 O fundo de investimento é, assim, por definição, um condomínio que tem por objetivo a “aplicação em carteira de títulos e valores mobiliários”, não havendo, pois, como amoldar o conceito de condômino ao de consumidor, de sorte a legitimar o Autor à propositura desta ação.

57. Impossível, dessa maneira, acolher no seio das relações de consumo a matéria discutida neste processo, não cabendo, em conseqüência, por essa via, cogitar de legitimidade do MP para propor a presente ação civil pública. É que, como já se disse, a atribuição do parquet para a defesa de direitos individuais homogêneos, mesmo para a corrente jurisprudencial que a admite, só se dá no âmbito da vigência da Lei nº 7.347/85, isto é, se presente uma relação de consumo. Ausente esse requisito, o consectário natural é a impossibilidade de substituição processual por parte do Ministério Público.

57.1 Em sede de jurisprudência, o entendimento retroexpendido encontra ressonância em acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que, enfrentando a questão da legitimidade do Ministério Público para ações desse jaez, deixou assentado que

EMENTA: CONTRATO BANCÁRIO – APLICAÇÃO EM FUNDO DE INVESTIMENTO – INVESTIMENTO FINANCEIRO DE RISCO – RELAÇÃO DE CONSUMO INEXISTENTE – INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. TRANSAÇÃO – ATO JURÍDICO PERFEITO – EFEITO DE COISA JULGADA – ARTIGO 1.030 DO CÓDIGO CIVIL.

Aplicam-se aos contratos bancários as normas do Código de Defesa do Consumidor, desde que o cliente adquira ou utilize o produto ou serviço como destinatário final. Inteligência dos artigos 2º e 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor.

Não se aplicam as disposições do Código de Defesa do Consumidor aos contratos bancários relativos a aplicações financeiras em fundos de investimento, ausente, nessa hipótese, o fornecimento de produto ou a prestação de serviços por parte da instituição financeira.

57.2 No julgamento em tela, o eminente relator, embora admitisse que, genericamente, o Código de Defesa do Consumidor fosse aplicável a contratos bancários, fez o necessário discrímen da situação relativa a aplicações em fundos de investimento, afirmando:

Todavia, no caso em julgamento, não há que se falar em relação de consumo, posto que o apelante não forneceu à apelada qualquer tipo de produto ou serviço.

Com efeito, o que ocorreu no caso dos autos foi que a apelada, na condição de correntista do apelante, investiu dinheiro então depositado em sua conta de poupança num fundo de investimento do apelante, com a expectativa de obter, por óbvio, lucro. Ao depois, não tendo a aplicação rendido o que dela esperava a apelada, as partes transacionaram a respeito, firmando o contrato de fl. 48.

Não forneceu o apelante à apelada, na hipótese em julgamento, qualquer produto ou serviço que pudesse levar a questão a ser enquadrada como relação de consumo. O que houve foi um investimento de risco, como o é qualquer aplicação em fundos de investimentos.

57.3 Impõe-se, assim, em consonância com o que já decidido pelo Judiciário, reconhecer que falta legitimidade ao Ministério Público para figurar no pólo ativo da presente demanda.


IV.4.2 Da ilegitimidade específica do Ministério Público Federal

58. Concedendo, para argumentar, que, genericamente, possa ser atribuída legitimidade ativa ad causam ao Ministério Público para a propositura de ação civil pública visando a obter a reparação de danos causados a investidores detentores de cotas de fundos de investimento, por força do disposto na Lei nº 7.913/89
[12], por certo que essa atribuição não é deferida ao Ministério Público Federal e sim ao Ministério Público dos Estados.

59. Com efeito, e como já restou demonstrado quando da argüição de preliminar de incompetência absoluta da Justiça Federal, o exercício da função do Ministério Público Federal somente se legitima como tal se a causa (i) couber na competência constitucional deferida ao STF, ao STJ, aos TRFs, aos Juízes Federais ou à Justiça Eleitoral; (ii) tiver pertinência com a defesa dos direitos e interesses dos índios e das populações indígenas; ou (iii) tiver por objeto a defesa do meio ambiente, de bens e direitos de valor artístico, estético, histórico turístico e paisagístico.

60. Ora, sendo certo que não se trata de hipóteses descritas em (ii) e (iii), e como a causa não se encontra na competência das instâncias de superposição, do TRF ou dos Tribunais e Juízes Eleitorais, e dado que o MPF aviou demanda perante a Justiça Federal de primeiro grau, deveria haver algum dispositivo no art. 109 da Constituição que viabilizasse a propositura da demanda perante essa Justiça Federal.

61. Não há, no entanto, como já demonstrado alhures, fragmento constitucional que admita a competência federal para essa demanda de investidores (substituídos processuais) contra o Banco Zzzz e seus administradores.

62. O já citado Professor Teori Albino Zavascki
[13] tem clara lição a respeito do assunto, demonstrando que, à falta de competência da Justiça Federal, ocorrerá, como consectário natural, ausência de legitimidade do MP Federal para propor a demanda. É esta a lição do mestre:

“Por ser assim, é evidente que a atuação do Ministério Público, a exemplo do que se passa no Poder Judiciário — que tem sua jurisdição limitada pelas regras de competência —, se dá em forma organizada e hierarquizada. Seus agentes exercem as funções sob determinadas regras e limites impostos pela estrutura do organismo. Não se poderia imaginar, com efeito, pudessem todos e cada qual dos agentes da instituição, legitimamente, falar em nome dela e assim comprometê-la, perante todo e qualquer órgão ou instância, ou em qualquer lugar, ou nos momentos que lhes aprouvessem.

(...)

É decorrência do caráter nacional da instituição e dos princípios constitucionais da unidade e indivisibilidade que regem a sua organização mediante repartição de atribuições. ... cada qual, portanto, com atribuições delimitadas. Seria inconcebível a atuação do Ministério Público sem tais delimitações. Os princípios da unidade e da indivisibilidade afastam a suposição de que o Ministério Público Federal possa atuar, indiscriminadamente, perante a Justiça do Trabalho ou a Militar ou a dos Estados. Da mesma forma e pelo mesmo motivo não se compadece com a estrutura da instituição afirmar-se legitimidade aos agentes do Ministério Público Estadual para atuar fora de sua comarca, ou fora de seu Estado ou fora da jurisdição local...
A ação civil pública será proposta, portanto, pelo Ministério Público da União, quando se tratar de causa de competência da Justiça Federal; e será proposta pelos Ministério Público dos Estados, quando for causa de jurisdição local.” (destaques daqui)

63. Requerem os Defendentes, por isso, i.e., ante a flagrante ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal, que V. Exa. indefira a inicial e extinga o processo sem resolução de mérito, como determina o art. 295, II, c/c o art. 267, VI, do Código de Processo Civil.

IV.5 DOS LIMITES À EVENTUAL SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL INTENTADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

64. Se não acolhidas as preliminares até aqui suscitadas – o que se admite apenas por epítrope –, caberá, então, fixar os contornos precisos dentro dos quais a substituição processual pretendida poderá ocorrer. De fato, há pelo menos uma circunstância limitadora dessa suposta legitimação do MP que pode ser apreciada em sede de preliminar: a relacionada ao requisito da vulnerabilidade dos substituídos, como passa a ser examinado a seguir.

65. O Ministério Público invoca como fonte de sua legitimação o fato de supostamente tratar-se de relação jurídica regida pelo Código de Defesa do Consumidor, afirmando, expressamente, em suas razões (fls. 73 dos autos) que:

“O art. 4º, I, do CDC estabelece como princípio o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.”

66. Ora, se a proteção jurídica do consumidor se assenta justamente no princípio – e pressuposto lógico – de sua vulnerabilidade, é necessário marcar os limites em que se admite a vulnerabilidade de um determinado sujeito, justamente porque, no caso concreto, uma situação que aparentemente figure hipótese de direitos individuais homogêneos pode, em verdade, possuir regências materiais substancialmente diversas, umas vinculadas ao direito comum e outras ao microssistema das relações consumeristas.

67. Com efeito, para que se possa caracterizar certa relação jurídica como de consumo – e, dentro desse universo, como albergável no regime de proteção especial previsto em lei –, há que atentar para o aspecto subjetivo, indiscutivelmente restrito, do conceito de consumidor, no sistema da lei. Consoante anota Reynaldo Andrade da Silveira
[14]:

“Dentre os diversos princípios que inspiram o CDC um merece especial atenção, qual seja, o do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, sem dúvida o mais importante de todos porquanto é dele que toda a estrutura legal se conforma.” (o destaque é do original)

68. De observar que a discussão a ser travada não tem pertinência com o conceito de hipossuficiência, cuja gradação é necessária para fins de inversão do ônus da prova, na forma do art. 6º do CDC. O que se quer discutir é se, na espécie dos autos, pode ser presumida a vulnerabilidade do investidor, para verificar se, in casu, a relação jurídica sob exame pode ser enquadrada como de consumo.

69. Como premissa necessária à discussão, é preciso fixar o entendimento de que, relativamente aos fundos de investimento, podem ser cotistas pessoas físicas e pessoas jurídicas, e tanto umas como outras podem ser dotadas ou não de conhecimentos e recursos que as capacitem ao domínio e compartilhamento, com os administradores, quando menos pela ciência, dos riscos próprios aos investimentos que escolhem para a satisfação dos seus interesses de investimento (ou especulação).

70. Em decorrência do regime estabelecido pela Instrução CVM nº 302, de 5 de maio de 1999, fica clara a distinção normativa existente, no universo dos agentes de mercado, entre investidores comuns e, no âmbito daqueles que detêm (ou podem deter) conhecimentos que os habilitem aos investimentos de risco, investidores qualificados, caracterizando-se esses últimos como as pessoas físicas ou jurídicas que ostentem uma das condições seguintes: (i) instituições financeiras, (ii) companhias seguradoras e sociedades de capitalização, (iii) entidades abertas e fechadas de previdência privada, (iv) pessoas jurídicas não financeiras com Patrimônio Líquido superior a cinco milhões de reais, (v) pessoas físicas com patrimônio superior a cinco milhões de reais, e (vi) investidores individuais que possuam carteiras de valores mobiliários e/ou cotas de fundos de investimento de valor superior a R$ 250.000,00.

71. Como sabido, são três as vulnerabilidades reconhecidas pela doutrina consumerista: a econômica, a técnica e a jurídica. Discorre, com percuciência, sobre esse tema, Héctor Valverde Santana
[15]:

“A vulnerabilidade técnica ocorre quando o consumidor não detém as informações quanto à forma de produção e utilização do bem, ou de execução do serviço. A falta de informações sobre o produto ou serviço coloca o consumidor em condição de dependência em relação ao fornecedor. Com efeito, o consumidor sujeita-se ao conhecimento especializado do fornecedor, sendo ponto intuitivo que aquele não interfere em qualquer parcela do ciclo de produção ou distribuição em massa, muito menos reúne conhecimento para aferir o tipo de tecnologia empregada nos bens destinados ao mercado de consumo.
A vulnerabilidade econômica apresenta-se pelo poderio econômico do fornecedor em relação ao consumidor. Aquele decide o preço do produto ou serviço, margem de lucro, conveniência quanto ao momento de colocação do produto ou serviço no mercado de consumo, sempre buscando a satisfação dos seus interesses econômicos, prescindindo de qualquer consulta ao consumidor. Estudos de marketing avaliam as necessidades dos consumidores, mas com o propósito evidente de atender aos interesses imediatos do fornecedor.
A vulnerabilidade jurídica está vinculada à questão do acesso à justiça. Revela-se pela dificuldade do consumidor em tutelar os seus direitos. Em regra, o consumidor não está familiarizado com os mecanismos administrativos ou judiciais de defesa dos seus direitos. Está sistematicamente em desvantagem em relação ao fornecedor, pois este tem mais disponibilidade de recursos financeiros e, em regra, pode contar com uma assessoria jurídica especializada para cuidar dos seus interesses e direitos”.

72. Ora, presentes essas lições e as condições de que dispõem os chamados investidores qualificados (e aqueles que com eles se assemelhem), a ninguém dotado do mínimo bom senso será dado presumir, em relação a eles, o pressuposto da vulnerabilidade que os colocaria na condição de consumidores, à luz do CDC.

73. Daí que os limites da substituição processual por parte do Ministério Público Federal, na espécie, estarão jungidos à demonstração, caso a caso, dessa vulnerabilidade. A presunção, todavia, deve ser a de que, com relação aos investidores qualificados (justamente pelo grau de capacitação técnica, patrimonial e financeira de que dispõem, assim como os que a eles se equiparam), nenhuma espécie de vulnerabilidade ocorre.

74. A jurisprudência acolhe tranqüilamente esse entendimento. Assim, por exemplo, o 2º Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo deixou assentado:

“ARRENDAMENTO MERCANTIL – “LEASING” – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – PESSOA JURÍDICA – PARTE VULNERÁVEL – PRESUNÇÃO AFASTADA – DEDICAÇÃO À ATIVIDADE PRODUTIVA E LUCRATIVA – RECONHECIMENTO – SATISFAÇÃO DOS REQUISITOS
DE ORDEM SUBJETIVA E FINALÍSTICA DA RELAÇÃO DE CONSUMO – DEMONSTRAÇÃO – NECESSIDADE.

Por não se presumir parte vulnerável e por se dedicar à atividade produtiva e lucrativa, por isso mesmo, não se presume consumidora e só terá a proteção do Código do Consumidor se afirmar e demonstrar a satisfação aos requisitos de ordem subjetiva, objetiva e finalística.” (AC 520.018, Rel. Juiz Celso Pimentel, d. j. 15.6.98).

75. Por todo o exposto, conclui-se que, a admitir-se a substituição, não podem ser substituídos pelo Ministério Público os investidores qualificados, já caracterizados nos itens anteriores (assim como os que a eles se equiparam), indiscutivelmente não albergados em categoria que seja havida como de investidores vulneráveis, estes os únicos a respeito dos quais, em tese, seria aplicável a legislação consumerista.


IV.6 DA ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PUGNAR INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL

76. O parquet alega que:

Ocorreu dano moral para o Banco Central, a CVM e a própria União Federal, pois foi quebrada a credibilidade dos investidores nessas entidades...”,

77. Alega, outrossim, que os atos dos Requeridos:

“causaram danos morais à imagem da Comissão de Valores Mobiliários e do próprio Banco Central do Brasil, por ser aquele símbolo de Banco forte, gerido pela União, considerado inclusive pela Lei 4.595/64, como componente do Sistema Financeiro Nacional (sic), imagem essa fragilizada pela prática ímproba de seus membros, e este, a entidade de topo do Sistema Financeiro Nacional, guardião da moeda e do crédito, encarregado de zelar pelos interesses da coletividade. No caso, a prática ímproba de seus administradores fere de morte a imagem de sua grandeza e altivez.” (fls. 76 dos autos)

78. Mais uma vez, vênia deferida, impõe-se afirmar que o Ministério Público não tem legitimidade para advogar em defesa da moral alheia, sem caracterizar, previamente, a presença do sentimento de agressão que decorre da presumida ofensa. Melhor dizendo, só poderá fazê-lo mediante manifestação expressa do suposto ofendido acerca da ocorrência da ofensa, não podendo usurpar, com a sua iniciativa isolada, a capacidade de analisar se houve ou não ofensa à moral de outrem.

79. Isso é ínsito ao próprio conceito de honra:

“Honra é o conjunto de predicados ou condições de uma pessoa, física ou jurídica, que lhe conferem consideração e credibilidade social; é o valor moral e social da pessoa que a lei protege, ameaçando de sanção penal e civil a quem ofende por palavras ou atos.”
[16]

80. Na seara penal, a honra é o bem jurídico tutelado nos crimes de injúria, calúnia ou difamação. Nesses casos, somente se procede mediante queixa ou representação, dependendo da pessoa ofendida; ou seja, o Ministério Público atuará apenas mediante provocação do ofendido.

81. Ora, se a lei não permite que, para apurar um crime contra a honra, o Ministério Público atue sponte propria, sem a devida manifestação do ofendido, com toda a certeza não pode o parquet alegar, em ação de improbidade combinada com ação civil pública, ou seja, em âmbito civil, dano à moral alheia.

82. Nesse sentido é o entendimento de Aguiar Dias, externado na análise da legitimidade ad causam nos processos por dano moral:

“Da norma geral de que a ação só pode ser exercida pela pessoa lesada, decorre que não pode a reparação do dano ser efetivada por intervenção espontânea do Ministério Público ou sentença de ofício. É preciso entender em termos hábeis a asserção, para que não se encontre em contradição com termos legais. O primeiro é o art. 74, I, do Código Penal, conforme o qual é efeito da condenação tornar certa a obrigação da reparação do dano, combinado com o art. 63 do Código de Processo Penal. Isso quer dizer, recordando o princípio do art. 1525 do Código Civil, que, condenado o agente do crime, não mais poderá questionar, na ação de reparação do dano, sobre sua obrigação de ressarcir as conseqüências do crime. No cível, o procedimento se limitará à execução. Mas esta depende da vontade do interessado.

Omissis

De modo que é sempre certa a conclusão de que a ação só pode ser exercida pelo titular do direito e jamais à sua revelia ou contra a sua vontade. Só o prejudicado tem o direito de agir. E só pode agir em seu proveito.”
[17] (destaques daqui)

83. No caso em tela, reforça-se a falta de legitimidade do Ministério Público quando se percebe que os pretensos prejudicados – União, Banco Central do Brasil e Comissão de Valores Mobiliários – embora chamados, pelo parquet, a ocupar o pólo ativo de ações em tudo e por tudo iguais a esta (em verdadeira litispendência), recusaram peremptoriamente o interesse em fazê-lo.

84. Nesse contexto, ao pugnar pela reparação de danos morais que teriam sido causados à União, ao Banco Central e à Comissão de Valores Mobiliários a despeito da recusa dessas pessoas jurídicas em figurar no pólo ativo desta ação, o Ministério Público está atuando evidentemente contra legem, como se pode depreender da simples leitura dos arts. (i) 1º e 17 da Lei Complementar n° 73, de 10.2.1993, e (ii) 4°, inciso I, da Lei n° 9.650, de 27.5.1998, in verbis:

“art. 1 - A Advocacia-Geral da União é a instituição que representa a União judicial e extrajudicialmente.”

“Art. 17. Aos órgãos jurídicos das autarquias e das fundações públicas compete:
I - a sua representação judicial e extrajudicial;”


“Art 4º São atribuições do cargo de Procurador do Banco Central do Brasil:
I - as pertinentes ao procuratório judicial e extrajudicial e à defesa dos interesses do Banco Central do Brasil, em juízo e fora dele;”



85. Ora, considerando que, nos termos dos fragmentos transcritos, das leis mencionadas, tanto a União como ambas as autarquias possuem procuradores para representar especificamente seus interesses em juízo, o que, obviamente, inclui o conjunto de predicados que lhes confere consideração e credibilidade social (sua honra, enfim), vê-se que o Ministério Público não tem, de maneira alguma, legitimidade para pugnar, no caso concreto, reparação de dano moral supostamente sofrido por essas pessoas jurídicas.

86. Impõe-se, assim, relativamente à pretensão exercida de indenização por dano moral decorrente de suposto ato ímprobo, o reconhecimento da ilegitimidade ativa ad causam do Ministério Público.

87. Feitas essas considerações de natureza processual, todas a impor a extinção da ação civil pública, sem resolução de mérito, importa demonstrar que, também no mérito, a ação não tem como prosperar, à míngua de razões jurídicas bastantes ao acolhimento do pedido que veicula.


V. DO MÉRITO

88. Com o propósito de demonstrar a insubsistência material do pedido, neste tópico serão inicialmente enunciados alguns conceitos sobre os fundos de investimento e a sua regência normativa, de sorte a caracterizar, ao fim, que a conduta dos Defendentes, relativamente aos fundos de investimento administrados pelo Banco zzzz, manteve-se nos estritos lindes da legalidade, não havendo, pois, cogitar de ação civil pública para reparação dos supostos danos causados aos investidores.

89. Noutra vertente, e apenas em acatamento ao princípio da eventualidade, será demonstrado que de improbidade não se trata e que, nem por hipótese, caberia cuidar de responsabilização pecuniária dos administradores dos fundos por eventuais atos ímprobos praticados pelos servidores públicos indicados como réus neste processo.

V.1 FUNDOS DE INVESTIMENTO – CONCEITO E REGIME JURÍDICO

90. (itens 90 a 145 excluídos)

V.4 DA IMPOSSIBILIDADE IN ABSTRACTO DA VIOLAÇÃO DAS NORMAS DE REGÊNCIA


(itens 146 a 163 excluídos)

V.5 AUSÊNCIA DE COMPORTAMENTO ENSEJADOR DE RESPONSABILIZAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES ADMINISTRADORAS

9itens 164 a 175 excluídos)

V.6 DA SEGURANÇA JURÍDICA

176. Além das razões técnicas já expostas, atinentes à circunstância de que, em condições ordinárias de mercado, as diversas formas de precificação dos títulos emitidos pelo Estado resultam em valores convergentes e compatíveis com os juros expressos nos títulos, uma outra razão, de cunho estritamente jurídico, se mostra capaz de expressar a boa-fé e a regularidade dos procedimentos que foram adotados, pelos gestores dos fundos de investimento, no período discutido.

177. Faz-se referência, aqui, ao princípio da segurança jurídica, a impedir a aplicação, na situação dos autos, de forma retroativa, de inteligência das normas editadas pelo CMN que, de rigor, resultaria na negação do entendimento aceito, durante anos, pela Administração, de que não existiriam diferenças significativas entre avaliações que tomassem em conta negócios efetivamente realizados (ou mesmo valores por que se realizariam, segundo as expectativas das instituições financeiras interessadas) e aquelas que adotassem tão-somente o valor presente do fluxo de caixa futuro gerado pelo papel (o chamado critério de marcação na curva).

178. Pilar de nosso sistema constitucional e símbolo da garantia de respeito aos direitos do cidadão diante de atos arbitrários do Estado, o princípio da segurança jurídica procura preservar, na lição da doutrina, a idéia de respeito à boa-fé, a necessidade de assegurar ao administrado a legitimidade das expectativas geradas pela estabilidade de comportamento adotado pela Administração.

179. Expressando entendimento consagrado na doutrina, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 2006, pp. 99-100) anota que, “se a Administração adotou determinada interpretação como correta e aplicou a casos concretos, não pode depois vir a anular atos anteriores, sob o pretexto de que os mesmos foram praticados com base em errônea interpretação”
[18].

180. Nesse sentido, estabeleceu a Lei nº 9.784, de 1999, que “a Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência” (art. 2º, caput), acrescentando que “nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de (...) interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação” (art. 2º, parágrafo único, inciso XIII).

181. Claro está que a expressão de entendimento pela Administração acerca do conteúdo e alcance das normas que lhe incumbe aplicar não se manifesta exclusivamente de forma positiva, mediante atos de interpretação específicos. Assume, também, sem dúvida alguma, a forma implícita, consistente no reconhecimento – formal ou informal, expresso ou tácito – da regularidade dos atos sob fiscalização dos órgãos públicos, como se constituem os que são questionados nos presentes autos.

182. Assim, e justamente porque os auditores do Banco Central do Brasil — como já asseverado em alhures — acompanhavam, em inspeção ordinária, todos os procedimentos adotados pelo Banco Zzzz relativos ao tema em debate, não seria sequer imaginável que a administração pública pudesse venire contra factum proprium para o fim de apenar a instituição financeira e seus administradores, que se comportaram nos exatos e estritos lindes das normas sucessivamente editadas pelos entes reguladores. Seria clara e franca violação ao princípio da segurança jurídica que tem servido de amparo às decisões não só do Supremo Tribunal Federal, mas também dos demais órgãos da jurisdição nacional.

183. Exemplo significativo da propriedade do quanto se afirma é o reconhecimento, pelos tribunais superiores, de que “a situação de juridicidade anterior originada na lei projeta-se no ordenamento como eco capaz de produzir efeitos jurídicos válidos, não obstante a revogação do texto legal que lhe deu causa”
[19].

184. Semelhante entendimento fundamentou decisão do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que, mesmo se reconhecendo que os mandatos parlamentares pertencem aos partidos políticos de vinculação ao tempo da eleição, “para garantir segurança jurídica à decisão (...) a possibilidade de os partidos reaverem seus cargos deve valer a partir de 27 de março de 2007, data em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entendeu que o mandato pertence ao partido.”
[20]

185. Exatamente por isso, ainda que se identifique, em específico período, o descasamento entre os resultados das precificações dos títulos pelos métodos de verificação de negócios ou de expectativas de negócios e os de marcação dos papéis na curva, não é possível considerar que os gestores que promoviam os ajustes necessários à adequada forma de avaliação dos ativos integrantes das carteiras dos fundos, no prazo concedido em norma, possam haver praticado atos irregulares.

186. Esse entendimento encontra-se consolidado no âmbito da CVM (cf. decisões nos Processos Administrativos Sancionadores nºs 2003/12312, 2003/5058, 2003/5849, 2003/7642 e 2003/7697, entre outros) e no do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, que, apreciando o Recurso de Ofício nº 8.252, considerou, por unanimidade, que a norma editada pela CVM veio complementar o regime então vigente, estabelecendo os critérios e parâmetros que faltavam à regulamentação de regência (julgamento havido na 265ª Sessão, realizada nos dias 20 e 21 de setembro de 2006).

(187 a 194 excluídos)

V.8 DA AÇÃO DE IMPROBIDADE

194. Levada de vencida a questão relativa à ação civil pública, resta examinar, do ponto de vista dos Defendentes, o que remanescerá contra eles se, por acaso, prosseguir o processo na parte pertinente à ação de improbidade administrativa.

195. O Ministério Público Federal invoca, contra os Defendentes, ora os arts. 3º e 5º da Lei nº 8.429, de 1992 (fls. 66 e 67 da inicial), ora os arts. 5º e 6º da mesma Lei. Esses dispositivos, como restará demonstrado, não possuem aplicabilidade possível no caso concreto.

196. Vale, de qualquer sorte, a transcrita desses fragmentos legais, para facilitar seu exame e cotejo por parte de Vossa Excelência, quando necessário:

“Art. 3º As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.”

“Art. 5º Ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarcimento do dano.”

“Art. 6º No caso de enriquecimento ilícito, perderá o agente público ou o terceiro beneficiário do ato os valores acrescidos ao seu patrimônio.”

197. Como se percebe, esses três dispositivos se integram para criar um sistema de sanções aplicáveis a agentes públicos e a terceiros, sistema esse que incidirá sempre que, provocada a jurisdição, restar demonstrada a ocorrência de alguma das hipóteses descritas nos arts. 9º a 11 da Lei nº 8.429, de 1992.

198. Interessa, aqui, a responsabilização dos terceiros dado que os Defendentes não ostentam a condição de agentes públicos. O art. 3º é genérico e meramente declaratório da responsabilidade que se desdobra em duas modalidades, a seguir:

199. A prevista no art. 5º, que pressupõe lesão ao patrimônio público (hipótese de que cogita o art. 10 da Lei de Improbidade) e a decorrente necessidade de ressarcimento do dano, sempre fundada na teoria da culpa: ação ou omissão dolosa do terceiro de que tenha resultado a lesão;

200. A prevista no art. 6º, que pressupõe o enriquecimento ilícito (vinculada, pois, às hipóteses do art. 9º da lei em tela), com a perda, pelo terceiro beneficiário, dos bens e valores acrescidos ao seu patrimônio.

201. Feita essa digressão sobre o sistema da lei, cumpre examinar se, dos fatos narrados na inicial, resulta alguma possibilidade teórica de apenação dos Defendentes.


V.9 DA INEXISTÊNCIA DE ATOS ÍMPROBOS

202. É conveniente recordar o enquadramento legal que o Ministério Público Federal reputou adequado ao caso concreto: o parquet considerou que a conduta dos servidores públicos — e não dos Defendentes — estaria em desavença com os arts. 10, caput, e XII; 11, caput e I, II da Lei de Improbidade Administrativa, que são transcritos a seguir:

“Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:
(...omissis...)
XII – permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente.”

“Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, e notadamente:
I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência;
II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de seu ofício.”

203. Como enunciado quando da narração dos fatos, a incidência desses dispositivos seria atraída pelas seguintes condutas:

art. 10, caput: as autoridades do BACEN e da CVM com sua conduta omissiva (não fiscalizar os fundos) causaram um dano econômico ao erário, pois foi anunciado na imprensa que vários investidores pretendem acionar o Estado, bem como um dano moral em face da lesão à credibilidade do sistema financeiro nacional.

art. 10, inciso XII: ao não reprimir as práticas abusivas dos gestores dos fundos, os dirigentes do BC e da CVM permitiram, facilitaram e concorreram para o enriquecimento ilícito das instituições financeiras detentoras desses fundos, na medida em que eles ofereciam uma fictícia lucratividade e ganhavam um maior percentual de taxa de administração, locupletando-se indevidamente;

art 11, caput e inciso I: ao se “desviarem do descumprimento (sic) do dever de servir aos interesses da sociedade, não reprimindo a prática abusiva dos gestores dos fundos, violaram seus deveres de imparcialidade, lealdade, havendo ainda desvio da finalidade pública pela omissão na repressão dessas condutas ilegais.”

art. 11, II: os servidores públicos, além da omissão fiscalizatória, não instauraram procedimento administrativo punitivo e não orientaram os gestores a proceder ao ressarcimento aos cotistas dos repasses indevidos de prejuízos, supostamente ocorridos a partir de 31.05.2002, razão por que teria havido desvio de finalidade por omissão dos dirigentes do BACEN e da CVM.



V.10 DO DOLO E DA CULPA NOS ARTS. 10 E 11 DA LEI Nº 8.429/92 E DA CONDUTA DOS DEFENDENTES

204. Segundo o MPF, as retrocitadas condutas subsumem-se especialmente nos artigos 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa. Sabido que, como já visto alhures, a incidência dos arts. 5º e 6º da Lei de improbidade é dependente da ocorrência de alguma das hipóteses descritas nos artigos 9º a 11 da mesma lei, convém, então, examinar a possibilidade teórica de que tenha ocorrido alguma afronta aos arts. 10 e 11, porquanto, relativamente ao art. 9º, nenhuma alusão foi feita pelo Ministério Público ao longo da inicial.


V.10.1 Da inexistência de conduta dolosa

205. Nas hipóteses do artigo 11, o próprio legislador previu a exigência do dolo na conduta do agente, para configurar-se, com precisão, o ato que implica violação dos deveres contidos no caput. O escólio doutrinário infra, colhido de lições de membros do Ministério Público, é esclarecedor:

“Deve ser enfatizado que as condutas enumeradas nos sete incisos do art. 11 não autorizam cogitar do elemento subjetivo que as motiva, sendo todas presumidamente dolosas. Aliás, pela redação dos tipos já se evidencia que tais atitudes pressupõem a consciência da ilicitude e a vontade de realizar ato antijurídico.”
[21] (Grifos daqui.)

206. Basta a ausência dessa “vontade de realizar ato antijurídico” (que, ao fim e ao cabo, conduz à consciência da ilicitude), portanto, para a conduta do agente não se amoldar às espécies tipificadas nos incisos do artigo 11. Esse entendimento, com extrema agudeza, encontra-se repetido no ensinamento do professor Paulo Henrique dos Santos Lucon:

A contrario sensu, os arts. 9º e 11 da mesma lei, ao elencarem atos que importam enriquecimento ilícito e ofensa a princípios da administração, não prevêem a culpa no elemento subjetivo das condutas lá previstas. Basta uma leitura do caput desses artigos para se atestar essa afirmação.
De uma interpretação teleológica e lógico-sistemática da lei conclui-se que a real intenção do legislador foi prever a modalidade culposa apenas para os crimes que causem prejuízo ao erário (art. 10), e não os que causem enriquecimento ilícito ou que infrinjam algum princípio da administração (arts. 9º e 11). (...) É evidente que o legislador deixou de prever a conduta culposa propositadamente para excluí-la do tipo. Até se poderia fazer uma analogia às normas penais, onde as formas culposas somente são puníveis se devidamente tipificadas, ainda mais se considerarmos o caráter penal já conferido a essa lei em julgados do Superior Tribunal de Justiça.”
[22] (Negritos daqui.)

207. O inciso I do artigo 11, destacado pelo MPF como um dos tipos legais em que se subsumiria a conduta dos Defendentes, exprime, com solar clareza, o dolo na conduta imputada de ímproba, quando declara que o agente pratica o ato visando (pretendendo, objetivando, querendo alcançar o) a um fim proibido ou fora da regra de competência.

208. Da descrição feita pelo Ministério Público Federal, ressalta mais do que evidente a ausência de dolo na conduta dos sujeitos passivos da presente relação jurídica processual. Deveras, duas seriam as condutas (omissivas) perpetradas pelos servidores públicos do BACEN e da CVM: a) omitir-se no dever de fiscalizar; e b) omitir-se no dever de instaurar procedimento administrativo e de atender às recomendações do Ministério Público no sentido de fazer com que os administradores dos fundos indenizassem os investidores.

209. Supondo-se que as coisas se tivessem passado conforme descrito na peça de ingresso, ainda assim não estaria presente o dolo necessário ao perfeccionamento do tipo legal. De fato, na hipótese “a”, faltou ao Ministério Público demonstrar que, ao menos em tese, a omissão no dever de fiscalizar do Banco Central do Brasil e da CVM (deixar de praticar ato de ofício) fosse decorrência de algum animus especial, da vontade de obter um certo resultado, da vontade de realizar o antijurídico. Na hipótese “b” (não atender à recomendação do Ministério Público) a resposta do Banco Central do Brasil foi absolutamente clara: a teor do que dispõe a Carta Política Nacional, aquela autarquia não detém poderes jurisdicionais e, por isso, não pode impor às instituições financeiras que adotem condutas pertinentes a relações jurídicas que mantenham com terceiros, porque o Direito brasileiro não conhece tribunais administrativos
[23].

210. Se o fizessem, o Banco Central do Brasil e a CVM estariam usurpando poderes nitidamente jurisdicionais.

211. Resta, portanto, inteiramente afastado o dolo dos Defendentes, que – sem razão imaginado pelo Autor – jamais restará provado, mormente porque, tomando-se emprestada a aplicação da norma penal ao caso em tela, far-se-ia mister a comprovação da unidade de desígnios entre todos os réus para que, dolosamente, buscassem o fim colimado, o que, como restou comprovado, absolutamente não ocorreu.

212. Cabe o registro, meramente lateral, de que eventual descompasso entre o valor de resgate das cotas em determinado dia, se calculado na conformidade da sistemática própria do Banco Zzzz e aquela preconizada na — posteriormente — norma de regência teria repercussão mínima no conteúdo econômico da taxa de administração que seus reflexos em ganhos do ZZZZ ou de seus Diretores seria irrisório, atingível, sem dúvida alguma, pelo princípio da insignificância penal.

213. Noutra vertente, cabe pôr em realce que o inc. I do art. 11 cuida de prática de ato, isto é, de ato comissivo, e não de atos omissivos como os descritos na peça de ingresso, apresentando-se sem qualquer sentido a figura doutrinária concebida pelo órgão do Ministério Público, a que apelidou de desvio de finalidade por omissão!


V.10.2 Da inexistência de conduta culposa

214. Afastado o dolo na ação dos servidores do Banco Central e da CVM, resta analisá-la sob o prisma da culpa, segundo os termos do artigo 10, caput, e XII da referida lei, invocados pelo MPF e já aqui transcritos.

215. Desde logo, vale o registro de que a improbidade administrativa, na doutrina constitucional e administrativista que se debruça sobre o artigo 37 da Carta da República e sobre a Lei nº 8.429/92, caracteriza-se como espécie do gênero imoralidade administrativa, sendo qualificada, justamente, em função da desonestidade de conduta do sujeito ímprobo. Nesse sentido, a conduta culposa, prevista apenas no caput do artigo 10, extravasa a moldura constitucional delineada pelo artigo 37, § 4º, como muito bem coloca o Ex-Procurador-Geral da República Aristides Junqueira:

“No mesmo sentido, a demonstrar que improbidade administrativa é espécie do gênero imoralidade administrativa, está a lição da eminente professora Weida Zancaner, que, depois de aderir ao ensinamento de José Afonso da Silva de que improbidade administrativa é forma qualificada de imoralidade administrativa, preleciona: “Assim a moralidade administrativa pode ser considerada gênero, do qual a probidade é espécie (...)”.
Os mesmos autores citados, fazendo coro com inúmeros outros, apontam a desonestidade de conduta como nota característica da improbidade, a par de suas conseqüências, que são o dano ao erário e/ou a obtenção de vantagem indevida ao ímprobo ou a outrem.
(...)
É essa qualificadora da imoralidade administrativa que aproxima a improbidade administrativa do conceito de crime, não tanto pelo resultado, mas principalmente pela conduta, cuja índole de desonestidade manifesta a devassidão do agente.”
[24] (Grifos não do original.)

216. E prossegue o Ex-Procurador-Geral, para apontar a inconstitucionalidade em que incidiu o legislador ordinário ao formular hipótese culposa de improbidade administrativa, uma verdadeira contradição em seus próprios termos:

“Assim, a conduta de um agente público pode ir contra o princípio da moralidade, no seu estrito sentido jurídico-administrativo, sem, contudo, ter a pecha de improbidade, dada a ausência de comportamento desonesto – atributo, esse, que distingue a espécie (improbidade) do gênero (imoralidade).
Se assim é, torna-se difícil, se não impossível, excluir o dolo do conceito de desonestidade e, conseqüentemente, do conceito de improbidade, tornando-se inimaginável que alguém possa ser desonesto por mera culpa, em sentido estrito, já que ao senso de desonestidade estão jungidas as idéias de má-fé, de deslealdade, a denotar presente o dolo.
(...)
Estando excluída do conceito constitucional de improbidade administrativa a forma meramente culposa de conduta dos agentes públicos, a conclusão inarredável é a de que a expressão “culposa”, inserta no caput do art. 10 da lei em foco, é inconstitucional.”
[25] (Grifos daqui.)

217. Admitindo, entretanto, e apenas como premissa metodológica necessária à continuação do raciocínio, que possa existir uma modalidade culposa de improbidade administrativa, nem mesmo assim poderá haver a apenação dos servidores do Banco Central e da CVM e, por via de conseqüência, dos Defendentes. É que, na hipótese do art. 10, a ação ou omissão, dolosa ou culposa, deve ter como conseqüência uma perda patrimonial
[26] sentida pela administração pública, o que não ocorreu na espécie.

218. Deveras, na hipótese dos autos e à míngua de melhor argumento, o parquet argüiu como perda patrimonial do Tesouro (i) o fato de que houve notícia nos jornais de que titulares de cotas ingressariam em juízo contra a União visando à reparação dos danos que eles teriam suportado; e (ii) o dano moral alegadamente sofrido com a perda de credibilidade do sistema financeiro nacional.

219. Rogatta maxima venia, soa absurdo alinhar como causa petendi (ou elementar do tipo administrativo) uma genérica afirmação de que notícias de jornais dariam conta do ingresso em juízo de supostas ações de indenização. Para que se realize o processo subsuntivo, é necessário que haja o dano previsto em lei e que seja palpável, concreto. Não simplesmente presumido, como pretende o Ministério Público Federal.

220. Aliás, no que respeita à perda de credibilidade do sistema financeiro nacional — olvidado, por um instante, o fato de que o Ministério Público Federal não possui legitimidade para argüir dano moral de pessoas jurídicas que optaram por figurar no pólo passivo da relação processual —, não há um só elemento de convicção nesse sentido. Ao revés, a ter-se como boa notícia da imprensa, tão ao gosto do Ministério Público, o jornal especializado Valor Econômico que circulou no dia 28 de abril de 2003 informou o ganho recorde obtido pelos Fundos DI em decorrência da valorização dos títulos públicos. Outra reportagem, do mesmo jornal, de 3 de junho de 2003, informa que em apenas cinco meses, os fundos de investimentos atraíram R$ 29 bilhões. Consta, ainda, que esse volume recorde foi captado, principalmente, por fundos de renda fixa, Dis e multimercados, produtos que usam basicamente títulos públicos como lastro.

221. Demais disso, conforme noticiado no Caderno Especial de 30, 31 de maio e 1º de junho, do já citado jornal, o volume de aplicações em fundos dessa natureza cresceu nada menos que 12% (doze por cento), relativamente a maio de 2002; o patrimônio líquido dos fundos de investimentos no Brasil (de 2002 para 2003) alcançou a cifra de R$ 402.5 bilhões, 188% maior do que o volume total dos depósitos em caderneta de poupança.

222. O conjunto dessas informações demonstra, além do aumento da confiança no sistema financeiro nacional, uma especial credibilidade em aplicações em fundos de renda fixa, evidenciado, portanto, a inveracidade do dano moral, aventado na inicial, que supostamente teria sido sofrido pelo sistema financeiro nacional em decorrência da chamada “crise da marcação a mercado”.

223. Cabe uma palavra, ainda, com relação ao contido no inc. XII do art. 10 da multimencionada Lei de Improbidade Administrativa (permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente). Aqui, o Ministério Público fez tábula rasa da advertência do mestre Carlos Maximiliano, muitas vezes repetida pelo professor Eros Roberto Grau: o direito não se interpreta por tiras.

224. Fez pior o Ministério público: foi incapaz de associar o inciso ao caput a que se vincula. Tratou-o como se fosse um fragmento autônomo, em imperdoável vício de hermenêutica.

225. Houvesse agido corretamente e perceberia que, para incidência do inciso XII seria necessária a demonstração da lesão ao erário. Nesse sentido o magistério inconcusso de José Armando da Costa
[27]:

“O componente fático dessa infração disciplinar radica na ação própria do agente público (sentido amplo) que, no exercício de sua função, fornece algum adjutório para que o particular enriqueça ilicitamente em detrimento do erário.”

226. Teria sido necessário, portanto, para que pudesse incidir o fragmento legal sob exame, demonstrar que houve uma perda para o erário que, de outra parte, redundasse em ganho pecuniário para os Defendentes.

225. Dessa missão não logrou desincumbir-se o Autor.


VI. CONCLUSÃO - PEDIDOS

227. Ante todo o exposto, douto Magistrado, os Defendentes requerem o acolhimento das preliminares suscitadas

(i) de inacumulabilidade dos procedimentos da ação civil pública e da ação de improbidade administrativa, dada a incompetência absoluta desse douto juízo para julgamento da ação civil;

(ii) de inépcia da inicial;

(iii) de ilegitimidade ativa ad causam genérica do Ministério Público;

(iv) de ilegitimidade ativa ad causam específica do Ministério Público Federal para a ação civil pública;

todas e cada uma delas impondo a extinção do processo sem resolução de mérito, a teor do artigo 267, IV e VI do Código de Processo Civil.

228. Se superadas as preliminares, o que se admite apenas por hipótese, os Defendentes pedem sejam todos os pedidos do MPF julgados improcedentes ou, na hipótese improvável de seu acolhimento, restritos os seus efeitos às situações de efetivo prejuízo (tendo como parâmetro a diferença entre os valores de aquisição e resgate) observado por investidor que não possa ser havido como suficientemente capacitado à identificação do momento próprio de realização de seus haveres.

Termos em que
pedem deferimento.
Brasília, 09 de janeiro de 2008
[1] É bem de ver, quanto aos três últimos réus, que o Ministério Público Federal pugna por sua intimação para compor o pólo ativo como partes ou assistentes litisconsorciais, mas os coloca verdadeiramente como réus, na medida em que exerce contra eles pretensões de natureza condenatória, como se depreende, sem esforço, da leitura dos pedidos formulados a fls. 76 da petição inicial.
[2] O pedido de tutela antecipada, indeferido por Vossa Excelência, tem a seguinte redação:
“1) a concessão da tutela antecipada na forma pleiteada, determinando:
1.a) ao Banco zzzzz, na pessoa de seus respectivos presidente e demais diretores, obrigação de fazer, consistente em providenciar a reparação das perdas indevidas imputadas ao patrimônio dos fundos de investimento em face do descumprimento das normas legais e regulamentares pertinentes, notadamente quanto à inobservância dos critérios de avaliação dos títulos de renda fixa a valor de mercado e que se refletiram principalmente nos saldos de investimentos apurados pelo valor das cotas divulgadas nos primeiros 5 dias úteis seguintes à edição da Instrução Normativa nº 365, de 29 de maio de 2002, remetendo a esse juízo relação com informações detalhadas sobre os ajustes realizados nas carteiras desses fundos, com a indicação dos efeitos financeiros no valor das cotas, reportando a cada investidor, individualmente, o percentual do ajuste e o valor a ser ressarcido. Para efeito de cálculo, o valor de mercado deve ser considerado como o valor médio diário das transações registrado no SELIC em confronto com os valores registrados na contabilidade dos fundos.
1.b) em caso de descumprimento do item 1.a, a cominação de pena de multa ao Banco Zzzz e às autoridades lá mencionadas, com o valor a ser determinado por Vossa Excelência”. (fls. 79)
[3] Na manifestação anterior, a preliminar agitada cuidava, também, da insuperável incompatibilidade entre os procedimentos das duas ações. Como, lamentável e equivocadamente, a jurisprudência do colendo STJ se inclinou em sentido contrário, esta preliminar foi reescrita para ajustar-se à posição prevalecente na Corte Superior de legalidade.
[4] A questão da evidente ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal será abordada no item IV.4.2.
[5] Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 1981. v. I, p. 270.
[6] Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1973. t. II, p. 28.
[7] Convém consignar que a competência de que se cuida é de natureza absoluta, não permitindo, pois, modificação ou prorrogação, não cabendo sequer cogitar das regras que regem a modificação de competência pela conexão de causas. Em sede de doutrina esse é o entendimento unânime. A jurisprudência também é pacífica a respeito do tema, valendo o aresto infra-excertado apenas como exemplo do que se afirma:
“I – Nos termos do art. 102 do CPC, a competência prorrogável por conexão ou continência é somente a relativa.
II – A competência da Justiça Federal, fixada na Constituição, somente pode ser ampliada ou reduzida por emenda constitucional, contra ela não prevalecendo dispositivo legal hierarquicamente inferior.
III – Não há prorrogação da competência da Justiça Federal se em uma das causas conexas não participa ente federal.”[7] (o negrito é daqui) (CC 6.547-0-PR, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, RSTJ 60/67)
[8] ZAVASCKI, Teori Albino. Ministério Público, Ação civil pública e defesa dos direitos individuais homogêneos. Revista Forense, v. 333, p. 131.
[9] BUENO, Cássio Scarpinella; PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende (org.). Limitações à Atuação do Ministério Público na Ação Civil Pública. In: Improbidade Administrativa: Questões Polêmicas e Atuais. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 27.
[10] In Mercado financeiro – produtos e serviços, 15ª ed., rev. e atual., Qualitymark, Rio de Janeiro, 2002, p. 366.
[11] Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, comentado pelos Autores do anteprojeto, 6ª ed., rev. e atual. até julho de 1999, ed. Forense universitária, Rio de Janeiro, p. 51 – destacou-se.
[12] E não em decorrência da regência do Código de Defesa do Consumidor.
[13] Op. cit. p. 124 e ss.
[14] Práticas Mercantis no Direito do Consumidor. Juruá, 1999. p. 34.
[15] SANTANA, Héctor Valverde. Prescrição e Decadência nas Relações de Consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 47.
[16] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, p. 80. In: VIANA, Patrícia Guerrieri Viana, Dano Moral à Pessoa Jurídica, Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002. p. 73-74.
[17] DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. v. II, p. 791-792, item 247. In: RODRIGUES, Manuel Cândido. Da Legitimidade das partes do processo por dano moral. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (coord.) Grandes temas da atualidade – Dano Moral. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 311.
[18] Estudando a matéria sob o aspecto das relações contratuais, Celso Antônio Bandeira de Mello destaca que “o aparelho estatal, para cumprir fielmente os fins que lhe são conaturais no Estado de Direito, tem de apresentar-se como interlocutor sério, responsável, cumpridor de seus acordos, correto agente de expressão do Direito. Isso lhe impõe o dever de respeitar com escrupuloso zelo os engajamentos e comprometimentos advindos das condutas que negociou com terceiros. Donde, em quaisquer de suas relações – tanto mais porque cumpre a função de ordenador da vida social – tem de emergir como interlocutor sério, veraz, leal e obrigado aos ditames da lealdade e da boa-fé. Se assim não fora, apresentar-se-ia no mundo jurídico e social como a mais perigosa das contrapartes e não poderia encontrar quem quer que com ele se relacionasse em vínculos consensuais, na medida em que sua potestas lhe pudesse servir de calço para evadir-se a compromissos formalizadamente assumidos” (RDP 87, pp. 47/48).
[19] Faz-se referência, aqui, à discussão havida por ocasião do julgamento pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça do ERESp 738689, Rel. Min. Teori Zavascki, acerca da extinção, a partir de 1990, do denominado “crédito-prêmio do IPI” (por força do art. 41, § 1º, do ADCT), quando se sustentou, em vista da alteração de entendimento então manifestado pela Corte, “a possibilidade de o STJ modular temporalmente os efeitos de sua decisão, fato possível por força do imperativo da segurança jurídica, mesmo sem previsão legal expressa, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do recurso extraordinário 197.917/SP” (STJ, Informativo nº 0325, de 25 a 29 de junho de 2007).
[20] Cf. Notícias STF , 4 de outubro de 2007.
[21] Pazzaglini Filho, Marino; Elias Rosa, Márcio Fernando; Fazzio Júnior, Waldo. Improbidade Administrativa: Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. 4. ed. Atlas, 1999. p. 124.
[22] Lucon, Paulo Henrique dos Santos. Litisconsórcio Necessário e Eficácia da Sentença na Lei de Improbidade Administrativa. in: Bueno, Cassio Scarpinella; Porto Filho, Pedro Paulo de Rezende (coord.). Improbidade Administrativa: questões polêmicas e atuais. Malheiros, 2001. p. 311/312.
[23] Que aqui só medraram em tempos de anormalidade democrática.
[24] Alvarenga, Aristides Junqueira. Reflexões sobre Improbidade Administrativa do Direito Brasileiro. in: Bueno, Cassio Scarpinella; PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende (Coord.). ob.cit. p. 88-89.
[25] Alvarenga, Aristides Junqueira, op. cit., p. 89.
[26] É necessário, afirma Pazzaglini, na obra antes citada, um dano concreto ao erário. (p. 75)
[27] Costa, José Armando da. Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa. 2a edição, Brasília Jurídica, p. 134.