terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Execução de obrigação de fazer e não fazer por título judicial

Sobre o cumprimento das obrigações de fazer e não fazer de que trata o art. 461 do CPC, escrevi um texto em fins de 1995, início de 1995, assim que ocorreu a alteração legislativa. Já é um texto velho, a carecer de algumas intervenções visando ao seu rejuvenescimento. Sem embargo, publico-o do que jeito que está, para que seja objeto da crítica de meus alunos.
Obrigado, desde logo.

A redação que a reforma do CPC deu ao dispositivo de regência foi a seguinte:

Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1º A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.

§ 2º A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287).

§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.

§ 4º O juiz poderá na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para cumprimento do preceito.

§ 5º Para efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial.

Já havia estudos anteriores a respeito do tema relativo ao cumprimento das obrigações de fazer e não fazer, cabendo traze à balha o que se discutiu por ocasião da elaboração do anteprojeto de 1985, que depois foi abandonado, cuja redação é elucidativa:

Anteprojeto de 1985:

Capítulo A-5

"Art. 889-A. Aquele que, por lei ou convenção, tiver direito de exigir de outrem que se abstenha da prática de algum ato, tolere ou permita alguma atividade, ou preste fato, poderá pedir a ao juiz que defira a tutela específica da obrigação ou determine providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1º A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente." (Com igual redação, Código de Defesa do Consumidor, art. 84, § 1º.)

§ 2ºA indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287)

§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.

§ 4º O juiz poderá, na hipótese do § 3º, ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para cumprimento do preceito.

§ 5º Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além da requisição de força pública."

Com relação à atual regência, não houve alteração redacional em relação ao projeto apresentado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual e pela Escola Nacional da Magistratura, que se valeu do Anteprojeto de 1985. A Exposição de Motivos deste último afirmava: "Previu-se a tutela específica das obrigações de fazer ou não fazer, deixando-se expresso, com isso, a prevalência da execução específica, obtenível, inclusive mediante o emprego das "astreintes", sem prejuízo da indenização por perdas e danos."

Ocorre que nesse anteprojeto, o artigo correspondente ao de que se cuida era ensartado no Livro III, "Do Processo de Cognição Sumária", cujo art. 795-A, dispunha, in verbis:

"Este livro disciplina o processo cautelar, seu procedimento e o das medidas provisórias, da antecipação da tutela e das providências assecuratórias de direito material".

Nesse Livro, num capítulo indicado como A-5 "Da Ação de Tutela Específica de Obrigações de Fazer ou Não Fazer", é que está lançado o art.889-A, antes transcrito. Do Anteprojeto de 1985 o texto foi trazido, com alterações, para o Código de Defesa do Consumidor, incrustado no art. 84, com a seguinte redação: " Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento." A expressão ou se procedente o pedido que consta hoje no artigo 461, só apareceu no anteprojeto apresentado pelo IBDP e pela ENM. Boas razões devem ter tido seus autores para proceder à inserção desse novo elemento no texto; não conseguimos, porém, atinar com elas. veja-se a redação do artigo: ...o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará as providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento

Se ao menos a expressão, se procedente o pedido estivesse anteposta a a tutela específica, poder-se-ia pensar que o legislador pretendeu realizar uma melhoria redacional em relação ao artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor, porque, lá, interpretação mais estreita poderia dar a entender que, proposta a ação, o juiz obrigatoriamente daria a tutela específica da obrigação, com o que não haveria pedidos improcedentes, na absurda suposição de que o autor sempre tem razão. Lamentavelmente, da forma como está redigido, o artigo conduz a absurdos hermenêuticos consideráveis: proposta ação que tenha por objeto obrigação de fazer, o juiz concede a tutela... ou, se procedente o pedido, determina providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. Data venia... o Estado-juiz somente concede a tutela se o autor for titular de uma relação jurídica material apta a subordinar o réu, impondo-lhe um fazer ou não fazer. Providências que assegurem resultado prático equivalente são aquelas adotáveis em substituição ao agir do réu, quando insuficientes os meios normais de coação de que dispõe o Estado para fazê-lo agir na forma que lhe impunha o direito material.

O texto padece dessa imprecisão redacional e somente alteração legislativa poderá escoimá-lo da impropriedade apontada. Sem embargo disso, parece induvidoso, até com espeque em estudos realizados relativos ao artigo corresponde a esse, no Código de Defesa do Consumidor, que o objetivo do legislador foi dilargar os poderes do juiz, sobretudo através de fundas alterações na concepção executiva do processo . Com efeito, parece que as técnicas de sub-rogação e de coação passaram a ter maior elasticidade, perdendo eficácia as regras do processo que convertiam as obrigações de fazer ou não fazer em perdas e danos (art. 633, art. 638, parágrafo único, art. 643, parágrafo único). Buscou-se, com isso, privilegiar o entendimento doutrinário que há mais de uma década já vinha sendo esposado no sentido de dar-se guarida ao princípio da máxima coincidência possível, isto é, no sentido de que a execução deveria buscar o resultado mais próximo possível daquele que seria obtido se a conduta determinada na regra jurídica tivesse sido seguida espontaneamente pelo legitimado passivo.

A esse respeito, comentando o Código de Defesa do Consumidor, assevera Kazuo Watanabe:

“No plano do provimento jurisdicional, ao juiz foi conferido o poder de adotar todas as providências adequadas e legítimas à tutela das obrigações de fazer ou não fazer, sendo-lhe dado desde: a) impor multa diária, independentemente de pedido do autor (sem prejuízo, evidentemente, do efetivo cumprimento da prestação), se a peculiaridade do caso indicar que a multa é suficiente ou compatível com a obrigação (art. 84, § 4º), até b) determinar medidas que sejam adequadas à obtenção do resultado prático equivalente ao do adimplemento da obrigação se não for possível o atingimento da tutela específica... o provimento do juiz na tutela das obrigações de fazer ou não fazer não se restringirá à mera condenação (provimento condenatório na concepção tradicional) mas abrangerá a expedição de mandamentos ou ordens (ação mandamental), que se descumpridas, à semelhança das injunctions do sistema anglo-saxão ou da “ação inibitória” do sistema italiano, poderá configurar o crime de desobediência, como ato de afronta à justiça, e não apenas à parte contrária, e ainda ensejará a adoção de técnicas de sub-rogação de obrigações em outras que permitam a obtenção do resultado prático equivalente....

Cuida-se, ao revés, de norma auto-aplicável, no sentido de que dela se podem extrair desde logo várias conseqüências. A primeira delas, certamente, é a realização processual dos direitos na exata conformidade do clássico princípio chiovendiano, segundo o qual “o processo deve dar, quanto for possível praticamente, tudo aquilo e somente aquilo que ele tenha direito de conseguir. A segunda, que é consectária da anterior, é a da interpretação do sistema processual pátrio de modo a dele retirar a conclusão de que existe, sempre, uma ação capaz de propiciar , pela adequação de seu provimento, a tutela efetiva e completa de todos os direitos dos consumidores”( Código de Defesa do consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991 pág. 521)

Quadra o registro de que antigas afirmações encontradiças em sede de doutrina, a respeito do processo de execução (pelo menos no que respeita a essa execução de obrigação de fazer decorrente do art. 461), hoje não podem mais ser aceitas pacificamente.

Com efeito, não se pode mais afirmar peremptoriamente, quanto à execução da obrigação de fazer, que seja ela regida por um sistema de ônus e constrições. Essa execução não parece mais decorrer do clássico modelo tradicional da sentença condenatória, tomado por empréstimo do direito italiano. Ao revés, dessa vez, tudo leva a crer que a sentença mandamental encontrou, como categoria, espaço na classificação das sentenças. Ovídio Batista da Silva já menciona que "A experiência obtida em outros sistemas jurídicos, particularmente o italiano, está a indicar que o campo das obrigações de fazer e não fazer está sendo invadido pelas ações mandamentais..."(Curso, pág. 261)

A inserção do artigo 461 no Livro I, que trata do processo de conhecimento, dá a entender que, doravante, haverá uma execução defluente de obrigação de fazer por título executivo hábil a ensejar uma execução ex intervallo, como base no Livro II do Código de Processo Civil (confronte-se o comentário do Professor Kazuo Watanabe, na obra antes citada, pág. 528.) e uma ação a que a doutrina equivocadamente está a apelidar de executiva lato sensu, onde o juiz no próprio preceito avia, por si ou por outrem, os meios hábeis à consecução dos resultados pretendidos pela norma de direito material (impedimento de ensaiar um conjunto musical num prédio de apartamentos, apreensão dos instrumentos, interdição do imóvel, etc. Parece-nos que esse tipo de tutela, de caráter inibitório, é marcadamente mandamental).

Assim, é de considerar-se o fato de que o artigo 632 a 645 do Código de Processo Civil continuam em vigor e que é preciso encontrar espaço para ambos. A maneira de fazê-lo é reduzir o âmbito de vigência das regras do 632 a 645 para a regulação apenas das execuções por título extrajudicial.



A regra do § 1º, como já antecipado, prende-se ao princípio da máxima coincidência possível entre o direito postulado em juízo e a situação que deveria ter ocorrido se o obrigado houvesse tido a conduta imposta na norma de direito material. Seria importante confrontar o disposto nessa regra com o artigo 638 do Código de Processo Civil que determina que, "nas obrigações de fazer, quando for convencionado que o devedor a faça pessoalmente, o credor poderá requerer ao juiz que lhe assine prazo para cumpri-la. Dispõe o Parágrafo único desse artigo que: "Havendo recusa ou mora do devedor a obrigação pessoal do devedor converter-se-á em perdas e danos, aplicando-se outrossim o disposto no artigo 633."

Parece fora de dúvida que a conversão em perdas e danos não segue mais a regra desse parágrafo, que se encontra tacitamente derrogado.


Quanto à regra contida no parágrafo segundo, mais uma vez, o Código tomou partido em discussão doutrinária e jurisprudencial ao permitir a cumulação de perdas e danos com o preceito cominatório previsto no artigo 287. Mesmo antes, porém, já era majoritário o entendimento nesse sentido. Calmon de Passos, já ensinava:

"O art. 287 cuida da cominação de pena pecuniária para o caso de descumprimento da sentença. Indaga-se: ela deve ser invocada quando inexistente outra cominação específica prevista na lei ou no contrato? Ou ela pode ser acrescida a outras previamente estabelecidas?... e responde:

"A cominação do art. 287 não exclui outras previsões de caráter reparatório, não é incompatível com perdas e danos, mas a elas se soma. Não pode, contudo, somar-se a cominação legal ou contratual já fixada com fins coercitivos."

O escólio de Jaime Campos não dissente do magistério do mestre baiano:

"não se deve, portanto, confundir a multa de recalcitrância com qualquer outra pena, com a multa contratual ou qualquer outra cláusula ou perdas e danos, vez que a pena pecuniária busca a eficácia do constrangimento. Tem por objetivo compelir o devedor a cumprir a sentença e não colima substituir a própria obrigação devida que se solve pelo ato próprio ou pela apuração das perdas e danos".

Elucidativo, outrossim, o entendimento de Severino Muniz, em trabalho monográfico a respeito do tema:

"Também se nos afigura necessário dizer que as astreintes não se equiparam às perdas e danos. Têm função coercitiva, visando compelir o devedor a cumprir sua obrigação de fazer, positiva ou negativa."

A regra contida no parágrafo terceiro merece especial atenção , embora não constitua novidade em termos de Direito brasileiro. Com efeito, com pequenas variações essa é a regra do artigo 7º do Lei nº 1533/51, que cuida da concessão de liminar em mandado de segurança: relevância do fundamento da demanda e possibilidade de ineficácia do provimento final, caso deferido. A providência excogitada é semelhante àquela prevista no atual artigo 273, I, combinado com o § 4º do mesmo artigo do CPC. Ambos cuidam de antecipação de tutela, com o desenho doutrinário da chamada tutela de urgência. Qual, pois, a distinção entre ambos ou, melhor dizendo, qual o espectro de incidência de um e outro?

A primeira anotação que pode ser feita é que a regra do artigo 273 é de caráter geral, pressupõe prova inequívoca, isto é, acima de qualquer controvérsia. É até possível que o juiz se convença da verossimilhança a que se reporta o caput do artigo 273, sem prova inequívoca, porque verossímil é o que tem aparência de verdade, que não repugna à verdade, com probabilidade de ser verdadeiro, plausível. Não poderá, porém, deferir a tutela de que trata esse artigo. A recíproca não é verdadeira: a prova inequívoca (id est, a que não deixa sobejar dúvida) conduz, muito mais do que à verossimilhança, à certeza do direito da parte. E só na segunda hipótese está autorizada a tutela antecipatória (é claro, se ocorrente uma das duas hipóteses previstas nos incisos do artigo em causa). No caso do art. 461 não se cuida de prova inequívoca; exige-se menos (relevância do fundamento da demanda e periculum in mora).

Demais disto, na hipótese do art. 273, I, prescinde-se da citação do réu e, valendo-se o magistrado de instituto importado do processo cautelar, periculum in mora, defere a tutela substancial. Registre-se, en passant, que tanto faz seja o dano irreparável ou de difícil reparação para que a tutela seja concedida.

A hipótese do artigo 461 tem pertinência somente com o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Nela, valeu-se o legislador de fórmula que nos acompanha desde a Lei nº 191, de 16 de janeiro de 1936, que em seu artigo 8º, § 9º, dispunha:

"Quando se evidenciar, desde logo a relevância do fundamento do pedido, e decorrendo do ato impugnado lesão grave irreparável ao direito do impetrante, poderá o juiz, a requerimento do mesmo impetrante, mandar preliminarmente, sobrestar ou suspender o ato aludido."

Relevância do fundamento da demanda, ou do pedido, certamente que é menos do que prova inequívoca. Isso, a rigor, não seria de assustar ninguém. O que nos provoca seriíssimas preocupações é o fato de que, a uma primeira análise, não é fácil identificar com precisão o que seja isso! À falta de precisão conceitual, e como sói ocorrer nessas circunstâncias, cuidou a doutrina de atribuir um certo poder discricionário ao juiz para definir o que isso significa. Nesse sentido, e versando sobre o artigo 7º da Lei 1533, de 31.12.51, não faltou quem se pronunciasse sobre o alto grau de subjetividade e de discricionariedade que a fórmula sugere, o que provavelmente será repetido agora.

Nesse sentido, por exemplo, Adhemar Maciel afirma:

"Faceta interessante é a discricionariedade na concessão da liminar. Dos dois requisitos, para sua obtenção, um, o da relevância do fundamento do pedido, é de cunho inteiramente subjetivo."

Data venia, não se pode aplaudir a doutrina que atribui a essa decisão o color de ato defluente de um poder discricionário. Juiz não exerce, em princípio, poder discricionário. A esse respeito já antecipamos nosso pensamento nas anotações que fizemos ao artigo 33. E não exerce porque não há, no exercício da jurisdição, espaço para a utilização de critérios de conveniência e oportunidade, que são as notas identificadoras da discricionariedade. No mais das vezes, o que parcela da doutrina identifica com exercício do poder discricionário por parte do julgador não passa de atribuição de sentido a conceitos (rectius, termos) indeterminados.

A propósito, Teresa Arruda Alvim Pinto leciona, com sua proverbial argúcia, leciona:

"Acreditamos que não se deve identificar a discricionariedade com a "liberdade de que goza o Juiz na fixação de conceitos juridicamente indeterminados, como, v.g., "perigo iminente", "boa-fé", fumus boni juris, relevância do fundamento etc....

Não tem sentido afirmar-se que ao deferir ou indeferir um pedido de liminar estaria o juiz exercendo poder "discricionário".

Cármen Lúcia Antunes Rocha, examinando a questão dos conceitos indeterminados (especificamente sobre a questão da relevância do fundamento), acentua:

"... na matéria, presentemente estudada, florescem citações sobre a discrição do julgador como "o prudente arbítrio" de que se deveria valer ele para apurara a existência ou não, do relevante fundamento do pedido e concessão de liminar. Mas o arbítrio não tem qualificativo; não se altera, em sua essência, pelo adjetivo de que se acompanhe; não se aprimora nem se humaniza pela aparência enganosa de juridicidade de que um novo título o envolva...

O dever de interpretar a norma jurídica atribuindo-se aos conceitos vagos ou indeterminados o único sentido hábil e útil a realizar o fim nela assentado não constitui tarefa porejada de subjetividade, antes cuida-se de desempenho que não possibilita escolha, mas captação e inteligência do comportamento único e insubstituível que o faz conter-se nas balizas da legalidade....

...Assim, não se admitirá a medida liminar sem a necessária relevância do fundamento, nem se aceitará como válido ou incontrastável o seu indeferimento quando se apresentar este elemento e a ele se adicionar o segundo pressuposto legal exigido, qual seja, o risco de se tornar ineficaz a decisão a final proferida.

No mesmo sentido, e com a admirável e justa veemência que caracteriza seus pronunciamentos, Calmon de Passos afirma:

"Discricionariedade só existe em matéria de conveniência e de oportunidade, não no que diz respeito à legalidade do ato. E a discricionariedade vem sendo progressivamente constrita, inclusive, em termos de Poder Executivo, porque não se aceita que o administrador tenha arbítrio, seja exclusivo juiz de sua valoração, dado que os valores postos legalmente e os freios legalmente formalizados para contê-lo operam como parâmetros limitativos dessa proclamada discricionariedade, irmã quase gêmea, e gêmea univitelina do arbítrio, da prepotência e da arrogância.. E enquanto assim pensam e atuam os administrativistas, alguns processualistas endeusam a discricionariedade e outras palavras imprecisas e mágicas, que terminam, como todas as mágicas, apenas empulhando o espectador."

Presentes e demonstrados os dois requisitos, deverá o juiz conceder a tutela. Se não julgar demonstrado um ou outro, deverá determinar a justificação prévia, neste caso devendo ser citado o réu, procedendo-se na forma do disposto no artigos 861 a 866 do CPC. Importante notar, outrossim, que não fica ao alvedrio do juiz determinar ou não a realização da justificação prévia. Se não puder conceder a tutela liminarmente, deverá determinar a justificação. Somente após, se não demonstrados a relevância do fundamento e o periculum in mora, é que poderá o juiz deixar de antecipar a tutela. De qualquer sorte, e qualquer que seja o teor da decisão, caberá recurso de agravo.
A regra do § 4º cuida do preceito cominatório, já previsto no artigo 287, no 644 e no 645 do CPC. Caracteriza-se ele pelo fato de possibilitar ao autor a obtenção de um provimento, sem que haja necessariamente a oitiva do réu, para que este faça ou deixe de fazer alguma coisa, sob pena de incorrer em certa sanção pecuniária. O preceito cominatório é essencialmente um instrumento posto à disposição do Direito Processual por meio do qual o Judiciário pratica atos de coação para que o sujeito passivo da relação jurídica substancial cumpra a obrigação de fazer ou não fazer.

É de crer-se que a inserção desse parágrafo pretende lançar uma pá de cal em antiga, tortuosa e interminável discussão doutrinária, ao dispor que nas ações que tenham por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz poderá, tanto na hipótese de antecipação de tutela quanto na de procedência do pedido reconhecida por sentença, impor multa diária ao réu independentemente de pedido do autor — se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para cumprimento do preceito.



Com efeito, até então, e em face do que dispunha o art. 287 c/c art. 644, as posições doutrinárias eram inconciliáveis. Parcela, da doutrina entendia que, se se tratasse de obrigação de não fazer e de fazer personalíssima, infungível, se o autor não pedisse a cominação da pena deveria ser indeferida a inicial , justamente porque, não pedida, não poderia o juiz concedê-la de ofício, com o que qualquer provimento jurisdicional seria inapto para realizar o eventual direito do autor. Explica-se: para integrar o direito do autor, para executar uma sentença condenatória, vale-se o Estado-juiz de meios de coação e de sub-rogação. Através da primeira modalidade, constrange o executado para que ele realize o direito do credor (daí a ameaça da imposição de multa diária ao devedor se ele não realizar a prestação no prazo que lhe for assinado). Por via da segunda, meio de sub-rogação, o próprio Estado-juiz realiza a prestação, independente de qualquer atividade do devedor, embora a suas expensas (busca e apreensão de bens, penhora, etc.). É intuitivo que, quando se tratar de obrigações de fazer infungíveis, é impossível a utilização de meios de sub-rogação, restando apenas o recurso aos meios de coação. Se não pedida, nessas circunstâncias, a multa, o Estado-Juiz ficava, segundo entende Calmon de Passos, de mãos atadas. No mesmo sentido é o magistério de Araken de Assis:

"É razoável a interpretação que compatibiliza os artigos 287 e 644 no sentido de que o pedido de multa é obrigatório para a execução específica de obrigação de fazer ou de não fazer infungível — levando a sua ausência a um inevitável indeferimento da inicial, ressalvada a hipótese de existir pedido sucessivo de condenação em perdas e danos, caso em que o crédito se demudaria em quantia certa já no título — e é facultativo se o fazer é fungível porque existe o meio executório da transformação."

Agora, em face da dicção do § 4º, em princípio, não mais cabe discutir se se trata se obrigação de fazer fungível ou infungível, nem se pode mais cogitar de indeferimento da inicial por inépcia se não requerida a imposição das astreintes. Impô-las-á o juiz de ofício.

Outro aspecto a considerar (e é uma vertente interpretativa bastante razoável) é o de que, para parcela da doutrina, essa regra veio corrigir o equívoco topológico que representava a colocação dos artigos 644 e 645 no Livro II do CPC. Sobre esses dois artigos anotava Alcides de Mendonça Lima:

"Pontes de Miranda já sustentava que 'a ocasião e o lugar adequados para a aplicação da multa e a condenação em perdas e danos líquidos, ou em perdas e danos dependentes de liquidação, são a sentença de condenação; de modo que o art. 999 [CPC de 1939], referindo-se ao processo de execução, é de pouca aproveitabilidade. O texto do art. 645 revela, contudo, como as normas se acham 'extraviadas no processo de execução' (BARBOSA MOREIRA). A cobrança deve ser feita na execução da sentença condenatória; mas, como a origem é a própria sentença, a sede própria seria no capítulo VIII, do Título VIII, do Livro I, entre os artigos 458 e 466" .


Bem a propósito, a regra se encontra, agora, no artigo 461. Só que o legislador não revogou o artigo 644 (deu-lhe, porém, nova redação, como será visto no momento oportuno), o que impõe seja buscada a compatibilização entre eles. Não é mister que exija alta indagação. O caput do novo artigo 644 só deverá encontrar aplicabilidade — dir-se-ia supletiva — se o juiz, no processo cognitivo, omitir-se quanto à fixação do preceito cominatório.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Execução: primeiros apontamentos



Em Teoria Geral do Processo, quando estudamos as primeiras classificações sobre a atividade desenvolvida pelas partes e pelo juiz, percebemos, de forma bastante singela, que há situações em que a preocupação das partes é tentar demonstrar ao magistrado o direito que alegam possuir. Em contrapartida, o magistrado preocupa-se em investigar os fatos narrados na petição inicial e na contestação, para, ao fim, inteirado quanto a certeza dos fatos, atribui o bem da vida ao autor ou ao réu.

Essa atividade corresponde ao que a doutrina apelidou, justamente, de processo de conhecimento, expressão também adotada pelo direito positivo, que corresponde, no caso de procedência do pedido do autor, a sentenças de natureza declaratória, constitutiva, condenatória (a que depois Pontes de Miranda acrescentou duas novas categorias, executiva e mandamental).

Além da atividade de cognição que visa ao acertamento do direito das partes, há, no âmbito do processo civil, outra atividade jurisdicional, que já parte da certeza do direito (decorrente da investigação que o magistrado realizou ou da  presunção atribuída pelo ordenamento positivo a certos títulos), a que o eminente professor Celso Neves apelida de atividade jurissatisfativa, e que não se limita apenas a  procurar a certeza quanto aos fatos para atribuir no campo normativo, o bem da vida a A ou a B, mas, sim, a provocar, no mundo sensível, uma alteração de situação tal que implique a efetiva atribuição do bem da vida ao vencedor da demanda.
Essa atividade jurissatisfativa é exercida por meio de técnicas executivas, normalmente, porém não necessariamente, dentro de um processo de execução, e tem recebido novo apelido quando decorre de uma sentença proferida no processo de conhecimento: cumprimento de sentença.

É certo que o código de processo civil ainda em vigor tem, no curso das alterações por que passou, desde 1994, suprimido, sempre que pode, tanto a expressão sentença condenatória quanto execução de sentença, como se o legislador reformista estivesse tentando expurgar do ordenamento positivo seres malditos, capazes de gerar danos à sociedade, responsáveis por todas as mazelas sofridas pela prestação tardia da atividade jurisdicional. Por certo que essas expressões não possuem a força nefasta que lhes é atribuída, nem a sua supressão é capaz de eliminar ou alterar a natureza da atividade executiva, a ser realizada pelo Estado-juiz como fito de dar efetividade, no mundo dos fatos, àquilo que foi decidido no plano normativo (da norma jurídica individual apelidada de sentença). Diz-se, por isso, normalmente, que o processo de conhecimento o juiz caminha dos fatos para a norma e, no processo de execução, caminha da norma para os fatos.

O étimo da palavra ajuda a compreensão do fenômeno: execução, como lecionava o saudoso Alcides de Mendonça Lima, corresponde pelo sentido ao verbo latino exsèqui, mas provém da forma românica executare (pelo particípio exsecutus).  A raiz seq ou sec indica o sentido de seguir, conseguir, executar, execução, perseguir... (conferir, Comentários, vol. VI, tomo I, Forense, 1977, p. 20). Modernamente, e sem muita precisão técnica, podemos arrolar como executiva toda atividade processual tendente a realizar efetivamente o direito daquele que, por ato  judicial ou por outro título legitimante,  tem o direito de impor a outrem que com ele esteja em relação jurídica uma conduta positiva ou negativa, por vontade própria ou por constrangimento estatal. De fato, promovida a execução, por meio da qual foi exigida da parte passiva uma obrigação de fazer, não fazer, dar e pagar (e a obrigação de pagar nada mais é do que uma especial forma de obrigação de dar), o executado pode simplesmente aquiescer a cumprir a obrigação constante no título executivo (judicial ou extrajudicial) ou pode ignorar ou, até, resistir à pretensão executiva exercida pelo suposto credor.
Na hipótese da indiferença ou resistência à pretensão exercida pelo credor, caberá ao Estado-juiz lançar mão do aparato da força legítima para realizar o direito do credor. Os meios de pode valer-se o Estado para consecução do objetivo execucional são vários, e sua utilização dependerá do tipo da prestação obrigacional perseguida em juízo.  Fala-se, em sede de doutrina, em execução própria e execução imprópria, dependendo da utilização da técnica A ou da técnica B, classificação que, a nosso ver não colabora em nada para fins da compreensão do fenômeno executivo. Fala-se, também, e às vezes no mesmo sentido,  de execução direta e indireta, para caracterizar a atividade do Estado-juiz. No primeiro caso, incidindo de forma imediata sobre o patrimônio do executado, por meio da sub-rogação do Estado em alguns dos bens do executado cujo valor seja capaz de honrar o crédito perseguido. No segundo caso, execução indireta, cogita-se de atividades do Estado que, sem incidir imediatamente sobre os bens do devedor, são capazes de infligir-lhe receios suficientes que o estimulem a cumprir a obrigação. São técnicas de coerção, de que podem ser mencionados, como exemplo, o preceito cominatório, multa cominatória, astreintes, e a prisão do devedor por alimentos.
Poder-se-ia pensar, na execução direta, em técnicas de desapossamento, como, por exemplo, nas execuções de dar (art. 621), por meio da expedição de mandado de imissão na posse de bem imóvel, ou do mandado de busca e apreensão, na execução de dar coisa móvel.
Poder-se-ia pensar, também, na possibilidade da transformação, em situações tais como aquelas decorrentes da execução de obrigação de fazer infrutífera, em que há a convolação da obrigação original em obrigação de pagar, já porque a obrigação foi prestada por terceiro ou realizada pelo próprio credor, já porque foi substituída pelo pagamento em pecúnia dada a impossibilidade do adimplemento da obrigação original.
Na execução de obrigação de pagar, o Estado-juiz pode valer-se da técnica do desconto em folha, sobretudo quando se tratar de execução por prestação alimentícia. Na hipótese de sub-rogação, relativa à generalidade das execuções por quantia certa, pode ocorrer a expropriação do bem, com uma das seguintes consequências: (i) o credor exequente fica com o bem para si, ocorrendo, aí, a figura da adjudicação; (ii) o credor requer ao magistrado que seja deferida a alienação do bem pro particular; (iii) o credor requer que o bem seja levado á hasta pública, leilão ou praça; (iv) o credor fica com o bem em usufruto até a completa satisfação do crédito exequendo.
Princípios que regem a execução
É claro que o direito é um sistema de regras; não há, entretanto, que desconsiderar os princípios que ornam o ordenamento e que são capazes de elucidar o alcance e dimensão das regras e que colaboram decisivamente para a sua correta interpretação e aplicação. Vale a ressalva de que são aceitas aqui, sem maior juízo crítico, algumas normas diretamente encartadas no Código de Processo Civil, que, para parcela da doutrina talvez pudessem ser consideradas como normas-regra e não como normas-princípio.
São estes os princípios normalmente mencionados nos livros de doutrina: princípio do título, princípio da autonomia, princípio da patrimonialidade, princípio da máxima coincidência possível, princípio da menor onerosidade, princípio da disponibilidade, sendo certo que os tratadistas e manualistas não se ajustam a respeito de quais e quantos são esses princípios.
Princípio do título
É velha a lição da doutrina: nulla executio sine titulo, para significar que o título executivo é o bilhete de ingresso da execução. Sem ele, não há execução que possa prosperar. Há, em sede doutrinária, larga discussão sobre a natureza  do título executivo, ora afirmando-se trata-se de documento, ora de ato documentado. Araken de Assis bem demonstrou a insuficiência de ambas as teorias, não sendo necessário, nas dimensões deste trabalho, adunar outros argumentos além daqueles já esgrimidos pelo processualista gaúcho.
Título executivo para os fins de proporcionar o início da execução será somente aquele a que a lei atribuir essa condição. Particulares não podem criar títulos executivos além dos assim considerados pela lei federal. No nosso direito processual civil, os títulos executivos podem ser judiciais (sentenças/acórdãos e decisões interlocutórias que antecipam os efeitos da tutela), especificados no art. 475-N do Código de Processo Civil e extrajudiciais, tais assim os definidos no art. 585 do Código de Processo Civil, além daqueles criados na robusta legislação extravagante a respeito do assunto.
Ao assunto voltaremos de forma pormenorizada logo após o exame dos demais princípios.
Princípio da autonomia
No auge do cientificismo do Direito Processual civil, cristalizou-se o entendimento de que o processo de execução possuía total autonomia em relação ao processo de conhecimento. As raízes desse entendimento são profundas e, provavelmente decorrem das origens romanistas do nosso direito e da histórica desconfiança dos iluministas franceses e relação aos juízes (que compravam seus cargos).
Nessa vereda, o Código de Processo Civil de 1973 na sua versão original, possuía três livros iniciais, cuidando cada um de um tipo de tutela, dotada de autonomia: o livro I para o processo de conhecimento; o livro II para o processo de execução; e o livro III para o processo cautelar, além do livro IV para os procedimentos especiais e o V para disposições finais e transitórias, que escaparam da taxionomia inicial.
Dentro dessa concepção, elaborada à imagem e semelhança de Liebman, o processo de execução possuía absoluta autonomia em relação ao processo de conhecimento. A execução, mesmo se consequente a um processo de conhecimento em que proferida sentença condenatória, supunha, sempre, a necessidade da instauração de uma nova relação processual (agora executiva) com o objetivo de realizar o direito conferido ao credor no processo de conhecimento. Começava-se um novo processo.  Não por outro motivo, o legislador editara, na versão original do art. 463 (Livro I do CPC), norma asseverando: ao publicar a sentença de mérito, o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional.
É verdade que os fatos não pedem licença a modelos teóricos: a parte que vai a juízo buscar indenização por danos causados ao seu patrimônio, não quer obter uma sentença condenatória, em que o devedor seja reconhecido como tal e instado a reparar o prejuízo. Essa separação não faz nenhum sentido para o autor. O que ele efetivamente almeja é obter no mundo sensível, no mundo real, uma situação que efetivamente signifique que o prejuízo foi ressarcido, apenas e tão somente isso. Não interessa a ele obter uma sentença condenatória e, após, iniciar novo processo, embora de outra natureza, até porque a experiência demonstrou que a consequência prática da eleição desse modelo autonomista era uma grossa demora na entrega do bem da vida, na conclusão da chamada atividade jurissatisfativa.
Com o advento das leis 8.952, de 1994, 10.444, de 2002, 11.232, de 2005, que instituiu um processo de conhecimento em que a última fase é o exato cumprimento (rectius, execução) da sentença, apelidado de processo sincrético, não parece fazer muito sentido falar em princípio da autonomia do processo de execução. Houve, com o advento das leis antes mencionadas, uma clara redução do âmbito de vigência material do Livro II do Código de Processo Civil de 1973, que regia, na sua versão original, toda a execução por crédito (fosse decorrente de título judicial, fosse decorrente de título extrajudicial) e  hoje regula apenas e tão somente a execução por título extrajudicial e, por outra razões, a execução da sentença condenatória contra a fazenda pública e contra o devedor de alimentos.
Autonomia haverá, portanto, somente em relação a essas últimas espécies de execução. Registre-se, por honestidade acadêmica, que o professor Araken de Assis oferece resistência à desconsideração do princípio da autonomia mesmo naquelas hipóteses em que houve integração da fase executiva ao processo de conhecimento, identificando, aí, pelo menos uma espécie de autonomia funcional (Manual da Execução, 14ª edição, Revista dos Tribunais, p. 110).
 princípio da patrimonialidade
Também apelidado de princípio da responsabilidade patrimonial, esse princípio quer significar que a execução dos tempos atuais possui o caráter real e não pode mais incidir sobre o corpo do devedor. A rigor, essa é uma conquista do vetusto direito romano. Com efeito, desde 326 a.C. que foi editada a Lex Poetelia Papiria para impedir a execução sobre o corpo do devedor civil. Até então, o credor poderia até mesmo matar o devedor inadimplente, ou vendê-lo como escravo trans tiberim (além do Rio Tibre); após a edição da lei, vedada a manus iniectio, estabeleceu-se a ideia de execução de caráter exclusivamente patrimonial, que hoje vem consignada no art. 591 do CPC: o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as estrições estabelecidas em lei.
Vale o apontamento de que esse princípio encontra exceções e abrandamentos no próprio Código de Processo Civil, consistentes na prisão de devedor por alimentos e nas técnicas executivas de que cogita o art. 461, na sua redação atual, que permite ao magistrado a adoção de várias medidas que extrapolam as fronteiras da patrimonialidade e ingressam na seara da pessoalidade: v.g., remoção de coisas e pessoas.
 princípio da máxima coincidência possível
A ideia que anima o princípio é a de que o credor que tem razão deve obter, com a execução, exatamente aquilo a que tem direito, tal como consignado na sentença ou no título executivo extrajudicial. O Estado deve assegurar-lhe, sempre que possível, esse resultado.
É certo que, algumas vezes, a prestação ordinariamente exigida se tornar impossível, ou porque a coisa a ser entregue se perdeu, pereceu, ou a obrigação a ser prestada é infungível e encontra invencível resistência por parte do devedor. Em situações que tais, deve o Estado dar ao credor, como diretor do processo executivo, a solução mais próxima da ideal (art. 461, caput) “que assegurem o resultado prático equivalente”, ou, na impossibilidade, permitir a convolação em indenização pecuniária, se assim o desejar o credor.
  princípio da menor onerosidade
O princípio da menor onerosidade possível tem pertinência com a ideia de que a execução visa à satisfação do direito do credor sem que isso signifique, entretanto, que deva ser instrumento de sua vingança pessoal. Não por outro motivo, o art. 620 do CPC deixa claro que, quando a execução puder ser realizada por mais de uma forma, o juiz deve determinar que seja feita pelo modo menos gravoso para o devedor.
A menor onerosidade conecta-se com a ideia do respeito à dignidade da pessoa humana, no sentido de que a execução não pode e não deve ser realizada quando, para a realização do direito de crédito do exequente, o devedor tiver de ser reduzido à condição análoga à de escravo, sem o mínimo necessário para sua subsistência.
Sabiamente, o legislador processual para atingir esse desiderato, colocou fora do alcance da execução certas parcelas patrimoniais do devedor (art. 649) que lhe garantam a condição humana, declarando, sobre tais bens, a absoluta impenhorabilidade, isto é, a impossibilidade de sobre eles incidir constrição do Estado para o fim da satisfação de eventual direito do credor.
 princípio da disponibilidade
A execução existe para satisfação do direito do credor. Não se lhe pode impor, entretanto, que lance mão do processo executivo, nem que continue na condução daquele que haja começado. Não por outro motivo, dispõe o CPC, no art. 569: o credor tem a faculdade de desistir de toda a execução ou de algumas medidas executivas. Fique claro, entretanto, que, se o executado houver oposto embargos à execução (isto é, uma ação de conhecimento, de natureza incidental, que normalmente visa a desconstituir o título ou demonstrar a sua inexigibilidade) será necessária a sua concordância dado que, a partir do ajuizamento da demanda incidental, também o executado passou aa ter direito a uma prestação jurisdicional sobre o título executivo que amparava a execução.
Depois eu conto o resto.
 
 

domingo, 9 de dezembro de 2012

Julgamento do STF e perda de mandato parlamentar


Todos os amigos que acompanham minhas investidas nas redes sociais, em especial no Facebook, podem testemunhar que sempre torci, como cidadão, para que, a ser verdade o que a imprensa apregoava, todos os culpados fossem exemplarmente punidos, respeitadas as garantias constitucionais atribuídas a qualquer pessoal julgada no Brasil, sem part pris de qualquer espécie.
Acompanhei pela televisão a maioria das sessões de julgamento e, pela leitura das peças do processo que relator e revisor empreenderam, mantive contato com grande parte das provas produzidas, a ponto de concluir que a condenação era um imperativo do Direito, um resgate da cidadania e da dignidade do povo e da política deste País, tão vilipendiados, um e outra, nesta quadra republicana.
Coloca-se, agora, a questão relativa à perda do mandato dos parlamentares que foram apenados com sentença transitada em julgado. Discute-se, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, se a perda de mandato é automática, como quer o Ministro Relator e atual presidente da Casa, ou se depende de processo instituído no âmbito do parlamento, como quer o Ministro revisor.
 No âmbito da dissidência, o argumento externo, aquele que é mostrado à sociedade, decorre, ao que parece, de uma dupla regência constitucional, encartada nos artigos 15 e 55 da Carta Política, que reproduzo abaixo:
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
I - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;
II - incapacidade civil absoluta;
III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;
IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;
V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.
 
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
I - que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;
II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;
IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;
VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
..............
§ 2º - Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 3º - Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
 
Sabido dos simplesmente iniciados nos estudos de Direito, que ainda não ultrapassaram o 5º semestre do curso superior, não se podem presumir antinomias entre normas de um mesmo sistema (sobretudo normas que possuem a mesma idade e a mesma estatura, como se dá no caso presente). Cabe ao intérprete, em caso de conflito aparente, tentar identificar com exatidão o âmbito de vigência (material, pessoal, espacial e temporal) de cada uma para superar a hesitação inicial.
            Na hipótese em apreço, parece claro que a norma do art. 15, que está lançada no Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo IV, Dos Direitos Políticos, é aplicável a todos os brasileiros, em princípio. É dizer, qualquer brasileiro poderá perder seus direitos políticos como decorrência de sentença penal condenatória transitada em julgado. Como, então, excluir desse universo, os parlamentares condenados na ação penal 470? O raciocínio excludente é absurdamente simples e verdadeiro. O preceito normativo do art. 55, encartado no Título IV, da organização dos Poderes, Capítulo I, Do Poder Legislativo, Seção V, Dos Deputados e dos Senadores, estabeleceu critério diferente daquele para os comuns mortais e criou uma espécie de redução do âmbito de vigência pessoal da norma do art. 15, que vale para todos, menos, no caso, para deputados e senadores (se se tratasse de eventual crime praticado por presidente da república, comum ou de responsabilidade, a simples incoação da ação penal estaria subordinada à deliberação prévia da Câmara).
             Vale lembrar: Perderá o mandato o Deputado ou Senador, (VI) que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. Ocorre que o § 2º desse art. 55 (e parágrafos têm função de explicitar ou excepcionar o caput) deixa claro que, no caso do inciso VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
            Ora, ainda que, se decorresse exclusivamente da minha vontade, os condenados já devessem estar na cadeia e sem nenhuma espécie de provento ou subsídio pago pelos cofres públicos (i.e, pelo meu, pelo seu, pelo nosso dinheiro), o certo é que a norma do art. 55 não autoriza, de nenhuma forma, a perda automática de mandato de parlamentares como consectário de condenação imposta pelo Supremo Tribunal Federal. Antes que qualquer neoalguma coisa saque algum neoprincípio da cartola, que pode desde já ser apelidado de princípio do voluntarismo, aduzo que o art. 55 da Constituição, § 2º, estabelece regra de competência, que, portanto, é de interpretação estrita.
            Não há, aí, espaço para transformar o § 2º do art. 55 da Constituição em mera proposição sintática, sem regência alguma (regendo, quiçá, um conjunto vazio), apenas e tão somente porque os atuais ministros da corte resolveram, ao arrepio daquilo que defluiu da vontade do constituinte originário, que o STF seria um superpoder, acima dos demais e infenso a controles, apenas controlador.
            Para além do argumento externo, há uma luta (antigamente, dizia-se uma luta surda) franca e aberta, voluntarista, que pretende a afirmação do Poder Judiciário como fiador e concretizador da democracia ou de garantidor e implementador das condições de possibilidade do processo democrático. Não tenho mais idade para acreditar no mito do ditador bonzinho, nem creio que a sociedade brasileira, que ainda é jovem, mas não é burra, continue assistindo, num impávido estado de catatonismo, à importação de conceitos hauridos da Europa continental, certamente inaplicáveis ao Judiciário brasileiro (construído em outras bases) e que, se aplicados à nossa realidade, rompem perigosamente o delicado equilíbrio da separação de poderes.
            Os maiores arautos do novo papel do Judiciário são justamente ministros das cortes superiores e doutrinadores que almejam esses cargos, numa espécie nada subliminar de advocacia pro domo sua, que merece o repúdio da sociedade e o repensar das formas de nomeação e investidura dos juízes das cortes superiores.
            Quem quiser continuar a incensar justiceiros que buscam atuar para além dos poderes constitucionais que lhes são deferidos, que o faça. Eu, de minha parte, não abro mão da minha cidadania em favor de quem foi ungido ao poder, com mandato vitalício, sem minha participação, nem da maior parcela da sociedade brasileira.

sábado, 1 de dezembro de 2012

RECURSOS: Teoria Geral


Considerações Gerais. Conceito de Recurso. Princípios. Pressupostos e Requisitos . Efeitos. Classificação

I.1 Considerações Gerais

Quando se examina o tema relativo aos recursos, em Direito Processual, a primeira observação que tem de ser levada em conta é a advertência da doutrina no sentido de que qualquer conceituação deve partir de um dado direito positivo. Não há possibilidade de encontrar um conceito amplo, geral e irrestrito, que seja capaz de englobar o que se tem por recurso nos diversos ordenamentos jurídicos.

De outra banda, parece que o legislador fez bem em não conceituar o instituto porque, vale a advertência, antes não conceituar do que conceituar mal (o que ocorreu com diversos outros institutos no Código de Processo Civil, como o litisconsórcio necessário e a coisa julgada). Deveras, um simples exame da doutrina mais à mão deixa claro que, mesmo havendo parcial convergência de opiniões entre os doutrinadores, nenhuma e igual a outra sobre a adequada e completa definição do termo.

Demais disso, impende considerar que, nos estreitos limites deste estudo, mais uma apostila do que qualquer outra coisa, não se poderia inovar ou tentar criar uma teoria geral do direito recursal, motivo por que afirmamos a necessidade de que sejam consultadas outras obras, além deste escrito e das indicadas na bibliografia de cada programa e de cada professor. Vamos ao tema.

A necessidade de ser ouvido mais de uma vez sobre o mesmo caso é quase um imperativo antropológico. Percebe-se isso até no seio familiar, em que as crianças, contrariadas pelo pai no atendimento de seus desejos, procuram a figura materna, como a pedir abrigo à pretensão exercida. Se contrariadas pela mãe, num primeiro momento, dirigem-se ao pai, sempre na tentativa de ver acolhido seu pleito. E assim é porque, como diz Leo Rosenberg:

"Toda resolucion puede ser injusta, y casi siempre la tendra par tal parte vencida. Par eso, los recursos estan al scervicio de los legitimos deseos de las partes de substituir la resolucion que les es desfavorable por outra mas favorable" .

Na seara do direito, os recursos servem para apaziguar os espíritos e funcionam como uma segunda força de convencimento sobre aquele que teve seus interesses contrariados pelo Estado, aquele que foi, de alguma forma, derrotado.

Além dessa função, os recursos também são um importante "meio de manutenção e controle da unidade do direito". E assim se dá porque há um dever/poder do detentor do monopólio da jurisdição de garantir ao jurisdicionado as condições de satisfação que constituem a promessa de todos os ordenamentos jurídicos que professam a ideia de estado democrático de direito (progresso individual, bem comum, segurança jurídica, implementação de direitos fundamentais consagrados na carta política, etc.).

A idéia de recurso, para fins de aproximação conceitual, está associada à de procedimento que permite a releitura do processo, sentido esse expresso pelo dicionário com 'percorrer novamente'. Assim, o recurso no segundo grau de jurisdição passa a ser considerado uma repetição do que ocorreu no primeiro grau.

É difundida a afirmação de que, até pela origem latina do termo — recursus —, o recurso de natureza processual teria origem em Roma, mais exatamente no período da cognitio extraordinem . Embora seja realmente muito importante para os povos ocidentais a vertente romana, o certo é que muito antes do florescimento do direito romano, já se conhecia, essa prática. Exemplos disso podem ser encontrados no livro do Êxodo (Bíblia Sagrada – NVI, 2001, EX:18:13-26), em que se percebe uma estrutura judiciária centrada na figura de Moisés.

É certo, entretanto, que, para os povos ocidentais, mais interessa o que se passa a partir do direito romano, sobretudo a partir do período da cognitio extraordinaria em diante, quando, em decorrência da extinção das duas fases processuais (primeiro havia uma fase in jure, que se passava perante um funcionário do Estado; depois havia uma fase in judicio, que se passava perante um juiz privado, que não fazia parte da estrutura de poder estatal e que não se subordinava a ninguém) que marcaram os dois períodos anteriores em que se divide o Direito Romano (período das ações da lei e período formulário), começa a ganhar forma a figura da appelatio como uma maneira de recorrer ao detentor do poder político.

Essa tendência consagrou-se, mais tarde, no Corpus Juris Civilis e daí em diante acompanhou todo o evolver da civilização. É indicado como certo, entretanto, que a Revolução francesa seria origem do reexame e do duplo grau de jurisdição. As fontes históricas não admitem essa conclusão, embora seja admissível dizer que, com a Revolução, houve um maior grau de institucionalização do duplo grau de jurisdição, que é a base lógica da existência dos recursos.

No Brasil, que é, no particular, tributário do Direito Português, as origens dos recursos podem ser buscadas desde as Ordenações Afonsinas, passando pelas Ordenações Manuelinas e pelas Filipinas. A rigor, aliás, mais de duzentos anos antes da edição das Ordenações Afonsinas — registra o professor Luís Carlos Azevedo — mais exatamente durante o reinado de D. Afonso III (1248 a 1279) tem-se com precisão a indicação do acolhimento da apelação (1254/1261) como se fosse uma espécie de certidão de nascimento do direito recursal de Portugal. Após esse momento legislativo, reafirmado por D. Dinis, sucessor de D. Afonso III, solidificou-se a idéia de recurso — que, aliás, funcionava, em muitos momentos, como elemento de confirmação do exercício do poder político central — tendo passado com maior ou menor largueza para o direito das ordenações.

No Brasil Império, a Constituição de 1824, em seu artigo 158, também previu a existência das Relações nas províncias, do que se depreende a ideia da adoção de instâncias múltiplas e verticalizadas para julgamento das demandas judiciais. Daí para frente, todas as constituições brasileiras seguiram o mesmo modelo, com alteração de órgãos, de nomes desses órgãos, mas sempre mantida a estrutura verticalizada.

A atual Constituição, em seu artigo 5°, inciso LV ("aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes"), permite o entendimento de que o direito de recorrer é inerente aos princípios do contraditório e da ampla defesa. O recurso é, portanto, parte integrante do processo, funcionando como uma modalidade do direito de ação (rectius como continuação do seu exercício) exercido no segundo grau de jurisdição.

No que concerne a esse princípio, vale ressaltar que o entendimento comum da doutrina é o de que toda decisão judicial deve poder ser submetida a novo exame, de modo que a segunda decisão prevaleça sobre a primeira, tornando possível a correção de erros. Isso não quer dizer, entretanto, que esteja vedado ao legislador ordinário o estabelecimento de restrições ao direito de recorrer, dado que o sistema constitucional brasileiro trabalha com princípios de variados matizes (algumas vezes em concorrência, outras em colisão) que devem ser aferidos em determinadas circunstâncias, ora prevalecendo uns, ora outros, sem que se cogite de sua expulsão do ordenamento jurídico.

Por dever acadêmico, é imperioso registrar que a admissão do duplo grau de jurisdição, como princípio imanente ao devido processo legal, não goza de unanimidade. Orestes Nestor de Souza Laspro, por exemplo, afirma que "duplo grau de jurisdição é mecanismo adotado sem maior reflexão, com base mais em aspectos histórico-políticos que jurídicos. [...] Representa obstáculo à eficiência da organização judiciária, na medida em que não se pode demonstrar cientificamente, que atinja de modo eficaz a única meta para ser mantido, qual seja, a de que a decisão de segundo grau é 'melhor' que a de primeiro".

Ora, não se quer abrir debate a esse respeito, mas parece razoável entender que as instâncias recursais, pelo menos em tese, são compostas de julgadores mais tarimbados, experimentados pelos anos de judicatura, desprovidos de arroubos juvenis, que decidem de forma normalmente colegiada (embora, no direito brasileiro, exista uma clara tendência para que os órgãos de segundo grau passem a decidir, cada vez mais, de forma monocrática), o que faz lícito esperar que as decisões de segundo grau espelhem um grau de acerto (justiça) maior do que aquelas de primeiro grau.

Vale a anotação, de passagem, no sentido de que não há dúvidas sérias, do ponto de vista doutrinário, sobre a inexistência de um terceiro ou um quarto grau de jurisdição. Há, sim, para a doutrina, instâncias superiores (normalmente apelidadas de instâncias de superposição ao segundo grau, às quais cabe o julgamento dos chamados recursos excepcionais, mas o exame desses recursos (extraordinário e especial) não visa precipuamente à proteção do direito de que cogita o recorrente ao exercer sua pretensão; visa, isso sim, à proteção da lei federal (e da sua unidade de aplicação) e da Constituição. Somente de forma consequencial (isto é, como corolário da defesa do direito objetivo) é que esses recursos resguardam o direito subjetivo do recorrente.

I.2 Conceito de Recurso


Como já assinalado anteriormente, o conceito de recurso não é algo que seja pacífico em doutrina. Há, entretanto, a possibilidade de indicar alguns pontos de contato entre as várias tentativas, sendo sempre considerado, para os fins de nosso estudo, o ordenamento positivo brasileiro.

O primeiro aspecto relevante é o fato de os recursos fazerem parte de processo em curso, não constituindo, portanto, outra relação processual independente. Nesse sentido, é também compreendido como um apêndice, um complemento do procedimento da instância inferior (NERY Jr., 1993, p.49). Carnelutti o vê como um procedimento endoprocessual (in: PINTO, 2002, p. 28). Em outras palavras, os recursos são exercitáveis na mesma relação jurídica processual em que foi proferida a sentença recorrida (NERY Jr., 1993, p. 35). Há, por certo, outras formas de hostilizar uma decisão judicial, fora da relação jurídica processual em que proferida. Essas formas, entretanto, não são consideradas, entre nós, recurso.

É usual dizer que os recursos são espécies do gênero remédio. A nós, repugna a utilização vocacionada à farmacologia (até porque há direito de recorrer ainda que a sentença não esteja doente, não possua nenhuma espécie de vício). A ciência jurídica trabalha com outros institutos e outras categorias que são plenamente capazes de albergar os recursos. Preferimos, por isso, dizer que o recurso tem caráter de ônus processual. É, pois, uma situação jurídica ativa (como prelecionava Miguel Reale), no sentido de que se destina à satisfação de um interesse próprio, o que a distingue de um dever, destinado à satisfação de um interesse alheio. Sua não-realização tem como consequência a perda de possível posição de vantagem no processo.

Os objetivos do recurso, (rectius, do recorrente, quando dele se utiliza) são a invalidação, a reforma, a integração ou o esclarecimento de uma decisão judicial. Para o Estado, os objetivos são a promoção da melhor, mais sistemática e precisa aplicação da lei, velando pela integridade do ordenamento jurídico.

A teor do disposto no artigo 499 do Código de Processo Civil, os recursos podem ser opostos/interpostos pelas partes litigantes, pelo Ministério Público ou por um terceiro. Somados esses elementos é possível apresentar uma definição razoável: Recurso é o ônus processual que a lei coloca à disposição das partes, do Ministério Públio ou de um terceiro, para que, na mesma relação jurídica processua1, em continuidade ao exercício do direito de ação, possam postular a anulação, a reforma, a integração ou o esclarecimento de decisão judicial.

A rigor, são recorríveis os os atos jurisdicionais que caracterizem decisões interlocutórias ou sentenças/acórdãos (desde que presentes, por óbvio os pressupostos exigidos em lei). Atos de mero expediente, a princípio, por não expressarem juízo de valor, não ensejam o aviamento de recurso. Sem embargo disso, se, sob a nominação de despachos, despachos de mero expediente, atos de expediente, ou qualquer outra, se ocultar pronunciamento judicial de conteúdo decisório, é possível a sua correção por meio de recurso.

Como já vimos alhures, dos meios processuais através dos quais se pode impugnar uma decisão judicial, os recursos são apenas uma espécie, que somente cabem enquanto a decisão judicial não transitou em julgado (aliás, uma das virtualidades do recurso é justamente a de retardar a formação do trânsito em julgado). Quando se trata de decisão transitada em julgado, o meio de impugnação deve ser procurado dentre as chamadas ações impugnativas autônomas, ressalvado o caso da ação de mandado de segurança que (desafortunadamente) embora seja uma forma impugnativa autônoma, é dirigida contra decisão não transitada em julgado.

Entre essas formas impugnativas, temos a ação rescisória, a ação anulatória de que trata o artigo 486 do Código de Processo Civil, e o já mencionado mandado de segurança. Todos esses meios, entretanto, dão ensejo ao surgimento de nova relação jurídico-processual.

I.3 Princípios Recursais


Praticamente todos os manuais de Teoria Geral do Processo cuidam da divisão dos princípios relativos ao direito processual civil em (i) princípios informativos; e (ii) princípios fundamentais. Os princípios informativos são: lógico; jurídico; político; e econômico. Já os princípios fundamentais norteiam-se por um viés mais ideológico, seguindo a orientação do sistema jurídico a que esteja vinculado o direito recursal, e trazem, em decorrência disso, grande fonte de discussão doutrinaria, da qual procuraremos nos afastar.

Cingimo-nos, aqui, à analise desses princípios fundamentais, aplicáveis aos recursos no atual ordenamento jurídico brasileiro, seguindo a trilha aberta pelo Professor Nélson Nery Junior.

I.3.1 Princípio do duplo grau de jurisdição


Já a ele fizemos menção em momento anterior. É necessário, entretanto, trazer outras achegas. Vale dizer, nesse sentido, que a Constituição de 1824 já o previa, ilimitadamente, de modo claro e irrestrito, no seu artigo 158:

"Para julgar as causas em segunda e última instância haverá nas Províncias do Império as Relações, que forem necessárias para a comodidade dos povos".

Apesar disso, sempre se entendeu que os textos constitucionais (esse e os subsequentes) permitiam a imposição de limites à aplicação desse princípio, por meio de normas infraconstitucionais, como se percebe, por exemplo, do exame do Regulamento 737, de 25.11.1850, onde o cabimento do recurso estaria ligado ao valor da causa.

É verdade, também, que o princípio do duplo grau de jurisdição não se encontra expressamente indicado na Constituição de 1988, mas está diretamente relacionado com o princípio do devido processo legal, presente no artigo 5°, LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"; e também encontra respaldo no fato de que se atribuiu, aos órgãos do Poder Judiciário, competência recursal ordinária.

Este princípio, claramente, relaciona-se com a vontade do constituinte de evitar abusos de poder por parte do juiz, dado que o juiz único poderia tornar-se despótico, e de sua decisão não caberia recurso ou reclamação. Assim, o ordenamento brasileiro, a exemplo de outros ordenamentos jurídicos, previu que a decisão emanada do juiz estivesse sujeita a revisão por outro órgão do Poder Judiciário.

I.3.2 Princípio da taxatividade

O principio da taxatividade recursal implica que só se considera recurso aquele que se encontra previsto em lei federal e que somente por lei federal pode ser criado. Na seara do direito processual civil, além de eventuais recursos criados por lei federal extravagante, os recursos estão enumerados no artigo 496, in verbis:

Artigo 496. São cabíveis os seguintes recursos:

I - apelação;

II- agravo;

III - embargos infringentes;

IV - embargos de dec1aração;

V - recurso ordinario;

VI - recurso especial;

VII - recurso extraordinário;

VIII - embargos de divergência em recurso especial e em recurso extraordinário.

Esse artigo constitui a referência da presença da taxatividade do sistema recursal. Deveras, no caput, o legislador utilizou o termo "seguintes" para designar os recursos que seriam cabíveis. Em outras palavras, pode-se afirmar que somente os meios de impugnação ali descritos serão considerados pela lei como sendo recursos. Confirma NELSON NERY JUNIOR que: "Este artigo é correspondente à síntese de todo o sistema recursal no processo civil brasileiro, relativamente à previsão e cabimento dos recursos" (NERY Jf. 1993. pp. 46).

Adicionalmente, é necessário ter em conta que, pelo princípio da taxatividade, considera-se vedada a criação de outros recursos, seja por leis estaduais, seja por Regimentos Internos de Tribunais, que, aliás, têm o vezo de legislar em matéria processual.

À falta de previsão legal, não são considerados recursos (embora sejam considerados como sucedâneos de recursais): (i) o pedido de reconsideração, que não suspende, nem interrompe o prazo para interposição de verdadeiros recursos; (ii) a correição parcial; (iv) a remessa obrigatória ou reexame necessário, previsto no artigo 475, não é recurso, mas elemento indispensável e integrativo da sentença que somente se formará e terá aptidão para transitar em julgado após o exame pelo tribunal de segundo grau; (iv) a ação rescisória (artigo 485); (v) os embargos de terceiro (artigo 1.046); (vi) a medida cautelar inominada (arts. 798 e 799), ainda que aviada para tentar conferir efeito suspensivo a recurso; (vii) os agravos exclusivamente regimentais; (viii) o mandado de segurança contra ato judicial.

I.3.3 Princípio da Singularidade


Segundo o principio da singularidade (também chamado princípio da unirrecorribilidade), para cada ato judicial recorrível há um único recurso previsto pelo ordenamento, sendo vedada a interposição cumulativa ou simultânea de mais outro visando à impugnação da mesma sentença ou acórdão. Isso não significa que não possam as partes interpor cada uma um recurso da mesma decisão, na hipótese de haver sucumbência recíproca.

O Código Buzaid, procurou definir, no artigo 162, os atos decisórios do juiz. Após, em outros momentos, estabeleceu o cabimento de determinado recurso para cada um esses atos, numa espécie de correspondência biunívoca, acolhendo, assim, este principio da singularidade.

Não se confundem o princípio da taxatividade, que elenca o rol dos recursos disponíveis, e o princípio da singularidade, que exerce a adequação entre o que está previsto e o que é, de fato, cabível. Apesar de as expressões cabimento e adequação serem similares, não são sinônimas. Por cabimento temos de entender a previsão de recorribilidade de determinada espécie de decisão judicial. Por adequação, a previsão legal que re1aciona a decisão eventualmente desfavorável e o recurso já previsto na legislação de regência.

Vezes há em que se indica, em sede de doutrina, exceções a esse princípio, por exemplo, dizendo que uma mesma decisão desafia embargos de declaração e recurso de apelação (ou outro recurso qualquer); ou que um acórdão pode ser atacado por embargos infringentes, recurso especial e recurso extraordinário. Se se atentar bem, entretanto, ver-se-á que não se trata de verdadeiras exceções, por diferentes razões. Na primeira hipótese, os embargos de declaração (que, num exame puramente lógico conceitual não caberiam no conceito de recurso) são tirados e somente após a prolação da nova decisão, de caráter integrativo, é que seria possível a interposição da apelação. Não pode, entretanto, a mesma parte, ao mesmo tempo, opor embargos e interpor recurso de apelação. Na segunda hipótese, é necessário verificar que, se couberem embargos infringentes e recursos especial e extraordinário é porque houve, no acórdão que reformou a decisão de primeiro grau ou julgou procedente a ação rescisória, partes decididas de forma unânime e outras decididas de forma não-unânime. Em outras palavras, embora a decisão seja formalmente una, terá ocorrido o julgamento de mais de uma lide, a que correspondem os vários capítulos da decisão. No mesmo sentido, veja-se Araken de Assis (1999, p. 16) e Barbosa Moreira (2001, p. 249).

No que concerne à simultaneidade do recurso extraordinário e especial, o nosso entendimento de que não está excepcionado o princípio da singularidade funda-se em que cremos que esses dois são, na verdade, um único e mesmo recurso extraordinário, julgado em dois momentos distintos, por dois diferentes órgãos do Judiciário, em decorrência de uma divisão de competência funcional (i.e. atribuição de competência a mais de um órgão da jurisdição para atuar num mesmo processo), fixada em razão da matéria.

 I.3.4 Princípio da Fungibilidade

Este princípio, de inegável utilidade prática, não foi albergado expressamente pelo atual Código de Processo Civil, diferentemente do tratamento que lhe dispensou o Código de 1939, que em seu artigo 810 previa esta possibilidade.

"Artigo 810. Salvo hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou turma, a que competir o julgamento".

O legislador de 1973 entendeu que, ao simplificar o sistema recursal, não haveria necessidade de manter um princípio que permitiria o recebimento de recurso inadequado, dado que não ocorreriam mais dúvidas, e que, se tivesse havido a interposição de um recurso por outro, a hipótese deveria, obrigatoriamente, ser de má-fé ou de erro grosseiro. Depois de certo tempo de vigência do novo código, percebeu-se que a suposta simplificação não fora tão eficiente assim e que remanesciam hipóteses de dúvida objetiva quanto ao recurso que deveria ser interposto. Assim, a doutrina e a jurisprudência passaram a admitir a continuidade da aplicação do princípio da fungibilidade, a fim de não prejudicar o recorrente.

A hipótese é, pois, de interposição incorreta de recurso, ou seja, ao recorrer de determinado ato judicial, a parte interpõe recurso diverso do que deveria ser usado para o caso específico, o que, a rigor da lei, implicaria o não-conhecimento da peça de irresignação porque, já se viu, não basta o interesse do legitimado em impugnar o ato decisório, mas é preciso que o recurso utilizado seja o adequado para a espécie. Incidindo o princípio da fungibilidade, é possível o aproveitamento desse recurso, que será examinado como se interposto corretamente. Neste mesmo sentido, NELSON NERY JUNIOR define o princípio como aquele pelo qual se permite a troca de um recurso por outro: o tribunal pode conhecer do recurso erroneamente interposto. (NERY Jr. 1993. pp. 690-691).

Esse princípio tem íntima conexão com o da instrumentalidade das formas, acolhido no Código de Processo Civil, por meio do qual é possível entender que o que se deve visar na moderna técnica processual é à finalidade dos atos e não apenas formalismos, isto é, o culto da forma pela forma, os quais podem não refletir o uso coerente do direito e desatender aos fins a que ele se destina.

Na vertente de 1939, o princípio de fungibilidade, exigia duas condições negativas para a sua aplicação: o erro grosseiro e a má-fé. O erro grosseiro poderia ser aferido, por exemplo, quando houvesse disposição expressa e induvidosa de lei dizendo qual o recurso cabível, sem que houvesse dissenso sério na doutrina e jurisprudência quanto ao tema. A má-fé seria aferível pelo emprego de recurso cujo prazo de interposição fosse superior ao do recurso realmente cabível, como forma de contornar eventual perda de prazo.

Frente a isso, hoje em dia, a doutrina moderna criou alguns requisitos para permitir a aplicação do princípio da fungibilidade: o primeiro requisito, já mencionado anteriormente, é a existência de dúvida objetiva sobre qual o recurso correto a ser interposto, dúvida essa que pode se verificar quando: (i) o código de processo civil designa uma decisão interlocutória como sentença ou vice-versa, contrariando a própria definição legal; (ii) a doutrina e/ou a jurisprudência divergem quanto à classificação de determinados atos judiciais e, consequentemente, quanto ao recurso adequado; (iii) o juiz profere um pronunciamento em lugar de outro. A dúvida objetiva não alberga inseguranças pessoais dos patronos das partes, ou deficiências de natureza técnica. Dizendo de outro modo, se o recurso adequado estiver expresso em lei e se a decisão proferida for compatível com a sua previsão legal, não há dúvida objetiva. Se interposto outro recurso no lugar do que deveria ter sido, o que há é o desconhecimento do texto legal.

1.3.5 Princípio da Dialeticidade


O princípio da dialeticidade impõe a necessidade de que o recurso esteja devidamente fundamentado, não bastando, somente, para que o recurso seja apreciado, a existência de manifestação da parte dizendo que deseja recorrer. Em outras palavras, o recorrente deve dar as razões pelas quais entende necessário o reexame da decisão. Somente assim a parte contrária poderá ofertar as suas razões, defendendo o ato impugnado, atendendo ao contraditório em sede recursal. O recurso deve conter os fundamentos de fato e de direito que embasam a irresignação recorrente, assim como o pedido de nova decisão.

A exigência de motivação, que consubstancia o princípio da dialeticidade encontra respaldo no Código de Processo Civil, especificamente para os diversos tipos de recurso, a saber: para a apelação (artigo 514, II e III); para o agravo (artigo 524 e 525); no caso do agravo retido (artigo 523, § 3°); para os embargos de declaração (artigo 536); para o recurso ordinário (artigo 540); e para os recursos especial e extraordinário (artigo 541).

É importante ressaltar que a ausência da apresentação das razões do recurso acarreta o seu não conhecimento, sendo caso de inépcia recursal (cf. NERY JR. 1993. pp. 146).

1.3.6 Princípio da Voluntariedade


O recurso, no que concerne ao seu conteúdo, se compõe de duas partes distintas: a declaração expressa sobre a insatisfação com a decisão proferida (e o correspondente pedido de anulação, reforma ou integração), conhecida como elemento volitivo; e os motivos que geraram essa insatisfação, que seriam o elemento de razão ou descritivo. Assim, o recurso interposto sem o conhecimento e vontade da parte não pode ser conhecido (NERY Jr. 1993. pp. 149). Exemplifica o mesmo Nelson Nery Junior que uma manifestação desse princípio seria o não-conhecimento do recurso em decorrência da verificação de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer, tal como a renúncia ou a desistência do recurso. Faltaria, portanto, a vontade inequívoca de recorrer. O que se pretende, em resumo, e garantir a lisura de uma decisão excepcional e de relevante repercussão para a sociedade, extravasando interesses das próprias partes.

1.3.7 Princípio da irrecorribilidade em separado das interlocutórias


Por este princípio (que encontra maior abrigo no Direito do Trabalho), entende-se que, a bem da celeridade processual (a razoável duração do processo de que fala a Constituição), as decisões interlocutórias não devem ser impugnadas de forma independente.

É claro que a adoção desse princípio varia de ordenamento para ordenamento e de um momento histórico para o outro. Com o advento do Código de 1973, todas as decisões interlocutórias passaram a ser atacáveis via agravo de instrumento. Isso, entretanto, não vulnerava a marcha do processo justamente porque esse recurso não era dotado de efeito suspensivo, a não ser naquelas hipóteses em que coubesse a aplicação do artigo 558 do CPC. Hoje em dia, há uma tendência, no direito brasileiro, bastante forte para colocar o agravo de instrumento numa espécie de limbo jurídico, substituindo-o pelo agravo retido (mal comparando, uma espécie de protesto na justiça do trabalho cujo objetivo é impedir a ocorrência da preclusão). Em Portugal, desde o início de 2008, já se encontra em vigor a nova sistemática recursal na qual, para os processos novos, não mais cabe falar em recurso de agravo, em integral acatamento do princípio sob estudo.

1.3.8 Princípio da Complementariedade


No direito processual civil não se admite a interposição do recurso, em determinado momento, e a posterior dedução das razões que o fundamentam em outro. Dizendo de outra maneira, os recursos devem ser interpostos no prazo previsto na lei, juntamente com as razões do inconformismo, dando-se de logo a chamada prec1usão consumativa. Se não foram aduzidas razões ou o foram de forma incompleta, nada mais poderá fazer o recorrente a esse respeito. O princípio da complementariedade excepcionaria esse entendimento (é, pois, uma exceção e não um princípio).

Para NELSON NERY JUNIOR: "Pelo princípio da complementaridade, o recorrente poderá complementar a fundamentação de seu recurso já interposto, se houver alteração ou integração da decisão, em virtude de acolhimento de embargos de dec1aração" (NERY Jr. 1993. pp. 152). Em outras palavras, a única hipótese que se visualiza de complementaridade diz respeito aos casos em que, tendo havido sucumbência recíproca, a decisão atacada é alterada supervenientemente à interposição de recurso por uma das partes: é o caso, por exemplo, de alteração do decisório em embargos de dec1aração, já tendo outra parte interposto recurso de apelação. Terá direito, portanto, de completá-la.

1.3.9 Princípio da Proibição da Reformatio in Pejus


A expressão reformatio in pejus designa a reforma da decisão judicial, em prejuízo para o recorrente. Ocorrência desse jaez não se compadece com o ordenamento processual civil. Objetiva-se, com a adoção do princípio, evitar que o tribunal destinatário do recurso possa decidir de maneira agravar a situação do recorrente, ultrapassando o âmbito de devolutividade fixado com a interposição do recurso; desde que, por óbvio, não tenha havido recurso da parte contrária.

Assim deve ser em respeito ao efeito devolutivo restrito na própria peça recursal. Não pode o tribunal ir além dos limites fixados no pedido recursal, prejudicando quem recorre.

Cabe uma anotação lateral. A rigor não se poderia falar de proibição de reformatio in pejus nas hipóteses relativas à remessa obrigatória de que trata o artigo 475 do CPC, quando por outro motivo não fosse, em decorrência do fato de que remessa obrigatória não é recurso. Sem embargo disso, a jurisprudência vem se fixando em sentido contrário ao aqui sustentado, já havendo súmula do STJ (Súmula nº 45) asseverando que é defeso ao judiciário, no reexame necessário, agravar a condenação imposta à fazenda pública.

1.4. Pressupostos ou requisitos de admissibilidade recursal


Os requisitos dos recursos são os elementos que hão de estar presentes no recurso para que este possa ser aprovado no exame preliminar da sua admissibilidade. Hão de ser preenchidos para que o órgão julgador do recurso possa analisar-lhe o mérito. Bernardo Pimentel Souza (2000, p. 46-47) lembra que no Código de Processo Civil brasileiro são usados ambos os termos indicados na epígrafe sem explicitação de diferenças, quais sejam: requisitos (ex. artigo 540, caput) e pressupostos (ex. artigo 518, parágrafo único), sendo eles, portanto, para o legislador processual, equivalentes.

Araken de Assis (1999, p. 13) lembra sua natureza de ordem pública, devendo ser examinados de ofício e a qualquer tempo pelo órgão julgador. Se não forem os mesmos o órgão perante o qual se interpõe o recurso e o órgão que deverá julgá-lo, haverá dois juízos acerca da admissibilidade recursal, sendo o primeiro, exercido pelo juízo a quo, de natureza provisória e não-vinculante. Deve ser explícito e fundamentado, sendo lícito ao órgão ad quem fazê-lo de forma implícita apenas se o seu conteúdo for positivo. Do recurso em que presentes todos os requisitos, diz-se conhecido; do recurso cujo exame de mérito foi obstado pela ausência de qualquer deles, diz-se não-conhecido.

Classificam-se os pressupostos de admissibilidade em intrínsecos e extrínsecos. Segundo Barbosa Moreira, os primeiros dizem respeito à própria existência do poder de recorrer (2001, p. 262) e são o cabimento, a legitimidade, o interesse e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer. Quanto aos últimos, ligam-se ao modo de exercer esse direito e são a tempestividade, a regularidade formal e o preparo. Nelson Nery Jr., embora concorde com essa forma de c1assificar, define os requisitos intrínsecos como os que "dizem respeito à decisão recorrida em si mesma considerada" (1997, p. 238), sendo eles o cabimento, a legitimidade e o interesse, e os requisitos extrínsecos como fatores externos à decisão atacada, estando aí inc1uídos a tempestividade, a regularidade formal, o preparo e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo.


Além desses requisitos, podem existir outros, exigidos especificamente para determinados recursos, como o prequestionamento para os recursos especial e extraordinário. É possível que alguns desses requisitos não sejam exigíveis em relação determinado recurso ou em relação a algum recorrente, como o preparo, que é dispensado no agravo retido, nos embargos de declaração (seja quem for o recorrente) e para a Fazenda Publica (seja qual for o recurso).

1.4.1 Cabimento


Nelson Nery Jr. (1997, p. 239-240) ensina, na esteira da doutrina consagrada, que o cabimento do recurso diz respeito ao binômio recorribilidade-adequação, ou seja, um recurso ser cabível significa que a decisão atacada é tida por recorrível no sistema jurídico e, ainda, que o recurso aviado é aquele previsto in abstracto como apto à provocação da sua modificação. Exemplifica apontando que a sentença é tida por decisão recorrível, cujo recurso adequado, segundo o CPC, é a apelação.

São irrecorríveis no sistema jurídico brasileiro os despachos de mero expediente. Contra os demais atos do juiz (ou do órgão julgador), estão previstos no artigo 496 do CPC, em rol taxativo (ASSIS, 1999, p. 19): apelação, agravo, embargos infringentes, embargos de declaração, recurso ordinário, recurso especial, recurso extraordinário e embargos de divergência.

A apelação é o recurso cabível contra a sentença, quer se trate de sentença meramente processual, quer se trate de sentença que haja resolvido o mérito. Bernardo Pimentel Souza aponta três exceções ao cabimento de apelação de sentença: a primeira consta do artigo 105, inciso II, alínea 'c', da Constituição Federal, e do artigo 539, inciso II, alínea 'b', do Código de Processo Civil. Da sentença proferida em causa internacional cabe recurso ordinário para o Superior Tribunal de Justiça; a segunda exceção esta prevista no artigo 34 da Lei n. 6.830/80. Com efeito, cabem embargos infringentes de alçada contra sentença proferida em ação regulada pela Lei n. 6.830/80, e com valor da causa inferior ou igual ao teto legal; a última exceção ao binômio sentença-apelação consta do artigo 41 da Lei n. 9.099/85. Realmente, da sentença proferida em ação submetida ao rito da Lei n. 9.099/95 cabe recurso inominado - e não apelação. (SOUZA; 2000, p. 48).

O agravo a que se refere o artigo 496 do CPC é gênero do qual são espécies o agravo de instrumento, o agravo retido e o agravo interno, além do agravo de instrumento contra decisão de inadmissão de recurso especial ou extraordinário. Os arts. 522 e seguintes do Código de Processo tratam dos agravos, retido e de instrumento, contra decisão interlocutória proferida no primeiro grau de jurisdição. O agravo de instrumento do artigo 544, por sua vez, é o recurso cabível contra inadmissão de recurso especial ou extraordinário.

O artigo 557, § 1°, do mesmo diploma legal trata do agravo interno, cabível contra decisão (monocrática) de relator em Tribunal.

Os embargos infringentes estão regulados pelo artigo 530 do CPC brasileiro e são cabíveis quando decisão colegiada não-unânime tiver julgado procedente ação rescisória ou, em apelação, tiver reformado a decisão de primeiro grau. A jurisprudência do STJ entende não serem cabíveis os embargos infringentes quando o dissenso ficar restrito a questão decidida em embargos de declaração (por exemplo, a aplicação da multa prevista no artigo 538 do CPC), ao argumento de que essa parte da decisão dos embargos de dec1aração não apresenta o efeito integrativo (como é normal nos embargos declaratórios) do acórdão da apelação.

Os embargos de declaração são oponíveis, tanto de sentença quanto de acórdão, bem como de qualquer decisão interlocutória, desde que omissos, obscuros ou contraditórios. Esses são requisitos específicos dos embargos de declaração, como já se apontou ser possível existir.

Cabe recurso ordinário, nos termos do artigo 539 do CPC e também dos arts. 102, II, 'a', e 105, II, 'b', da Constituição Federal, para o Supremo Tribunal Federal ou para o Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, de habeas corpus, mandado de segurança, habeas data e mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, quando denegatória a decisão e crime político; ou habeas corpus e mandado de segurança denegados em última ou única instância pelos tribunais federais ou estaduais, alem das causas envolvendo de um lado, Estado estrangeiro ou organismo internacional, e, de outro, Município ou pessoa residente ou domiciliada no Brasil.

Os recursos especial e extraordinário são cabíveis quando a decisão recorrida afrontar a lei federal ou a Constituição, sendo julgados, respectivamente, pelo STJ ou pelo STF, e regulados na Constituição, nos artigos 102, III, e 105, III, e também no CPC, na Seção II do Capitulo VI do Titulo X do primeiro livro. Quanto ao cabimento, há varias especificidades, como por exemplo, na hipótese de interposição do recurso especial com base na alínea "c" do supracitado artigo 105, III, da CF, a divergência jurisprudencial há de ter ocorrido entre tribunais diversos, ao teor da Súmula 13 do STJ.

Finalmente, quanto ao tema cabimento, os embargos de divergência são o recurso cabível contra acórdão, unânime ou não, proferido em recurso especial ou extraordinário, nas hipóteses do artigo 546 do Código de Processo, ou seja, de divergência de entendimento entre turmas, entre turma e seção, ou entre qualquer destas e o órgão especial, no primeiro caso, e entre turmas ou entre turma e plenário, no ultimo caso. Assim sendo, não cabem embargos de divergência se uma turma do STJ decidiu questão federal em desacordo com o que foi decidido em outra oportunidade pela mesma turma ou contra decisão monocrática do relator, ou ainda contra acórdão em agravo regimental em agravo de instrumento, exceto se neste acórdão a turma examinar o próprio mérito do recurso especial.

1.4.2 Legitimidade

Bernardo Pimentel Souza (2000, p, 49), a quem sempre rendemos nossas homenagens, ensina que legitimidade recursal é o requisito que se traduz na exigência de que recurso seja interposto por quem tem o poder de recorrer, por força de lei. Nos termos do artigo 499, caput, do CPC, são legitimados: a parte vencida, o Ministério Público e os terceiros prejudicados. Quanto à parte, alerta Araken de Assis (1999, p. 23) que é irrelevante a sua ilegitimidade para a causa, podendo ser exatamente este o objeto do recurso.

Os sucessores a título universal ou singular, em decorrência de fato posterior à decisão (se a sucessão se deu por fato anterior à decisão impugnada, não há dúvida, sendo certo que, neste momento, ja figuraria como parte o sucessor), sem devolução do prazo, exceto se por causa mortis se deu a sucessão (MOREIRA, 2001, p. 291), sendo necessário o procedimento de habilitação de que cogita o artigo 1055 do Código de Processo Civil. Os assistentes também podem recorrer, salvo se o assistido desistir da ação, reconhecer a procedência do pedido ou transigir, nos termos do artigo 53 do Código.

Quanto aos terceiros intervenientes (opoente, nomeado, denunciado chamado), são partes, desde o momento em que passaram a integrar a relação processual, não havendo nenhuma peculiaridade em relação a eles. Recorrem como qualquer outro que tenha legitimidade recursal.

A legitimidade do Ministério Público é diferenciada, já que ele pode recorrer, tanto na condição de parte (e aí, também, não há nenhuma especificidade), quanto como fiscal da lei, sendo que, nesse ultimo caso, cabe esclarecer que o processamento do recurso ministerial não fica condicionado à existência de recurso da parte (tal como explicitado pela Sumula nº 99 do STJ), diferentemente do que ocorria no regime do CPC de 1939, em que a questão suscitava dúvidas (MOREIRA, 2001, p.295).

O terceiro somente terá legitimidade, nos termos do artigo 499, se tiver sido prejudicado pe1a decisão recorrida, ou seja, o recurso interposto pelo terceiro dependerá do cumprimento de urn requisito extra, qual seja a demonstração do nexo de interdependência entre o seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida ao exame judicial (artigo 499, § 1°). Assim, não é qualquer terceiro legitimado para recorrer no ordenamento brasileiro. Somente o terceiro que ostente a condição de prejudicado, atingido pela decisão impugnada, poderá fazê-lo.

Quanto à legitimidade do terceiro prejudicado e do Ministério Público (na qualidade de fiscal da lei) cabe uma última ressalva: não são legitimados a recorrer adesivamente, dada a expressão dicção do artigo 500 do CPC, segundo o qual, sendo vencidos 'autor e réu', ao recurso por qualquer deles interposto e permitido aderir 'a outra parte'. Em posição diversa da aqui sustentada está Nelson Nery Junior (1997, p. 258), que se mostra favorável à existência, nesse caso, da legitimidade do Ministério Público, ao argumento de que o termo parte do artigo 500 deve ser interpretado em sentido lato.

Pensamos, por outro lado, que há legitimidade do Advogado para recorrer, com relação à parte da decisão relativa à fixação dos honorários de sucumbência, já havendo algumas manifestações dos tribunais nesse sentido.

1.4.3 Interesse


O interesse em recorrer estará configurado sempre que se puder demonstrar (i) a utilidade do recurso, ou seja, a possibilidade de que a decisão do recurso outorgue ao recorrente uma situação mais favorável do que aquela que ostenta antes do julgamento do recurso, e (ii) a sua necessidade, consistente na impossibilidade de se alcançar aquela utilidade por outro meio menos gravoso.

Quanto à utilidade do recurso, Barbosa Moreira explica que o termo parte vencida, a quem a lei confere o direito de recorrer, deve ser bem entendido:

E vencida a parte, sem dúvida, quando a decisão lhe tenha causado prejuízo, ou a tenha posto em situação menos favorável do que a de que ela gozava antes do processo, ou lhe haja repelido alguma pretensão, ou acolhido a pretensão do adversário. Mas também se considera vencida a parte quando a decisão não lhe tenha proporcionado, pelo prisma prático, tudo que ela poderia esperar, pressuposta a existência do feito (MOREIRA, 2001, p. 299).

Como se trata de vantagem prática, convém deixar marcado que há interesse da parte ré, no caso de improcedência de ação popular ou ação civil pública por falta de provas, de recorrer para demonstrar que nenhum fato narrado ou provado poderá conduzir à procedência do pedido, visando, com o recurso, a impedir que outra ação com a mesma pretensão de direito material possa ser exercida. Há também interesse recursal quando o autor, diante de sentença ultra ou extra petita, recorre com a finalidade de afastar a nulidade do julgado (NERY JUNIOR, 1997, p. 274). Haverá, de modo contrário, falta de interesse recursal, por inutilidade, no agravo retido contra decisão que determinou indevidamente a suspensão do processo, ou que indeferiu pedido de julgamento antecipado da lide, já que, no momento da apreciação do agravo retido já terá sido prolatada sentença, restando prejudicado o mérito do agravo retido (NERY JUNIOR, 1997, p. 279).

1.4.4 Fatos extintivos e impeditivos


 

A doutrina não se acerta quanto ao que, em termos de teoria dos recursos, é fato extintivo e quanto ao que é fato impeditivo do direito de recorrer. Tem sido sustentado que fatos extintivos do direito de recorrer são a renúncia ao recurso e a aceitação ou aquiescência da decisão; fatos impeditivos desse direito são a desistência do recurso, reconhecimento da procedência do pedido, a renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação, a ausência do depósito de multa processual e a prática de ato contrário à vontade de recorrer, causando a prec1usão lógica (SOUZA, 2000, p. 56). Nelson Nery Junior (1997, p. 329) conc1ui que "do ponto de vista prático, a presença de qualquer deles no processo faz com que o recurso seja inadmissível, não conhecível".

A renúncia pressupõe a existência da decisão desfavorável, consistindo em manifestação de vontade de não recorrer, previa à interposição do recurso. Em nosso entender, a renúncia há de ser expressa. Em sentido contrário, admitindo a renúncia tácita, há o posicionamento de Barbosa Moreira (2001, p. 340), para quem esta consistiria na pratica de ato incompatível com o desejo de recorrer, desde que praticado sem reserva. Admitindo a renúncia prévia, e ressaltando dever ser expressa (neste caso), posiciona-se Nelson Nery Junior (1997, p. 330-350).

Consectário da renúncia é a inadmissibilidade do recurso interposto em desconformidade com o direito manifestado. Não influi no direito dos litisconsortes recorrerem, tampouco depende da aquiescência desses ou da outra parte (artigo 502 do CPC).

A desistência (artigo 501 do CPC) pressupõe, mais do acontece na renúncia, tanto a existência da decisão desfavorável quanto a interposição do recurso, sendo-lhe posterior e podendo ser total ou parcial (MOREIRA, 2001, p. 330). Pode o recorrente desistir do recurso até o seu julgamento (inclusive oralmente, por ocasião da sessão de julgamento), fazendo com que se tome inexistente (não inadmissível), não podendo ser conhecido. Não depende da manifestação de vontade da parte contrária ou dos litisconsortes do desistente, mas requer poderes especiais por parte do advogado (SOUZA, 2000, p. 58). Tampouco está impedido, o desistente de recurso autônomo, no caso de sucumbência recíproca, de recorrer adesivamente (NERY J1.JNIOR, 1997, p. 357; MOREIRA, 2001, p. 335).

Vale o registro de que, recentemente, o STJ não acolheu a desistência de um recurso que havia sido selecionado pra julgamento na forma do artigo 543-C, do Código de Processo Civil (Recurso Repetitivo).

A aquiescência (prevista no artigo 503 do CPC) é a manifestação de aceitação do julgado, podendo ser total ou parcial, expressa ou tácita (desde que inequívoca). Deve ser espontânea, ou seja, antes que o julgado comece a produzir efeitos quanto ao aquiescente, e pode ser manifestada tanto antes quanto depois da interposição do recurso, inclusive pelo terceiro prejudicado a quem a lei processual confere legitimidade recursal (MOREIRA, 2001, p. 345-347). Como a desistência, tem o condão de provocar o imediato trânsito em julgado da decisão aceita, a não ser que esse seja obstado por outro motivo.

1.4.5 Tempestividade


A tempestividade e a exigência, vinculada ao princípio da preclusão que orna o direito processual civil, de que o recurso seja interposto no prazo previsto em lei, a fim de que a prestação jurisdicional se dê num tempo razoável, em prestígio de sua efetividade.

Os prazos recursais são de quinze dias, nos termos da redação do artigo 508 do CPC, para a apelação, os embargos infringentes e os de divergência, bem como para os recursos especial e extraordinário. Excetuam-se a essa regra os embargos de dec1aração, que devem ser aviados em cinco dias, seja qual for o tipo de decisão recorrida, e o agravo interposto contra decisão interlocutória proferida no primeiro grau (artigo 522) ou contra inadmissão de recurso especial ou extraordinário que devem ser protocolizados em dez dias e, se interno (contra decisão de relator em tribunal), o prazo é de cinco dias. Há, ainda, as especificidades estabelecidas em leis especiais, como o prazo de dez dias para o recurso inominado da Lei n° 9.099/95 (artigo 42) e para os embargos infringentes de alçada, como consta do artigo 34 da Lei nº 6.830/80.

Os prazos processuais relativos aos recursos são de natureza peremptória e improrrogáveis. Pode, entretanto, o juiz, devolver o prazo a parte que deixou de aviar o recurso por justa causa (artigo 183).

Além das hipóteses de suspensão, há considerar as de interrupção, que atribuem ao interessado um novo prazo, por inteiro. Tanto a suspensão como a interrupção do prazo devem ser contadas a partir da ocorrência do fato qualificado pela lei como causa destes eventos a despeito de poder ser outro o momento da ciência do juízo acerca da sua ocorrência. Já o reinício da fluência do prazo somente se dá com a intimação dos advogados das partes, não podendo ser praticado qualquer ato processual durante a suspensão ou interrupção.

A data a ser considerada para efeito de aferição da tempestividade recursal é a do protocolo da petição no cartório ou secretaria do tribunal (artigo 506, parágrafo único, primeira parte), como regra geral. As exceções (SOUZA, 2000, p. 72-74) ficam por conta do agravo de instrumento previsto no artigo 522 — cuja tempestividade também pode ser comprovada pelo carimbo de postagem nos correios (artigo 525, § 2°), se esta for a forma de protocolo escolhida pelo recorrente —; nos locais em que tenha sido instituído o protocolo integrado pela lei de organização judiciária, em que a petição pode ser protocolizada em qualquer cartório, sendo posteriormente remetida ao cartório competente (com a tempestividade aferida da entrada da petição no primeiro cartório); e, por fim, com a possibilidade do protocolo via fac-simile, prevista na Lei n° 9.800/99, que prevê uma aferição dupla da tempestividade: o envio do fax deve ser feito dentro do prazo e o protocolo da petição original em cinco dias.

1.4.6 Regularidade formal


 

A regularidade formal é o pressuposto de admissibilidade recursal que concerne àt necessidade de que recurso seja interposto na forma prevista em lei. Em regra, os atos processuais não necessitam atender a forma predeterminada; entretanto, os recursos além de ter a forma escrita (ressalvadas hipóteses excepcionais nas quais se exige a forma oral, e.g., agravo retido tirado em audiência de instrução e julgamento), não sendo admitido recurso por aposição de cota nos autos (SOUZA, 2000, p. 79). Exigência conexa a esta, e específica dos recursos interpostos por fax, é que o original seja protocolizado no prazo legal, devendo a petição ser idêntica àquela transmitida.

A petição será dirigida ao órgão competente para o julgamento do recurso, salvo se sujeito ao duplo juízo de admissibilidade, caso em que deve ser dirigida ao órgão responsável pelo primeiro deles. Deve conter a qualificação das partes, exigência dispensável se recorrente e recorrido estiverem devidamente qualificados nos autos (MOREIRA, 2001, p. 423), a motivação ou razões da impugnação da decisão e o pedido de reforma. Atualmente, insere-se nos requisitos de regularidade formal do recurso extraordinário a demonstração da existência da repercussão geral. Num primeiro momento, o Supremo Tribunal Federal, foi extremamente rigoroso a esse respeito, exigindo que essa demonstração fosse feita em capítulo destacado; atualmente, adota uma posição mais instrumentalista.

Os fundamentos do pedido recursal devem ser conexos aos fundamentos da decisão, impugnando especificamente cada urn deles, sob pena de não conhecimento do recurso. Essa a dicção da Súmula 182 do STJ: "E inviável o agravo do artigo 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada". Esta exigência se estende a todos os recursos, inclusive aos oralmente interpostos (SOUZA, 2000, p. 81), e deve ser cumprida no momento da interposição (ASSIS, 1999, p. 42).

Quanto aos recursos especial e extraordinário, é necessário cuidar de algumas especificidades. O seu cabimento se dá, respectivamente, se a decisão atacada contrariar lei federal ou a Constituição, por isso, na motivação, o recorrente deve demonstrar a ocorrência dessas. No caso da interposição do recurso especial pela letra 'c' do permissivo constitucional, cabe ao recorrente demonstrar tanto a similitude entre os casos confrontados quando a divergência jurisprudencial — transcrevendo e comparando trechos — entre os julgados (NERY J1JNIOR 1997, p. 311), naquilo que a jurisprudência apelida de cotejo analítico. O agravo de instrumento contra o despacho de inadmissão do recurso especial ou extraordinário tem, por sua vez, como requisito de admissibilidade específico — no que diz respeito a regularidade formal —, a sua correta instrução com todas as peças obrigatórias ou essenciais à compreensão da controvérsia.

Deve o recorrente, também, pedir expressamente a reforma da decisão hostilizada, sob pena de incorrer na irregularidade formal, dando ensejo ao não conhecimento do recurso.

Bernardo Pimentel Souza (2000, p. 82) adverte que importaria julgamento extra petita se o juízo provesse recurso ao qual faltasse pedido de reforma. A nós, parece que a falha é mais grave. Recurso que não contém pedido de reforma é um não-recurso, um recurso inexistente.

Por fim, a petição deve ser assinada por advogado regularmente constituído, sem o que será tido recurso por inexistente (ASSIS, 1999, p. 44). Cabe o registro, entretanto, de que, nas instâncias ordinárias, há a necessidade de abertura de prazo para regularização da representação processual, ao contrário do que acontece nas instâncias superiores, em que a jurisprudência se fixou no sentido da desnecessidade da diligência supraindicada, sendo, de logo, declarada a inexistência do recurso.

1.4.7 Preparo


O preparo, na lição de Barbosa Moreira (2001, p. 390), consiste "no pagamento prévio das despesas relativas ao processamento" do recurso. Deve ser prévio e comprovado no momento da protocolização da petição recursal, a não ser que seu valor não possa ser conhecido antecipadamente ou que motivo relevante impeça o recorrente de cumprir a exigência legal como, por exemplo, a falta de coincidência entre os expedientes forense e bancário (a jurisprudência não é pacífica a esse respeito).

À irregularidade no cumprimento da exigência formal do preparo (por ausência ou insuficiência) a lei comina a pena de deserção (NERY JUNIOR, 1997, p. 359), mas não, no caso da insuficiência, sem que antes seja oportunizado à parte que lhe complemente o valor. A deserção, por sua vez, resulta na inadmissibilidade do recurso, já que operada a prec1usão consumativa do direito de recorrer, de nada adiantando a apresentação da guia de recolhimento do preparo após a interposição do recurso, ainda que essa interposição tenha sido feita antes do último dia do prazo (SOUZA, 2000, p. 88).

Como já mencionado alhures, há algumas hipóteses de dispensa de preparo, fundadas ora em critério subjetivo, ora em critério objetivo (MOREIRA, 2001, p. 392-393; NERY JUNIOR, 1997, p. 360). Exemplos da primeira situação são, segundo Bernardo Pimentel Souza (2000, p. 86), os recursos interpostos pelo Ministério Público, União, Estados e Distrito Federal, Municípios e autarquias, nos termos do artigo 511 do CPC, e também pelos beneficiários da justiça gratuita na forma dos arts. 3° e 9° da Lei n° 1.060/50.

Quanto à assistência judiciária gratuita, já decidiu o STJ que obstar a subida de agravo de instrumento desacompanhado da guia de recolhimento do porte de remessa e retorno, tendo sido interposto o recurso especial (inadmitido ao fundamento da deserção) justamente para discutir o desacolhimento do pedido de gratuidade da justiça, importa usurpação de competência (RCL 1036/SP, 1a S., Min. Teori Zavascki, DJ de 13.10.2003); e também que, havendo pedido de gratuidade da justiça como preliminar de recurso, este não pode ser julgado deserto antes de analisado o referido pedido, e, no caso de não-acolhimento, antes que seja oportunizado à parte o recolhimento do preparo (RESP 440.007/RS, 3a T., Min. Castro Filho, DJ de 19.12.2002).

São exemplos de dispensa de preparo fundada em critério objetivo: o agravo retido (artigo 522, parágrafo único), os embargos de declaração (artigo 536 do CPC) e dos "recursos interpostos em processos regidos pela Lei n. 8.069/90, Estatuto da Criança e do adolescente", por força do seu artigo 198, I.

EFEITOS DOS RECURSOS

Considerações gerais


Com relação aos efeitos dos recursos, e como visto em relação a outros tópicos na Parte I, também a doutrina não ajusta. O que existe de incontroverso é apenas o fato de que todos admitem que os recursos possuem efeitos devolutivo e suspensivo (e nem sempre com a mesma dimensão). Para Barbosa Moreira, há um efeito comum a todos os recursos do direito nacional, o de obstar, uma vez interpostos, o trânsito em julgado da decisão impugnada. Ao lado desse efeito, o referido processualista se reporta aos efeitos devolutivo e suspensivo. Lembra, também, que parte da doutrina refere-se ao efeito extensivo, ao qual tece críticas (MOREIRA, 2003, p. 256).

De sua vez, Nelson Nery Jr. considera que o adiamento da formação da coisa julgada é apenas uma consequência natural e 1ógica do efeito devolutivo, sendo os dois efeitos apontados pela doutrina tradicional o devolutivo e o suspensivo (NERY JR., 2004, p. 429). Esse doutrinador, entretanto, aponta outros fenomenos processuais concernentes à interposição do recurso os quais não se enquadram na mencionada dicotomia (efeitos devolutivo e suspensivo), que seriam os efeitos: expansivo, translativo e substitutivo (NERY JR., 2004, p. 428).

Vejamos estes cinco efeitos: devolutivo, suspensivo, expansivo, translativo e substitutivo.

Efeito Devolutivo


Esse efeito é definido por Barbosa Moreira do seguinte modo: "chama-se devolutivo ao efeito do recurso consistente em transferir ao órgão ad quem o conhecimento da matéria julgada em grau inferior de jurisdição." (MOREIRA, 2003, p. 259)

Para Nelson Nery Jr., o efeito devolutivo seria uma manifestação do principio dispositivo. O recurso interposto, considerado como uma espécie de renovação do direito de ação, em outra fase do procedimento, devolveria ao órgão ad quem o conhecimento da matéria impugnada. O pedido de nova decisão fixaria os limites e o âmbito de devolutividade do recurso, segundo o brocardo tantum devolutum quantum appellatum (NERY JR, 2004, p. 429). Esse autor afirma que o efeito devolutivo e comum a todos os recursos no sistema processual civil brasileiro, sendo o efeito natural de todo e qualquer recurso (NERY JR., 2004, p. 431). Quanto a essa afirmação, guardamos a mais absoluta reserva. Cremos que o efeito devolutivo é uma inerência dos recursos verticais, mas não necessariamente dos recursos horizontais, como, e.g., os embargos de declaração. Embora aparentemente (e só aparentemente) divirja do que é por nós sustentado, Barbosa Moreira indica a existência de dissenso doutrinário sob a égide do código anterior: a maioria dos autores reconhecia ocorrer o efeito suspensivo, em maior ou menor amplitude, quando houvesse novo julgamento de alguma questão. Entretanto, parcela da doutrina considerava que apenas em relação à reapreciação da causa, entendida como mérito, estaria presente o efeito devolutivo. (MOREIRA, 2003, p. 259)

Segundo Barbosa Moreira, alguns autores italianos defendiam a limitação do efeito devolutivo apenas às questões que o juízo superior pudesse apreciar de forma automática, independente da iniciativa das partes. Nesse caso, conforme o mencionado autor: "O mecanismo do efeito devolutivo so seria necessário para explicar a atividade cognitiva em nível mais alto com referência à matéria que não seja objeto de suscitação especificada dos litigantes." (MOREIRA, 2003, pp. 259-260). A questão, porém, estaria superada em relação ao direito brasileiro, dado que o Código de Processo Civil de 1973 adotou a noção genérica do efeito devolutivo. Assim, todo recurso seria provido de efeito devolutivo, consoante lição de Barbosa Moreira (MOREIRA, 2003, p. 259):

[ ... ] De lege lata, há devolução sempre que se transfere ao órgão ad quem algo do que fora submetido ao órgão a quo - algo, repita-se; não necessariamente tudo. Inexiste, portanto, recurso totalmente desprovido de efeito devolutivo, com ressalva dos casos em que o julgamento caiba ao mesmo órgão que proferiu a decisão recorrida o que pode acontecer, [ ... ], e que variem, de um para outro recurso, a extensão e a profundidade do aludido efeito. Aquela - desde já convém observar - nunca ultrapassará os lindes da própria impugnação: no recurso parcial, a parte não impugnada pelo recorrente escapa ao conhecimento do órgão superior, salvo se por outra razão (como nos casos do artigo 475) este se houver de pronunciar ao propósito.



Quando bem se lê a citação do trabalho de Barbosa Moreira, percebe-se que, tal como nós, também ele entende que nos recursos horizontais não cabe falar em efeito devolutivo. Há aí outro fenômeno que pode chamar-se efeito regressivo, efeito de retratação, etc. Também o saudoso Ovídio Batista lecionava que somente haveria efeito devolutivo nas situações nas quais o reexame estaria confiado a órgão superior (SILVA, 2000, p. 413):

Nossa doutrina, no entanto, desde os velhos processualistas do século XIX, entende por efeito devolutivo a circunstância de confiar-se o reexame da decisão recorrida a um órgão de hierarquia superior, razão pe1a qual não haveria efeito devolutivo sempre que o exame da controvérsia contida no recurso fosse entregue ao próprio magistrado pro1ator da decisão impugnada. [ ... ]

No caso de nova apreciação da matéria pelo órgão a quo, Ovídio Batista afirma que haveria o efeito de retratação (SILVA, 2003, pp. 415-416):

Quando o recurso é interposto a fim de que o próprio juiz pro1ator da decisão recorrida reexamine o que fora por ele próprio decidido, diz-se que o recurso provoca um juízo de retratação, desde que, neste caso, ao contrário daque1e em que ocorra apenas o efeito devo1utivo em toda sua pureza, dá-se ao julgador que tivera sua decisão impugnada a possibilidade de revê-1a e modificá-1a.

Noutra linha, e agora concordando como Nelson Nery Jr., o objeto da devolutividade constitui o mérito do recurso, ou seja, a matéria sobre a qual deve o órgão ad quem pronunciar-se, provendo-o ou desprovendo-o. As matérias preliminares alegadas normalmente em contrarrazões de recurso, como as de não conhecimento, por exemplo, não integram o efeito devolutivo do recurso, pois são matérias de ordem pública a cujo respeito o tribunal deve ex officio pronunciar-se. Aduz esse professor que seria mais apropriado dizer-se que esse tipo de questão fica ao exame do tribunal pelo denominado efeito translativo do recurso, dado que o efeito devolutivo é manifestação do princípio dispositivo: somente se devolve ao tribunal a matéria que o recorrente efetivamente impugnou e sobre a qual pede nova decisão.

Em princípio, existe vedação ao órgão a quo para a modificação do julgamento. As exceções consistem nos Embargos de Declaração, em relação aos quais sustentamos que não há efeito devolutivo, e no agravo retido, devido à possibilidade de juízo de retratação. Nessa última hipótese, somente haverá efeito devolutivo diferido, i.e., condicionado à mantença da decisão pelo seu prolator.

Cabe uma palavra para lembrar que o efeito devolutivo possui duas dimensões: uma horizontal, para caracterizar o quanto da decisão foi impugnada, dado que sempre existe a possibilidade dos chamados recursos parciais, como também que a própria decisão recorrida pode não haver examinado a demanda ou toda a demanda, caso em que o mérito do recurso poderia não coincidir (total ou parcialmente) com o mérito da causa; outra vertical, para caracterizar quais matérias sobem ao exame do órgão encarregado de apreciar a irresignação. Segundo pensamos, na generalidade dos casos, a devolutividade vertical é ampla e se rege muito mais pela quantidade da matéria recorrida do que pelos fundamentos de que possa lançar mão o recorrente. Nesse sentido, a matéria relativa à devolutividade vertical reger-se-ia, sobretudo pelo artigo 515, e seus parágrafos 1º e 2º. Há posições contrárias, sustentando que esses parágrafos são manifestações do efeito translativo, que será examinado logo mais.

Ressalvamos, quanto ao tema efeito devolutivo, os recursos excepcionais, que são considerados doutrinariamente como recursos de devolutividade estrita, no sentido de que, embora incida o efeito devolutivo, isso somente ocorre com relação à matéria jurídica que pode ser conhecida pela instância de superposição, que não é vocacionada para discussão de matéria de fato.

Efeito suspensivo


Segundo Barbosa Moreira, diz-se que um recurso tem efeito suspensivo quando impede a produção imediata dos efeitos da decisão. O mesmo mestre indica que não se trata apenas de impedir a execução imediata, pois há provimentos constitutivos e dec1aratórios, os quais não comportariam execução, que também podem ser impugnados por recurso que possuem efeito suspensivo. Dessa forma, ressalvada exceção contida na lei, a suspensividade abrangeria toda a eficácia da decisão, além de sua eventual força como titulo executivo (MOREIRA, 2003, p. 257).

ParaNelson Nery Jr. (NERY JR., 2004, p. 445):

O efeito suspensivo é uma qualidade do recurso que adia a produção dos efeitos da decisão impugnada assim que interposto o recurso, qualidade essa que perdura até que transite em julgado a decisão sobre o recurso. Pelo efeito suspensivo, a execução do comando emergente da decisão impugnada não pode ser efetivada ate que seja julgado o recurso. [ ... ]

Ovídio Batista assevera: "Diz-se que determinado recurso possui efeito suspensivo quando sua interposição impede que os efeitos da sentença impugnada se produzam desde logo, prolongando, assim, o estado de ineficácia peculiar à sentença sujeita a recurso." (SILVA, 2000, p. 414)

Barbosa Moreira critica, com absoluta razão, a denominação efeito suspensivo, porque induziria a supor que, apenas com a interposição do recurso, os efeitos da decisão estariam tolhidos, ou seja, até esse momento a decisão estaria plenamente operante. O mencionado autor observa que:

"Na realidade, o contrário é que se verifica: mesmo antes de interposto o recurso, a decisão, pelo simples fato de estar-lhe sujeita, é ainda ineficaz, e a interposição apenas prolonga semelhante ineficacia, que cessaria se não se interpusesse o recurso." (MOREIRA, 2003, p. )

Nesse mesmo sentido Nelson Nery Jr. (NERY JR., 2004, p. 445): "[ ... ] A decisão que ainda não havia produzido efeitos, porque não prolatada, continua a não produzi-los pelo efeito suspensivo do recurso, pois a eficácia não preexiste à interposição do recurso que não pode, por certo, suspendê-la. [ ... ]" A seguir, o autor, com fundamento nesse excerto, afirma que a suspensividade estaria mais perto da recorribilidade, do que propriamente do recurso. Justifica a assertiva ao afirmar que o efeito suspensivo seria iniciado com a publicação da sentença e permaneceria, pelo menos até o transcurso do prazo oferecido ao interessado para recorrer.

Alerta Barbosa Moreira que, no direito alienígena, há diferença entre suspensividade do recurso e suspensividade do prazo do recurso. No primeiro caso, a eficácia da decisão se daria desde a sua prolação, sendo suspensa uma vez interposto o recurso com efeito suspensivo. No segundo, a decisão não seria eficaz durante o prazo de interposição. Essa diferença existiria no direito belga e no ordenamento francês, neste, até a reforma do código de processo civil de 1965.

Sustenta Nelson Nery Jr. que, no caso de ações cumuladas em relação às quais haja previsão de recursos com efeitos diversos (suspensivo e devolutivo para uma delas e apenas devolutivo para a outra), o efeito suspensivo está restrito apenas à parcela da decisão para a qual haja previsão de recurso dotado de tal efeito, podendo ser objeto de execução provisória o restante dela. (NERY JR., 2004, p. 447)



Em regra, a decisão é exequível, excetuada a interposição de recurso com efeito devolutivo e suspensivo. Barbosa Moreira enuncia os casos que, embora tenha sido manejado recurso dotado de efeito suspensivo, a sentença já opera seus efeitos: "São efeitos que, por assim dizer, escapam não só a força inibitória da recorribilidade in genere, mas também — o que e absolutamente excepcional — a força inibitória da recorribilidade por meio suspensivo." (MOREIRA, 2003, p. 479)

A primeira tem pertinência com a prova literal de dívida líquida e certa. Para efeito de concessão de arresto, a sentença, líquida ou ilíquida, pendente de recurso, condenando o devedor ao pagamento de dinheiro ou de prestação que em dinheiro possa converter-se (parágrafo único do artigo 814 do Código de Processo Civil) a sentença já opera efeitos e conduz à adoção de providências práticas.

A segunda hipótese está prevista no inciso II do artigo 822 do Código de Processo Civil: o juiz, a requerimento da parte, pode decretar o sequestro dos frutos e rendimentos do imóvel reivindicando, se o réu, depois de condenado por sentença ainda sujeita a recurso, os dissipar.

A terceira consiste na constituição de título para a hipoteca judicial, prevista no caput do artigo 466 do Código de Processo Civil. Embora não haja previsão explícita na lei, afirma Barbosa Moreira: "Ora, se se concede a hipoteca judiciária mesmo quando a sentença seja provisoriamente exequível, isto é, quando o recurso cabível não tenha efeito suspensivo, a fortiori quando o tenha, e por conseguinte não haja lugar para a penhora ou medida equivalente. Em tal hipótese, precisamente, é que a hipoteca judiciária poderá revelar-se mais útil." (MOREIRA, 2003, pp. 480-481)

Com relação a essa eficácia, Nelson Nery Jr. acrescenta que, embora havendo recurso com efeito suspensivo, o juiz pode ordenar providências conservatórias urgentes, bem como não é defeso à parte manejar ação cautelar também para assegurar a eficacia do futuro provimento jurisdicional. Isso, entretanto, segundo pensamos, não tem pertinência com alguma excepcional eficácia da sentença sujeita a recurso com efeito suspensivo. Deveras, sempre é possível tomar alguma das providências sugeridas, ainda que não tenha sido prolatada sentença. Em outras palavras, estão presentes, aí, hipóteses em que a proteção cautelar prometida pelo Estado é possível, independentemente de haver ou não sentença proferida.

Tem-se dito que a regra, no ordenamento jurídico pátrio, é a da suspensividade dos recursos. Para a sua exclusão, há necessidade de norma especial. Nesse sentido, Barbosa Moreira: "E que a regra, na matéria, e a suspensividade, como, aliás, ressumbra do tratamento dado, no particular, à apelação. Por conseguinte, sempre que o texto silencie, deve entender-se que o recurso é dotado de efeito suspensivo: assim ocorre com os embargos infringentes. Esse já era, aliás, o princípio no sistema do Código de 1939." (MOREIRA, 2003, p. 283)

Pensamos que essa é uma tendência em transformação. A ideia — parece-nos —-, é a de que cada vez mais se abandone a suspensividade como regra, para admitir a mais pronta efetividade da prestação jurisdicional, reservando a dação do efeito suspensivo apenas para aqueles situações em que haja possibilidade de dano irreversível para o sucumbente, situações em que esse efeito pode ser conferido pelo próprio juiz, não por previsão legal (ope legis), mas sim porque o juiz encontra presentes no caso concreto as circunstâncias que sugerem a sua concessão (ope judicis).

No mesmo sentido, adverte Ovídio Batista esclarece que a tendência do direito moderno consiste em restringir os recursos com efeito suspensivo. Entretanto, essa tendência não esta sendo seguida pelo direito pátrio (SILVA, 2000, p. 415). Permitimo-nos contraditar mais uma vez: primeiro, porque a Lei de Ação Civil Pública já contempla a concessão de efeito suspensivo na modalidade por nós indicada; depois porque há projeto de lei tramitando no parlamento (é claro que pode vir a não ter êxito, mas demonstra uma tendência) no sentido de alterar o artigo 520 do Código de Processo Civil, justamente visando a alterar a forma de deferimento de efeito suspensivo, como meio de valorizar a decisão proferida mo primeiro grau de jurisdição.

Efeito Expansivo


No que concerne a esse efeito, a melhor sistematização que se conhece está nos trabalhos de Nelson Nery Jr. (NERY JR., 2004, p. 477): "O julgamento do recurso pode ensejar decisão mais abrangente do que o reexame da matéria impugnada, que é o mérito do recurso."

Para Nélson Nery, o efeito expansivo pode ser objetivo ou subjetivo, interno ou externo. É interno quando ocorre em relação a um mesmo ato impugnado (NERY JR., 2004, p. 478). Como exemplo de efeito objetivo interno, Nelson Nery JR. cita o caso de acolhimento de preliminar de litispendência, que acarreta a invalidação da sentença, com a extinção do processo sem julgamento do mérito. Outro exemplo consiste no provimento do apelo que ataca a questão da existência do an debeatur, que prejudica a questão do quantum debeatur. Também consiste em aplicação desse efeito a reforma de decisão que condenou o réu a indenizar, estendida a condenação às despesas processuais e aos honorários de advogado.

O efeito expansivo externo se dá "relativamente a outros atos praticados no processo, e não apenas ao mesmo ato impugnado" (NERY JR. 2004, p. 478). Por exemplo, o provimento de agravo de instrumento pelo tribunal ad quem, que acarretaria tornar sem efeito os atos processuais praticados posteriormente à sua interposição, que sejam incompatíveis com a sua decisão. Vale dizer que a jurisprudência com relação a esse efeito é extremamente controvertida. Há decisões no STJ que o adotam a há decisões que o hostilizam.

Também caberia nos efeitos supraindicados a hipótese dos atos praticados no curso da execução provisória da sentença, após o provimento de recurso recebido apenas no efeito devolutivo (NERY JR., 2004, p. 478).

Há também expansão dos efeitos de forma subjetiva, ou efeito expansivo subjetivo. Como exemplo, Nelson Nery Jr. cita o recurso interposto por um dos litisconsortes, no caso de litisconsórcio unitário. Também afirma o mencionado autor, no que concerne à assistência litisconsorcial, que (NERY JR., 2004, p. 479):

Nada obstante ser a atividade do assistente litisconsorcial (CPC 54) absolutamente distinta e autônoma da do assistido, o recurso interposto pelo assistente litisconsorcial também aproveita ao assistido, pois a lide é comum aos dois em face do regime da unitariedade litisconsorcial que os une, embora quanto à formação se tratasse de litisconsórcio facultativo. A recíproca é verdadeira: interposto recurso pelo assistido, atingirá a esfera de direito material do assistente litisconsorcial que não recorreu.



Também configura efeito expansivo objetivo a interposição de recurso contra decisão condenatória apenas pela seguradora litisdenunciada. Segundo Nelson Nery JR., a seguradora seria assistente simples da ré: "Para a re-denunciante ocorreu prec1usão temporal (não pode mais interpor recurso), mas não se formou, ainda, a autoridade da coisa julgada sobre a sentença, obstada pela interposição da apelação pela seguradora¬ denunciada" (NERY JR., 2004, p. 481).

Para fundamentar seu entendimento, Nelson Nery disseca a dimensão do parágrafo único do artigo 509 do CPC (NERY JR., 2004, p. 481):

O CPC 509 par.un. não transforma o litisconsórcio simples em unitário, como poderia parecer à primeira vista, mas tão-somente "impõe a extensão dos efeitos do recurso" ao litisconsorte simples que não recorreu, em virtude da solidariedade existente entre os litisconsortes. Na verdade, o dispositivo determina a extensão dos efeitos do julgamento do recurso ao litisconsorte simples inerte, que tern vínculo de solidariedade com o litisconsorte recorrente.

Já foi dito, em caráter prefacial, que não há unanimidade com relação a esses efeitos, Especificamente com relação ao ora estudado, Barbosa Moreira, denominando-o extensivo, observa que era objeto de comentários com frequência entre os processualistas penais italianos (Carnelutti, Del Pozzo, Petrella, Pisapia e Cristiani). Realmente são se trata de urn efeito propriamente dito. O que ocorre é o aproveitamento de urn recurso pelos demais litisconsortes o que implica a extensão subjetiva dos efeitos propriamente ditos (MOREIRA, 2003, pp. 256-257).

Efeito Translativo


Normalmente, a atuação do órgão ad quem limita-se ao pedido do recorrente, com fundamento no princípio dispositivo. Entretanto, assevera Nelson Nery Jr que (NERY JR., 2004, p. 482):

Há casos, entretanto, em que o sistema processual autoriza o órgão ad quem a julgar fora do que consta das razões ou contra-razões do recurso, ocasião em que não se pode falar em julgamento extra, ultra ou infra petita. Isto ocorre normalmente com as questões de ordem pública, que devem ser conhecidas de ofício pelo juiz e a cujo respeito não se opera a preclusão (por exemplo, artigo 267 § 3° e 301 § 4°). A translação dessas questões ao juízo ad quem esta autorizada no artigo 515 §§ 1° a 3° e 516.

Já afirmamos, em outro momento, que, diferentemente do que sustentado pelo Professor Nélson Nery, a hipótese, aí, é de efeito devolutivo e não translativo, que, segundo pensamos, deve ser limitada a questões de ordem pública. A abrangência dos §§ 1º e 2º do artigo 515 ultrapassa em muito essas questões.

Estamos acordes, porém, em que as questões de ordem pública podem ser analisadas pelo tribunal, assim como as questões dispositivas que não foram analisadas pelo juízo a quo, embora tenham sido suscitadas e debatidas (NERY JR., 2004, pp. 482-483).

Quadra consignar que, quando se trata do exame de matérias por força do efeito translativo, em sede de doutrina, não se cogita da incidência ou não-incidência da proibição da reformatio in pejus. Dizendo de outra forma, se se trata de efeito translativo, pode haver eventual agravamento da situação do recorrente. Pelos mesmos motivos, não caberia falar em proibição da reformatio in pejus quando se tratasse de hipóteses relativas ao duplo grau de jurisdição obrigatório (artigo 475 do CPC), até porque, na hipótese, de recurso não se trata. Sem embargo disso, a jurisprudência do STJ tem se solidificado no sentido de que, também nessas circunstâncias não cabe ao Tribunal agravar a situação da Fazenda Pública.

Questão interessante é observada quando o autor postula a condenação do réu pelas verbas x e y. O pedido é julgado procedente. Entretanto, o réu apela apenas da verba x, ou seja, há recurso parcial. Na instância superior é observada ofensa a questão de ordem publica. Fica a indagação se houve formação de coisa julgada em relação à verba y, ou seja, se haveria a desconstituição da sentença apenas no que concerne a x, ou se poderia haver a desconstituição completa da sentença.

Barbosa Moreira apoia a primeira hipótese (MOREIRA, 2003, p. 356):

Por outro lado, quaisquer questões preliminares, embora comuns à parte impugnada e à parte não-impugnada da decisao, só com referência àquela podem ser apreciadas pelo tribunal do recurso. Suponhamos, v.g., que a sentença, repelindo a alegação de faltar ao autor legitimatio ad causam, condene o réu ao pagamento de x. Apela o vencido unicamente para pleitear a redução do quantum a y. Ainda que o órgão ad quem se convença da procedência da preliminar - que em princípio, como é óbvio, levaria à declaração da carência da actio quanta ao pedido todo -, ja que não lhe será lícito pronunciá-la senão no que respeita a x-y, única parcela que, por força do recurso (e ressalvada a eventual incidência de regra como a do artigo 475, nº I, que torne obrigatória a revisão), se submete a cognição do juizo superior. No tocante a parcela y, que não é objeto da apelação - nem, por hipótese, se devolve necessariamente -, fica vedada ao tribunal exercer atividade cognitiva: o capítulo correspondente passou em julgado no primeiro grau de jurisdição.

O mesmo princípio aplica-se a hipótese de só versar a impugnação sobre um ou alguns dos capítulos recorríveis, embora com invocação de víicio que, se existente, poderia acarretar a invalidação total da decisão. Assim, v.g., se o réu, condenado a pagar x+y, funda a sua apelação na denúncia de suposto error in procedendo, mas pleiteia unicamente a anulação da sentença quanto a x. Mesmo que o tribunal conheça do víicio, e este afete por inteiro o julgamento de primeiro grau, não se poderá anular a decisão no concernente a y; tal capítulo transitou em julgado.

Nelson Nery Jr. Abre dissidência (NERY, JR. 2004, p. 485):

[ ... ] A tão-só interposição do recurso, em virtude do efeito translativo, faz com que fiquem transferidas ao reexame do tribunal destinatário as matérias de ordem pública, dentre as quais se inclui a relativa às condições da ação (CPC 267 § 3°). A interposição do recurso adiou o trânsito em julgado quanta a essas matérias de ordem pública, muito embora tivesse havido preclusão para o réu quanta à verba y, que não foi objeto das razões e do pedido constante do apelo. [ ... ]

Por enquanto é só. Prometo, em futuro breve, traçar algumas considerações sobre os recursos em espécie.