quarta-feira, 16 de maio de 2012

Parecer no caso Geraldo Vandré

Eis o parecer que apresentei à PGFN, em 1998, a respeito da revisibilidade da demissão de servidor público, com base no AI-5.


(Uma explicação prévia ao parecer: como o blog não permite nem recupera notas de rodapé, tive de inseri-las no próprio texto, o que, por vezes, foi feito em prejuízo à clareza)

Pedido de reconsideração formulado pelo servidor Geraldo Pedrosa de Araújo Dias.
Assunto: retificação e republicação do despacho que o reverteu ao serviço público.
Matéria jurídica envolvida: Revisibilidade ou não de ato administrativo praticado com base no Ato Institucional n° 5; incidência ou não de prescrição quinquenal e aplicação ou não do princípio da legalidade aos atos praticados pelos governos militares.

Senhor Procurador-Geral,

Trata-se de recurso dirigido ao Excelentíssimo Senhor Ministro da Fazenda, pelo servidor GERALDO PEDROSA DE ARAÚJO DIAS, de decisão proferida pela SUNAB, que inadmitiu fosse alçada à instância maior deste Ministério a súplica visando à retificação e republicação do despacho n° 001184-GM, de 27.08.84, que o reverteu ao Serviço Público.
2. O servidor em causa pugna por que constem, no referido despacho, como fundamento da decisão que o reverteu, regras do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União e não da Lei n° 6.683, de 28.08.79, a chamada Lei da Anistia.
3. Encaminhado pelo Superintendente da SUNAB ao Excelentíssimo Senhor Ministro da Fazenda, o recurso findou brecado na Coordenação Geral de Recursos Humanos que, de sua vez, o enviou à SAG de onde, por meio da Subsecretaria de Assuntos Administrativos, foi devolvido à SUNAB, sem a oitiva do Senhor Ministro.
4. Posteriormente, por ato do Senhor Chefe de Gabinete do Ministro, os autos foram encaminhados a esta Procuradoria para parecer.

Fatos

5. No presente processo, tem-se um requerimento firmado por advogado constituído pelo Senhor GERALDO PEDROSA DE ARAÚJO DIAS, em que é postulado, com espeque na Lei n° 6.683/79 (Lei da Anistia), o seu retorno à atividade, como funcionário da SUNAB. A esse requerimento, que foi indeferido, seguiu-se, por força do disposto na lei sob referência (art. 4°), a aposentadoria ex officio do postulante.
6. Em decorrência disso, o funcionário aviou, em março de 1981, extensa petição manifestando indignação e irresignação, já com o indeferimento de seu pleito de retorno à atividade, já com os próprios termos utilizados por seu Advogado que, desbordando dos lindes do mandato que lhe fora outorgado, fundou a pretensão de retorno do peticionário ao serviço público na Lei n° 6.683/79, que concedeu anistia aos que foram demitidos com base no Ato Institucional n° 5, de 1968.
7. Em fevereiro de 1983, parecer da lavra do Dr. José Mesquita dos Santos, Procurador-Geral da SUNAB, sugeriu a revisão do ato de aposentadoria, o que, afinal, foi feito, por meio de Despacho do ex-Ministro Antônio Delfim Neto, que, entretanto, fundou a reversão do servidor ao serviço público justamente no disposto na "Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979, e no Decreto n° 84.143, de 31 de outubro de 1979".
8. Veemente irresignação do servidor, mais uma vez, foi trazida aos autos, ao argumento de que, porque não cometera crime, não poderia ser anistiado, devendo, por isso, o despacho de reversão ser retificado e republicado, fundando-se a reconsideração no Estatuto dos Funcionários Públicos da União.
9. As manifestações da administração pública foram, de forma indissonante, contrárias ao deferimento do pleito, invocando, ora questões de ordem formal ora de ordem material, valendo reproduzi-las:
a) Manifestação do Procurador-Geral da SUNAB, de 25.10.85 (fls. 206):
... a reversão ou retorno do Requerente à atividade se deu com fundamento nos dispositivos legais mencionados quer no referido Despacho Ministerial quer na Portaria SUNAB N° 56, de 14 de março de 1985, anexado por cópia no Proc. SUNAB n° 13.440/83, já referido, porque em se tratando dessa legislação especial, e não no Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, com base no qual não poderia ser atendido o seu pedido.(ad litteram)
b) Parecer desta Procuradoria, n° PGFN/CSJD 150/86, da lavra da Dra. Celmy de Souza:
Levando-se em conta a insuscetibilidade de revisão, até pelo Poder Judiciário, dos atos do Governo Federal lastreados nos Atos Institucionais e nos Atos Complementares (Constituição Federal, art. 181, I), só cessam os efeitos das demissões nele, fundamentadas nos estritos termos da Lei n° 6.683, de 28.08.79 ou, agora da Emenda Constitucional n° 26, de 27 de novembro de 1985, art. 4°.
De outra parte, nem a Lei n° 6.683/1979 (art. 11 ), nem a Emenda Constitucional n° 26/1985 (art. 4°, § 5°) autorizam a retroeficácia a anistia, ficando, dessarte, elidida, no todo a pretensão recursal.
c) Despacho do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, substituto, de 03.02.86 (fls. 254), que mereceu aprovação ministerial, em 04.02.86:
O deferimento foi feito nos exatos termos do pedido, isto é, retorno ao serviço ativo, em função da anistia concedida pela Lei n° 6683, de 1979, visto haver sido o servidor punido com fundamento no AI 5/68.
.........................
Os motivos e a justiça da decisão são insuscetíveis de reexame pela Administração e pelo próprio poder Judiciário (cf. CF. art. 181, e art. 3° da Emenda n° 3/78)
.....................
Tanto a lei de anistia como a recente Emenda Constitucional n° 26/85 (art. 4° § 5°) vedam expressamente qualquer remuneração em caráter retroativo.
Por outro lado, trata-se, de segundo pedido de reconsideração, que também é inadmissível (Dec. 20:848, de 23.12.31, art. 1°).
10. Outras tantas manifestações ocorreram, de parte a parte, todas com o mesmo fundamento, até que retornaram os autos ao exame do Excelentíssimo Senhor Ministro da Fazenda.

Exame

11. Como antecipado, a investigação do presente processo há de abordar questões de ordem formal e questões de ordem substancial, material.
12. As questões de ordem formal têm pertinência com o argumento de que não se pode postular na via administrativa por mais de uma vez, com pretensão de revisão, o que levou que se sustentasse a impossibilidade de conhecimento do recurso.
13. As questões de ordem material dizem respeito ao fato de que, como o servidor foi demitido com base no AI n° 5, não caberia cuidar de revisão nem judicial nem administrativa, além do que o art. 3° da Emenda Constitucional n° 11, de 13/10/78, que revogou os atos institucionais e complementares, ressalvou "os efeitos dos atos praticados com base neles os quais estão excluídos de apreciação. (vale ressaltado que a regra da exclusão da apreciação judicial já existia tanto no AI 5/68, como no art. 181 da Constituição de 67 (Emenda de 69), que dispunha: “Ficam aprovados e excluídos da apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964.”

Questões de Ordem Formal

14. Quanto às questões, de ordem formal, bem poderia o aplicador da lei (e não a aplica só o Judiciário), exultante ante a preliminar existente, e pertinente, de que se trata de um segundo pedido de revisão, furtar-se ao complexo exame de mérito que o tema suscita. Cumpriria, assim, seu papel de bom aplicador do regulamento.
15. Ocorre que, na espécie, tem sido suscitada, ora nulidade, ora, mesmo, inexistência dos procedimentos administrativos que culminaram com o ato demissório do servidor. Assim, se o exame dos autos determinar ou a nulidade ou a inexistência dos procedimentos administrativos em causa, então a prefacial no sentido de não conhecimento do recurso pode, e deve, ser afastada. É que, em se tratando de nulidade, viria a pêlo a Formulação n° 222 do antigo DASP, que soa:
A nulidade dos atos administrativos pode, a qualquer tempo, ser declarada pela própria administração.
16. No mesmo sentido, a Súmula n° 473 do Supremo Tribunal Federal, in verbis, recita:
"A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais porque deles não se originam direitos; ou revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial."
17. Ora, se pode a administração, de ofício, isto é, independentemente de provocação, reexaminar a qualquer tempo a nulidade dos atos administrativos, também o pode se o reexame ocorre por força de provocação do interessado. Isso é de uma lógica acaciana.
18. Por força disso, a simples possibilidade de que se trate de nulidade impõe que a questão de mérito seja examinada precedentemente às exceções de ordem formal.

Questões de ordem substancial

19. Duas ordens de questões substanciais devem ser consideradas para o perfeito desate do problema: a) impende saber se há possibilidade constitucional/legal de reexaminar o ato demissório do servidor, que foi baseado no Ato Institucional n° 5/68; b) se houver essa possibilidade, cumpre examinar se o ato em questão foi praticado com algum vício que, pela sua magnitude, o tenha tornado imprestável para atingir os fins a que se destinava.
a) Quanto à revisibilidade, ou não, do ato demissório.

20. Trata-se de comovente peleja que, desde 1979, vem travando servidor público civil, demitido com base no § 1° do art. 6° da Ato Institucional n° 5/68 (Nos primeiros exames feitos quanto à postulação de seu retorno à atividade os órgãos da SUNAB manifestaram o seu desinteresse, “nada obstante a ficha funcional do servidor nada indicasse de desabonador.” Havia, ao revés, assentamentos elogiosos na fé-de-ofício do servidor recorrente.) para demonstrar a impertinência da conduta do administrador que o alijou do serviço público.
21. Embora não conste dos autos, quadra consignar que o postulante é o mesmo cidadão conhecido no mundo artístico como GERALDO VANDRÉ, de cujas canções não se pode dizer que professavam a ortodoxia do poder político que se instalou no País a partir de março de 1964, o que, supõe-se, pode ter ensejado desagrado aos titulares da ordem então estabelecida.
22. Certo é que o ato demissório, mandado publicar pela junta militar que governava o País nos fins da década de 60, fundou-se no Ato Institucional n° 5, fato esse que afastava qualquer possibilidade de apreciação por parte do Poder Judiciário e, embora sem referência expressa nos atos institucionais de então, sem possibilidade de reexame também na esfera administrativa ( É que o fenômeno da jurisfação do poder, identificado em situações de razoável normalidade, em situações de dominação pelo poder legítimo, não ocorre da mesma maneira quando advêm golpes militares. Aí, cada ato do governo militar que mantém a revolução permanentemente "em ser", constitui um ato do poder constituinte originário, irrevisível por parte dos poderes instituídos. Pode-se discutir, com argumentos metajurídicos, se tais atos são legítimos ou ilegítimos, mas não se pode, enquanto permanecer em atividade o poder constituinte originário/revolucionário, cogitar de eficaz oposição jurídica a esses atos.).
23. Para completar a moldura em que deve caber o exame da primeira ordem de questões, cumpre lembrar:
1) os atos institucionais só vieram a ser revogados por meio da Emenda Constitucional n° 11, de 13.10.78, que, todavia, ressalvou os efeitos dos atos praticados com base neles. (Registro, por oportuno, que, mesmo ante a ausência de possibilidade de revisão, o postulante vinha tentando, desde 1975, que seu processo fosse tratado com base na legislação infraconstitucional.) ;
2) a normalidade democrática voltou a imperar no País com o advento da Constituição de 1988, que não repetiu a vedação de exame, pelo Poder Judiciário (nem por qualquer outro Poder) dos atos praticados com base na legislação excepcional.

24. A questão que se põe, assim, é: pode um poder, instituído por um certo poder constituinte, examinar atos que tenham sido praticados por um outro poder constituinte originário, anterior, sem que haja o texto constitucional em vigor previsto expressamente a hipótese?

25. Se o texto constitucional em vigor albergasse expressamente a hipótese de eficácia retro-operante, dúvida nenhuma poderia remanescer quanto a isso, e os órgãos do Poder não teriam qualquer dificuldade em proceder ao reexame da matéria. O fato é que não existe tal previsão constitucional. Penso, entretanto, que mesmo à ausência de um tal dispositivo, não se pode fazer tábula rasa dos atos praticados em nome do Estado, durante o período em que estiveram no poder os governos militares.
26. Na recente história do pós-guerra, tem-se o exemplo da França, onde se tentou apagar, da História oficial, o período correspondente ao governo colaboracionista da fase de ocupação alemã. Da mesma forma como se tenta apagar um labéu inoportuno, proclamava de Gaulle, em agosto de 1944: "Vichy fut toujours et demeure nul et non avenu."
27. Vã tentativa. Os fantasmas do período de ocupação insistem em sair das trevas e pôr-se sob a luz que promana da verdade histórica. Encontra-se a França, hoje, às voltas com a necessidade de rever aquela posição e resgatar suas responsabilidades como nação e como Estado: em outubro do ano transato, iniciou-se o julgamento de Maurice Papon — que, após a guerra, tornou-se auxiliar do General de Gaulle (1958) — por crimes cometidos contra a humanidade, justamente durante aquele período que a França teimava em apagar da memória.
28. Lá, como cá (espera-se), os fantasmas do passado vivificam na retina da cidadania o compromisso com o ideário de Justiça que é apanágio dos Estados Democráticos de Direito, (essa afirmação, que não pretende ter como argumento jurídico stricto sensu, conteúdo panfletário, se não serve porque se trata de diferentes ordenamentos jurídicos, em diferentes momentos históricos, certamente contribuirá para que se compreenda o discurso legitimante do Direito.) e é com a mente voltada para o modelo do Direito francês, que admitiu julgar atos praticados pelos detentores do poder político, de antes da Constituição de 1958, que convém iniciar a investigação para, ao fim, verificar se a mesma solução pode ser adotada, ou não, pelo Direito brasileiro.
29. Aqui, a primeira regra constitucional que vem a lume — à guisa de aproximação inicial, porque se trata de um processo administrativo e não judicial — é a encartada no art.¬ 5°, XXXV, da Constituição de 1988 que preceitua que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
30. Tal preceito já se encontrava substancialmente insculpido na Constituição pretérita (a diferença é que o atual prevê a necessidade de preservar-se o cidadão até mesmo contra a simples ameaça de lesão). Ocorre que, naquela Constituição, existia uma outra regra que suprimia a possibilidade de exercício da jurisdição quando se tratasse de atos praticados pelo comando supremo da revolução. A prevalecer o entendimento, assente em doutrina, de que tempus regit actum, nenhuma outra consideração seria necessária porquanto o ato demissório ocorreu, desenganadamente, na vigência da Constituição passada.
31. Creio, entretanto, que assim não deve ocorrer. Com efeito, como adverte Meirelles Teixeira:
"Cumpre não confundir a vigência temporal da norma com a sua aplicação retroativa, isto é, a fatos ou situações pretéritos, o que pode ocorrer até mesmo entre nós, desde que se respeitem os direitos adquiridos, os atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada [....] Assim, a atual constituição poderá perfeitamente aplicar-se a situações passadas, isto é, anteriores àquela data, sempre que expressamente o determine (é evidente que qualquer constituição poderá sempre abrir exceção a seus próprios preceitos) ou, mesmo, não ocorrendo tal hipótese, desde que não se ofenda o preceito atrás citado."  J.H. Meirelles Teixeira, Curso de Direito Constitucional, Forense Universitária, 1991, p. 288.).
32. O lúcido comentário do constitucionalista em destaque seria suficiente para demonstrar que, mesmo à ausência de texto expresso, seria possível aplicar os regramentos da atual Constituição a um fato ocorrido sob a égide da antiga Constituição, desde que não houvesse ofensa a direito adquirido, a ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
33. É bem verdade que pode ser sustentado em sentido contrário, isto é, no sentido de que a Constituição, se se aplica aos fatos futuros e aos fatos pendentes, não busca revolver os chamados facta praeterita. O raciocínio, contudo, não lograria infirmar o que vem de ser sustentado porque, como será visto oportunamente, quando do exame da ocorrência ou não de prescrição, o que se tem in casu é justamente um ato pendente de revisão administrativa que nessa condição se encontrava quando entrou em vigor a atual Constituição.
34. Uma outra vertente de raciocínio, que parte justamente do outro polo do problema, é a pertinente ao fato de que o art. 181 da Constituição passada e o art. 3° da Emenda Constitucional n° 11/78 perderam qualquer aptidão normativa em face do advento da Constituição de 1988. Conferir-lhes eficácia post mortem, conferir-lhes ultratividade, é juízo que não se compadece com os cânones da ciência política e que vulnera todos os princípios que regem os conflitos de leis no tempo, como passa a ser demonstrado.
35. Quanto ao primeiro aspecto, conviria lembrar as palavras de Sieyès (Emmanuel Joseph Sieyès, Qu'est-ce que le Tiers Etat? Trad. Norma Azeredo, Liber Juris, 1988, p. 119), prógone da teoria do Poder Constituinte:
Seria possível dizer que uma nação pode, por um primeiro ato de sua vontade não querer no futuro comprometer-se senão de uma maneira predeterminada?
Primeiramente, uma nação não pode nem alienar, nem se proibir o direito de mudar; e, qualquer que seja a sua vontade, ela não pode cercear o direito de mudança, assim que o interesse geral o exigir. Em segundo lugar: com quem se teria comprometido esta nação? eu entendo que ela pode obrigar seus membros e mandatários, e tudo o que lhe pertence; mas será que ela pode impor deveres a si mesma? O que é um contrato consigo mesmo? Sendo as duas partes a mesma vontade, ela pode sempre desobrigar-se de tal compromisso.
36. É bem de ver que essas palavras, que foram escritas para objurgar a pretensão de atribuir-se eternidade a um texto constitucional, casam, como luva de encomenda, com o caso concreto. Deveras, a partir do texto, observa-se o absurdo que representa conferir-se ultratividade (isto é, permitir que uma lei ou artigo já revogados continuem a possuir eficácia normativa) a um preceito da Constituição revogada, máxime no caso concreto, quando a Constituição atual contém norma expressa vedando qualquer possibilidade da existência de um ato qualquer que não possa ser submetido ao exame do Poder Judiciário.
37. As regras de solução de conflitos de lei no tempo também não autorizam, para o caso concreto, a ultratividade das regras que impediam o Judiciário de examinar os atos praticados com base no AI n° 5/68.
38. Realmente, o direito constitucional anterior cessa, desaparece, com a entrada em vigor do novo estatuto político! O que há aqui, ensina Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Coimbra, Coimbra Editora Limitada, 1991 pp. 272/3), é revogação global da constituição anterior. É que
"Por definição, não pode haver senão uma constituição – em sentido material e em sentido formal; em cada país e em cada momento, só pode prevalecer uma certa ideia de Direito; a finalidade especifica do acto constituinte consiste em substituir a ordem constitucional criada a partir de anterior acto constituinte por uma diferente ordem constitucional...
Não cabe indagar da compatibilidade ou não de qualquer norma constitucional anterior com a correspondente norma constitucional nova ou com a nova constituição no seu conjunto; basta a sua inserção na anterior constituição para que automaticamente -- expressa ou tacitamente - fique ou se entenda revogada pela constituição posterior."
39. Também no sentido de que não se deve admitir a ultratividade de um preceito constitucional é o magistério de José de Oliveira Ascensão (Direito. Introdução e Teoria Geral, Uma Perspectiva Luso-Brasileira, 9a. edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1995, pág. 296):
A pretensão de toda constituição é a de compendiar exaustivamente o Direito Constitucional do país (escrito) não podendo portanto admitir a concorrência de uma constituição anterior.
40. Ora, se assim é, resta induvidoso que os preceitos da Constituição passada que impunham a irrevisibilidade dos atos revolucionários não passam, hoje, de meras proposições sintáticas, sendo defeso ao intérprete reconhecer-lhes qualquer força ultrativa.
41. Em suma, do ponto de vista do Direito Constitucional, quanto ao aspecto da atual revisibilidade do ato administrativo praticado com base no Ato Institucional n° 5, não vejo qualquer impedimento a que ocorra. Isso, obviamente, dentro de um espectro estritamente jurídico.

Quanto à Prescrição

42. Caberia cogitar, entretanto, como feito nas manifestações administrativas anteriores a esta, de óbice de natureza infraconstitucional consistente na prescrição administrativa.
43. É sabido que, no Direito Brasileiro, como de resto, no Direito da grande maioria dos povos ocidentais, são previstos prazos dentro dos quais as questões podem ser examinadas pelos órgãos administrativos e jurisdicionais, após o que ocorre prescrição ou decadência, conforme o caso.
44. No caso concreto, argui-se a prescrição quinquenal prevista no art. 169 do antigo Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, para inadmitir o reexame da matéria. É que, demitido em 1969, somente após oito anos do ato demissório teria o peticionário apresentado irresignação contra o referido ato.
45. Como se sabe, a Formulação n° 33 do DASP permite que a administração releve a prescrição administrativa, desde que não se trate da prescrição quinquenal. E por que assim se passa? Porque a prescrição quinquenal é o limite imposto pelo Decreto 20.910/32 para prescrição das ações judiciais contra as pessoas jurídicas de direito público. Soaria, assim, contraditório relevar a prescrição administrativa quando, na esfera judicial, idêntico resultado não pudesse ser obtido.
46. Vejo alguma dificuldade de acolher o argumento, tal como posto. Com efeito, quando se fala em prescrição parte-se do princípio de que alguém, tendo sofrido uma certa lesão, tenha deixado transcorrer in albis o prazo que lhe foi outorgado pela lei para promover a competente ação judicial visando à reparação da lesão.
47. Cumpre recordar, neste passo, que o Estatuto Constitucional que vigeu até fins de 1988 previa expressamente que a jurisdição não se estendia ao exame dos atos praticados com base no Ato Institucional n° 5/68. Ora, comezinho em Direito, jurisdição e ação são os dois lados de uma mesma moeda. Se não há jurisdição, ação não há, e se ação não há não pode correr prazo de prescrição que implique perda do direito de ação, por uma simples e elementar razão: não se perde o que não se tem!
48. Assim, qualquer prazo prescricional (judicial ou administrativo) a respeito de qualquer pretensão que visasse à correção de ato praticado com base no Ato Institucional n° 5 somente poderia começar a ser contado a partir da vigência do novo Estatuto Político, isto é, quando, segundo o entendimento aqui esposado, passou a ser possível a revisão judicial dos atos revolucionários, por força da revogação total do art. 181 da Constituição passada e do art. 3° da Emenda Constitucional n° 11/78.
49. Sendo 5 de outubro de 1988 o dies a quo (o dia inicial) da contagem do prazo, a prescrição quinquenal terá alcançado todas as pretensões que não tenham sido exercidas até 5 de outubro de 1993, aí incluídas, por óbvio, as pretensões de natureza financeira. Essa a regra geral a ser seguida.
50. Cumpre verificar o que se passou, para saber se a regra enunciada encontra aplicação ao caso concreto.
51. Em 21 de janeiro de 1975 (fls. 129), o postulante requereu vista de seus assentos funcionais "para conhecimento e melhor orientação de suas obrigações e direitos."
52. Em 19.09.75, requereu (fls. 134) os "autos do Processo Administrativo que deu origem ao ato demissório."
53. Em 20 de maio de 77 requereu ( fls. 189) abertura de inquérito administrativo, "inconformado com a completa e inadmissível ilegalidade de procedimentos que resultou em sua `exoneração’. (ad litteram)
54. Há, ainda, o requerimento de 1979, com a corrigenda que se lhe seguiu, e o recurso de 12 de março de 1981, onde consta a irresignação contra a primeira aplicação da Lei de Anistia, o que foi repetido na petição de irresignação datada de 08 de janeiro de 1985, fls. 194, e ratificada na petição de 29.03.85, fls. 200, ambas vindicando a alteração do fundamento do despacho que lhe concedeu a reversão ao serviço público.
55. Do exame dos autos resulta que, há mais de vinte anos, e mais de dez anos antes de ocorrer o dies a quo do prazo prescricional aplicável à pretensão do servidor, vem ele, reiteradamente, rogando que a administração pública lhe dê o direito ao devido processo legal, que instaure um procedimento administrativo para que se apurem eventuais ilícitos administrativos que tenha cometido e onde possa apresentar a defesa pertinente. Mais de uma vez perguntou à administração onde estava a apuração dos fatos que ensancharam a sua demissão; quais motivos determinaram a demissão. Tudo em vão.
56. Se a prescrição se baseia no velho brocardo dormientibus non sucurrit jus, o parágrafo supra demonstra que, certamente, esse não é o caso do postulante. Em conclusão quanto a este aspecto, não vejo como deixar de apreciar a súplica do servidor, tanto porque não ocorreu a prescrição quanto porque, especificamente neste caso, considero que a atividade recursal exercida impediu a preclusão de toda a matéria agitada no presente processo, o que permite caracterizar a situação como um fato pendente, a ele sendo aplicável o novo texto constitucional.

De outras razões que orientam para o reexame da matéria

57. Afirma-se que a história se repete. Nada mais verdadeiro, se considerado o caso presente. Examinando os grandes processos da História (ou os grandes erros da História) decerto que o mais evidente equívoco existente nos fastos do Direito foi o cometido, na França, contra Alfred Dreyfus.

58. A Dreyfus, após ser condenado pela segunda vez — pelo mesmo crime de alta traição que não houvera cometido — por um Conselho de Guerra francês, ofereceram o indulto, como forma de reparar o erro do Estado. O condenado respondeu:
"Não quero perdão, Não quero perdão. O perdão desonra-me!" (apud, Paul Richard, Os Grandes Processos da História, 11° vol. , trad. de Argeu Ramos, Edição da Livraria do Globo, Porto Alegre, 1941, p. 321)
59. Ao fim, porém, debilitado e quase morto, esgotado por cinco anos de atrozes torturas físicas e morais, admite ser indultado, apenas para sair da prisão declarando:
O governo da República devolveu-me a liberdade. nada, porém, significa sem honra. Desde hoje vou continuar procurando a reparação do terrível erro judiciário de que sou vítima. Quero que toda a França saiba, por uma sentença definitiva, que sou inocente. Meu coração não ficará tranquilo enquanto houver um só francês que me impute o crime que outra pessoa cometeu."
60. Em 1889, o Governo francês apresentou um projeto de anistia ao Senado para "todos os fatos criminosos ou delituosos conexos com o `caso' ou compreendidos em um processo relativo a um desses fatos." A resposta de Dreyfus foi imediata:
"... O inocente tem direito, não à clemência, mas à justiça.
61. Aqui, também, o peticionário, em todas as vezes que lhe foi possível, bradou contra a anistia que insistiam em ofertar-lhe, porque, no seu entendimento, não cometera crime de qualquer espécie.
62. Quando vejo a Igreja, tão ciosa de seus dogmas e de suas verdades, séculos após, em ato de contrição, rever o julgamento de GALILEU, para reconhecer que se enredou em colossal equívoco, pergunto-me se não é hora de se fazer a hora, quae sera tamem.
63. Afinal,
"Durante esse tempo todo, o infortunado dilacera as carnes, protestando a sua inocência. E a instrução foi feita à maneira do século XV, misteriosamente..." (Emile Zola, Eu Acuso!, apud Os Grandes Processos... p. 389)
64. A persistência do signatário parece a encarnação do que proposto, no Século passado, por Ihering (R. von Ihering, A Lucta pelo Direito, Livraria e Editora Vendramim, s/data, pp. 32/33), que bem calha transcrever:
de modo semelhante, nas acções e nos pleitos judiciaes, em que existe uma grande desproporção entre o valor do objecto e os sacrifícios de qualquer natureza que nelles é mister dispender, não se vai demandar, não se litiga pelo valor insignificante talvez do objecto, mas sim por um motivo ideal, a defesa da pessoa e do seu sentimento pelo direito.
Quando o que litiga se propõe semelhante fim e vai guiado por taes sentimentos não há sacrifício nem esforço que tenha para si peso algum, porquanto vê no fim que quer atingir a recompensa de todos os meios que emprega.
A grande questão para elle não é a restituição do objecto que muitas vezes é doado a uma instituição de beneficência, a que o póde impellir a litigar; o que mais deseja é que se lhe reconheça o direito.
Uma voz interior lhe brada que não lhe é permitido retirar-se da lucta, que não é só o objecto que não tem valor algum, mas sim a sua personalidade, seu sentimento pelo direito e a estima que elle deve a si mesmo, que estão em jogo...
Resistir à injustiça é um dever do indivíduo para comsigo mesmo; porque é um preceito da existência moral: - é um dever para com a sociedade, porque esta resistência não póde ser coroada com o triumpho, senão quando fôr geral. (mantida a grafia da tradução portuguesa)
65. Um argumento a mais precisa ser lançado nesse sentido: ao que consta, não há interesses patrimoniais em jogo, até porque, com o advento da Emenda Constitucional n° 26/85, foi computado o seu tempo de afastamento para os efeitos de quinqênios, promoções, licença-prêmio e outras vantagens a que teria direito se em atividade estivesse. Eventuais salários relativos ao período de afastamento não seriam exigíveis, porque atingidos pela prescrição em 05 de outubro de 1993, haja vista que, com relação ao tema, não houve irresignação do servidor.
66. Com esses adminículos, reafirmo a convicção de que a luta quase obsessiva do servidor para ver revisto o ato de reversão ao serviço público deve prosperar porque não há razão de ordem jurídica que possa ser oposta a essa pretensão.

Do Mérito do Ato Demissório

67. Em todo este volumoso processo há apenas e tão-somente dois documentos que dizem respeito ao procedimento administrativo levado a efeito para demitir o servidor: 1) cópia do Diário Oficial de 25 de julho de 1969 em que constava Edital de intimação do servidor para tomar ciência do processo que lhe era movido e apresentar a defesa que tivesse (Registre-se que, dos autos consta, o servidor encontrava-se licenciado do serviço público desde o ano anterior e em viagem ao exterior.); e 2) Decreto de 18 de setembro de 1969, dos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, segundo o qual
De acordo com o disposto no § 1° do artigo 6° do Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968, combinado com o artigo 1°, item II do Ato Complementar n° 39, de 20 de dezembro de 1968 demite o servidor em questão.

68. E só!

69. O que falta ao ato? A motivação. E isso, por si só, é suficiente para demonstrar que o ato demissório não se acomoda ao princípio da legalidade. Dir-se-á que se tratava de um ato do poder revolucionário a que, portanto, não se aplicariam as regras que incidem em situações de normalidade. Colho, para rebater o argumento, o que vem sendo ensinado, há anos, por Miguel Reale:
... o que se pode verificar é a jurisfação ou seja, a juridicidade progressiva do poder... há uma dialética essencial entre direito e poder, de tal modo que o poder se subordina ao direito no ato mesmo em que se decide por uma das soluções normativas possíveis, em função dos valores e fatos que condicionam a decisão mesma. É a essa correlação dialética que denomino jurisfação do poder. (Teoria do Direito e do Estado, p. 82)
70. Disso decorre que mesmo o poder revolucionário deveria submeter-se àquela Constituição (que poderia reformar como quisesse) que admitia como sendo a vigente para o País.
71. Ora, segundo aquele estatuto básico, os atos administrativos deveriam subordinar-se, dentre outros princípios, ao da legalidade estrita. Com efeito, o princípio da legalidade que impregna os atos da administração não é conquista que se deva à Constituição de 1988. A confirmar o asserto, basta breve exame na doutrina e na jurisprudência de vinte anos atrás para se ter essa certeza. O administrador público, ressalvadas as hipóteses de atos discricionários, sempre teve o dever de motivar os atos que praticava. Apenas à guisa de exemplo do que afirmado, é colhida jurisprudência de nossa mais alta corte de Justiça editada antes do advento da Constituição de 1988:
"Servidor publico em estágio probatório. Ato administrativo examinado em face de sua motivação. Exoneração fundada na conveniência do serviço. Funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado, nem demitido, sem inquérito, ou sem as formalidades legais de apuração de sua capacidade." (RE¬61401/GB, relator Ministro Eloy da Rocha, Segunda Turma).
"Mandado de Segurança. Anistia. Magistrado. Reversão ao serviço ativo. Pressupostos negativos do deferimento. Ato administrativo vinculado. Postas, na lei, as condicionantes negativas de reversão ao serviço ativo do servidor anistiado, a validade do ato administrativo indeferitório esta condicionada como requisito essencial, aos respectivos motivos determinantes, cuja existência e congruência se submetem ao controle judicial. Invalidade do ato indeferitório que não expressa a necessária motivação legal, igualmente inexistente no processo administrativo que lhe dá suporte MS-20274IDF relator Ministro Rafael Mayer - Tribunal Pleno).
72. Para que se tivesse o ato por motivado, deveria a administração ter declinado o motivo por que o servidor estava sendo demitido, porque, de trivial sabença, a motivação nada mais é do que a subsunção dos fatos em que se baseia a administração na norma jurídica que deve incidir. À falta de motivação, outro caminho não resta senão declarar a nulidade do ato demissório com espeque na Súmula n° 473 do Supremo Tribunal Federal, mencionada em outra parte deste parecer.
73. Convém fazer um registro antes de encerrar esta manifestação que já vai longa. O recurso é dirigido ao Exm° Senhor Ministro da Fazenda, a rigor responsável pelo ato de reversão do servidor ao serviço público. Ocorre que eventual acatamento do recurso implicará a anulação de ato praticado por quem se encontrava, em 1969, na Chefia do Poder Executivo. Parece-me, assim, que somente o Excelentíssimo Senhor Presidente da República poderá acolher ou não a pretensão recursal.

Conclusão

74. Feitas essas considerações, parece-me lícito concluir que:
a) as disposições dos Atos Institucionais e da Constituição pretérita que impediam a revisibilidade dos atos praticados pelo comando da Revolução perderam qualquer eficácia com o advento da Constituição de 1988, sobrevivendo, hoje, como meras proposições sintáticas;
b) a Constituição de 1988 rege tanto os atos futuros quanto os atos pendentes;
c) é possível, hoje, rever os atos praticados com base nos Atos Institucionais, desde que não se encontrem cobertos pela prescrição;
d) o dies ad quem do prazo prescricional para revisão dos atos praticados sob a égide dos Atos Revolucionários ocorreu em 5 de outubro de 1993. Inclui-se nessa prescrição qualquer espécie de pretensão de natureza financeira;
e) no caso concreto, entretanto, o servidor ¬recorrente tomou todas as providências administrativas a seu alcance para evitar que a prescrição começasse a correr, ressalvadas as pretensões de natureza financeira, que não foram objeto de irresignação por parte do servidor;
f) o ato demissório, falto de motivação, é, ipso facto, nulo e deve ser revisto pela administração;
g) no caso concreto, se acolhidas as ponderações aqui expendidas, o provimento do recurso implicaria a necessidade de a administração, por ato do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, (i) anular o ato que o reverteu ao serviço público com base na Lei de Anistia, (ii) declarar a nulidade do ato demissório e (iii) mandar republicar o ato de reversão fundando-se não mais na Lei de Anistia e sim na nulidade ora mencionada.
Sub censura.

PROCURADORIA-GERAL DA FAZENDA NACIONAL, em 08 de outubro de 1998.
JORGE AMAURY MAIA NUNES

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Providências preliminares e Julgamento conforme o estado do processo

Providências preliminares




Na praxe forense civil, é usual aplicação da expressão réplica que seria um ato por meio do qual o autor teria o direito de contestar a contestação. Esse direito, por óbvio, não existe. O de que trata o Código de Processo Civil é das chamadas providências preliminares que assim estão especificadas na lei: (i) do efeito da revelia, que acaba de ser estudada; (ii) da declaração incidente; (iii) dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do pedido; (iv) das alegações do réu.

As providências preliminares ainda se ajustam à fase postulatória e o seu cumprimento, quando for o caso, tem pertinência com a estabilização objetiva do processo.

Afirma o artigo 325 que se o réu contestar o direito que constitui fundamento do pedido, o autor poderá requerer, no prazo de 10 (dez) dias, que sobre ele o juiz profira sentença incidente, se da declaração da existência ou da inexistência do direito depender, no todo ou em parte, o julgamento da lide. Como se vê, isso acontece se o réu hostilizar o fato gerador da demanda, a causa petendi. Se o autor não promover o pedido de declaração incidente, essa matéria poderá permanecer eternamente em aberto, e poderá sempre ser suscitada em nova demanda entre as mesmas partes, dada a disposição contida no artigo 469, III, do CPC , que diz não fazer coisa julgada a apreciação de questão prejudicial decidida incidentemente no processo.

É de bom aviso, pois, que o autor lance mão do disposto no artigo 325 e requeira ao juiz que sobre essa questão profira sentença incidente, para que sobre a decisão se derramem os efeitos da coisa julgada material, na forma do artigo 470 do CPC, que soa, in verbis: Faz, todavia, coisa julgada a resolução da questão prejudicial, se a parte o requerer (arts. 5º e 325), o juiz for competente em razão da matéria e constituir pressuposto necessário para o julgamento da lide.

Vê-se, portanto, que a propositura da ação declaratória tem o condão de aumentar o judicium do juiz naquela relação processual, embora não lhe tenha aumentado a cognitio. Vale o registro lateral de que o réu também pode promover ação declaratória incidental, ainda que o Código somente se refira ao autor. Em qualquer dos casos, e ainda que não haja expressa disposição no CPC a respeito, é importante compreender que, se ocorrer a propositura da ação declaratória incidental, deverá o magistrado determinar a oitiva da parte adversária quanto ao pedido, podendo esta apresentar a defesa que tiver.

No que concerne às providências preliminares previstas no artigo 326 (resposta a fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do pedido), a parte final deste dispositivo é equivocada, dado que a lei disse menos do que gostaria de ter dito. Com efeito, lá está afirmado que o juiz faculta à parte a produção de prova documental. Não! A parte pode opor-se a esses fatos mediante a produção de qualquer tipo de prova. Qualquer prova admitida em direiro; não só documental. E isso porque, muitas vezes, a maneira que o autor tem de provar a não-ocorrência de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do seu direito pode ser a prova testemunhal, ou, também, uma prova pericial.

A qualquer defesa contra o processo, daquelas enumeradas no artigo 301, cabe a adoção das providências preliminares do artigo 327, mandando o juiz que seja ouvida a parte autora, facultando-lhe a produção de qualquer tipo de prova (aqui o mesmo equívoco legislativo foi cometido, ao limitar o direito da parte à produção da prova documental). É sabido que no art. 301 o legislador colocou, lado a lado, tanto preliminares de natureza dilatória, como outras de natureza peremptória. Algumas delas, permitem sanação, outras conduzem à morte do processo.

Se verificar a ocorrência de nulidade sanável, o juiz manda supri-la no prazo de até 30 dias. Se não for sanável, a regência da matéria é remetida ao artigo 329 (extinção sem julgamento de mérito) a ser examinado logo mais.


Julgamento conforme o estado do processo


 

O capítulo em questão trata de três distintas figuras, excludentes entre si, de sorte que somente uma delas pode ser aplicada pelo magistrado relativamente a determinada relação processual.

Na primeira das modalidades, nominada singelamente de extinção do processo, se ocorrer qualquer das hipóteses previstas nos arts. 267 e 269, II a V, o juiz declarará extinto o processo.

Estão presentes, aí, duas figuras, relativamente a (i) sentenças meramente processuais; e (ii) sentenças em que, ou há resolução de mérito, ou se trata de falsas sentenças de mérito, como gosta de apelidá-las Cândido Dinamarco. Com relação à primeira figura, já se disse que algumas das preliminares processuais indicadas no artigo 301 têm a capacidade de extinguir o processo; outras não. Se não está presente no processo nenhuma das preliminares de natureza peremptória, o processo tem chance de progredir, de ser julgado no mérito. Se ao revés, se trata de preliminares de natureza dilatória (a existência de um pressuposto litisingresso impediente, como a ocorrência de coisa julgada, por exemplo), obrigatoriamente incidirá o artigo 329, devendo o juiz proferir uma sentença meramente processual, extinguindo o processo sem resolução de mérito.

Com relação à segunda figura, haverá a prolação de falsa sentença de mérito quando, por exemplo, o juiz homologar a transação, e verdadeira sentença de mérito quando o juiz pronunciar a decadência.

Se não couber a aplicação de nenhuma das situações previstas no artigo 329, passa-se ao exame da segunda modalidade, nominada julgamento antecipado da lide, regida pelo artigo 330 do CPC que soa, in verbis: O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença:

I – quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência;

II – quando ocorrer a revelia (artigo 319).

Cabem dois registros a esse respeito: não há questão somente de direito. Toda questão é de direito e de fato, até porque, consoante a teoria tridimensional, direito é fato, norma e valor. O que ocorre é que, às vezes, os fatos se tornam incontroversos. Na hipótese do inciso II, o legislador cuidou de revelia, mas como já examinado anteriormente, deveria ter cuidado de efeitos da revelia, e não da revelia (!) até para harmonizar esse dispositivo com a regra do artigo 324, antes estudada.

Igualmente, se não couber a aplicação do artigo 330, passa-se ao exame e aplicação do artigo 331, da audiência preliminar, que tem a seguinte dicção:

"Artigo 331. Se não ocorrer qualquer das hipóteses previstas nas seções precedentes, e versar a causa sobre direitos que admitam transação, o juiz designará audiência preliminar, a realizar-se no prazo de trinta dias, para a qual serão as partes intimadas a comparecer, podendo fazer-se representar por procurador ou preposto, com poderes para transigir.

§ 1º Obtida a conciliação, será reduzida a termo e homologada por sentença.

§ 2º Se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação, o juiz fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário.

§ 3o Se o direito em litígio não admitir transação, ou se as circunstâncias da causa evidenciarem ser improvável sua obtenção, o juiz poderá, desde logo, sanear o processo e ordenar a produção da prova, nos termos do § 2o."

Muito provavelmente, a obrigatoriedade de realização dessas audiências, como disposto no caput, iria assoberbar a pauta dos juízes. Isso, aliás, já estava acontecendo, razão mais do que suficiente para que o legislador (Lei nº 10.444, de 2002), oito anos após a reforma por que passou, em 1994, o Código de Processo Civil, fizesse adicionar um § 3º a esse artigo, flexibilizando a obrigatoriedade da audiência preliminar . É bom recordar que uma das razões do reconhecido fracasso do procedimento sumaríssimo, tal como veio originalmente no CPC de 1973, foi justamente a necessidade de realização de audiência, sem que houvesse datas disponíveis para tanto. O que era infortúnio de uns poderia passar a ser desgraça de todos, máxime porque a lei era expressa a respeito da necessidade de designação da audiência de conciliação.

Bem é de ver, também, que o caput do artigo, na versão da reforma de 1994, dizia mais do que queria dizer, pois conduzia à ilação de que, se tratasse de direitos indisponíveis não deveria ser tentada a conciliação. Esta era a dicção legal: “Se não se verificar qualquer das hipóteses previstas nas seções precedentes e a causa versar sobre direitos disponíveis, o juiz designará audiência de conciliação.”

Ora, o que é impossível quanto aos direitos indisponíveis é a renúncia e a confissão. Não raro, porém, os direitos patrimoniais que deles defluem podem e devem ser objeto de conciliação. Confira-se a esse respeito o modelo seguido na Justiça do Trabalho que, em regra, cuida de direitos irrenunciáveis. Bem andou, por isso, o artífice da lei nº 10.444, antes mencionada, ao alterar a redação do fragmento legal antes transcrito, explicitando que se a causa versar sobre direitos que admitam transação a audiência preliminar pode ser realizada. Dizendo de outra forma: quanto à expressão admitir transação, há de ser observado que existem direitos indisponíveis transacionáveis e outros não transacionáveis. Os direitos da personalidade são indisponíveis e não-transacionáveis. O direito a alimentos é indisponível, mas pode ser negociado seu valor, sua quantia.

No que concerne ao prazo de trinta dias (que não é cumprido na maioria das vezes) para a realização da audiência, não há a especificação do dies a quo. Não é, todavia, difícil localizá-lo: se não houver providências preliminares a adotar (e, obviamente, não for o caso dos arts. 329 e 330), o prazo para a realização da audiência conta-se a partir da juntada da contestação; se necessária a adoção das providências preliminares, o prazo deve ser contado a partir da prática dessas providências ou após a exaustão do prazo fixado para tanto (art. 324, e 325 a 327).

Obtida a conciliação, será ela reduzida a termo e homologada por sentença, extinto o processo com julgamento de mérito.

O novo § 2º do art. 331 pode induzir ao entendimento de que, na mesma audiência, se não lograr conciliar as partes, deverá o magistrado implementar as atividades ali previstas. A uma porque o parágrafo em causa constitui nítida explicitação do desdobramento da audiência prevista no caput. A duas porque, já se disse, o objetivo da reforma foi distribuir uma justiça mais célere, mais eficaz e mais justa. A interpretação que se concilia com esse desiderato é justamente a que entende como necessária a continuidade da audiência para que o juiz fixe os pontos controvertidos , decida as questões processuais pendentes, determine as provas que devam ainda ser produzidas, e designe a audiência de instrução e julgamento, se necessário.

É claro que interpretação em outro sentido (ou seja, no de que a atividade que deve se seguir à tentativa de conciliação, deve se realizar em momento posterior à audiência) também é possível. A própria história da inovação seria bastante para essa demonstração. É que o Anteprojeto de 1985, no § 2º do art. 331, dispunha que na mesma sessão o juiz fixaria o objeto da demanda e os pontos controvertidos e designaria audiência de instrução e julgamento, decidindo sobre as provas a serem produzidas. Ora, é de sabença trivial que o Anteprojeto de 1985 foi a maior fonte de inspiração do legislador da reforma de 1994, que dele reproduziu artigos inteiros, ipsis verbis. Pois bem, no caso do art. 331, embora haja copiado a idéia, o legislador retirou do § 2º a expressão na mesma sessão, o que leva à conclusão de que optou pela vertente que indica que as atividades subsequentes devem (ou podem) ser realizadas num momento posterior.

Parece que esta última deve ser a posição a ser adotada, já por força do argumento supra, já porque a prática, o dia-a-dia não, se compadece com a outra orientação. Realmente, por mais bem preparado que seja o órgão do Judiciário, nem sempre são de fácil deslinde as chamadas questões processuais pendentes, às vezes a exigir muitas horas de investigação, tempo incompatível com as pautas apertadas dos magistrados.

Não se quer com isso estimular praxes divorciadas do Código de Processo Civil, como sói ocorrer no foro: despachos inúteis e não previstos em lei, do tipo diga o autor sobre a contestação (quando, às vezes, não e o caso), ou especifiquem provas, indicando desde logo sua finalidade, e que já foram indicadas na inicial ou na contestação. É bem verdade que o Código de Processo Civil contribuiu para descalabros desse jaez. Com efeito, o artigo 451, que trata da audiência de instrução e julgamento dispunha (rectius, dispõe porque não foi revogado pelo legislador da reforma) que ao iniciar a instrução, já na audiência, o juiz fixará os pontos controvertidos sobre que incidirá a prova.

Ora, na audiência, a prova que se produz é somente a pessoal, das partes, testemunhas e peritos. Tardia, pois, a fixação dos pontos controvertidos, se feita no momento preconizado no artigo 451. De aplaudir, portanto, a alteração que traz a fixação dos pontos controvertidos para o saneador — observe-se que o artigo não mais fala em saneado o processo; a rubrica da seção, porém, não foi alterada —, na esteira do que à época preconizado no Código de Processo Civil de Portugal, artigos 510 e 511, só que lá com muito maior detalhamento.

Todo esse raciocínio parte da premissa de que na inicial e na contestação autor e réu indicam as provas que pretendem produzir. É bem verdade que a necessidade absoluta da prova somente se estabelece após os termos da contestação e, às vezes, após a réplica do autor (quando o réu haja arguído fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor). Veja-se bem que não se cuida mais, como na sistemática anterior, de deferimento de provas pelo juiz. Agora ele determina as provas a serem produzidas. Determina que o autor prove o fato controvertido a ou b, mediante a utilização do meio probatório hábil para tanto.

A regra relativa à fixação dos pontos controvertidos é cópia mal-feita do Código de Processo Civil de Portugal. Lá o magistrado faz questionário a respeito dos pontos controvertidos, e, por isso mesmo, é capaz de verificar o que ainda falta ser provado. O magistrado sabe qual prova ainda é necessária e quem há de dela desincumbir-se Do exame do questionário percebe se já há certas matérias provadas e que não mais necessitam da produção de provas. A ideia aqui é a mesma, só que não tão bem escrita. De qualquer maneira, deve o magistrado, nesse momento, fixar os pontos controvertidos sobre os quais ainda há necessidade de produção de prova, determinando-as e designando audiência de instrução e julgamento se houver necessidade de produção de prova oral

O mesmo dispositivo cuida do ponto alto da fase saneadora do processo ao reportar-se ao fato de que, neste momento, o juiz ‘decidirá as questões processuais pendentes’. Sanear é sanar os vícios, limpar o processo, para que possa prosseguir sua marcha sem máculas.

Depois eu conto o resto...

terça-feira, 1 de maio de 2012

O ESTADO CONSTITUCIONAL - Parte I

Estado constitucional: nascimento e evolução


Já foi dito por muitos que as Constituições escritas são apanágio do Estado moderno . Com isso, situa-se o nascimento do Estado, como hoje se o concebe, a partir dos fins do Sec. XVIII. Observa CANOTILHO, porém, que a primeira tentativa de constituição escrita verificou-se ainda na INGLATERRA com o Agreement of the People (1647-1649), embora seja o Instrument of Government (1653), de Cromwell, considerado como a primeira verdadeira constituição escrita, aproximando-se das fórmulas constitucionais autoritárias da época contemporânea. Não se deve esquecer, também, que os dinamarqueses apontam como sua primeira Constituição a que foi editada no ano de 1.665, sob o reinado de Frederico III.

É certo, todavia, que a pré-história do Constitucionalismo vai bem mais longe. CANOTILHO, por exemplo, anota que alguns autores pretendem situá-la no século XIII, mais precisamente em 1215, quando os barões ingleses impuseram a João sem Terra a Magna Carta (Magna Charta Libertatum).

Talvez se possa retroceder um pouco mais na História. Na antiguidade Clássica, ARISTÓTELES já distinguia, consoante demonstra MEIRELLES TEIXEIRA , dentre as normas que constituíam a tessitura do Estado, a que denomina politeia e as normas comuns, nómoi, que se deviam subordinar às primeiras. Demais disto, o estagirita já tinha o seu próprio conceito de constituição, que seria "o princípio segundo o qual estão organizadas as autoridades públicas, especialmente aquela que é superior a todas e soberana." , conceito esse que, se analisado estritamente pela ótica do constitucionalismo de hoje, certamente padeceria do fato de assimilar constituição a governo, o que, aliás, é expressamente admitido pelo filósofo grego.

Nada obstante, tem-se por induvidoso que ARISTÓTELES já previa a partição do poder entre classes, base da teoria da constituição mista, que viria mais tarde a se associar ao conceito de separação dos poderes, o que representa irrefragável contribuição à formação do Estado Constitucional.

Admite-se, contudo, que o Constitucionalismo moderno é fruto do pensamento do final do século XVII e dos acontecimentos políticos da centúria subsequente: a independência dos Estados Americanos e a Revolução Francesa neste caso, a divulgação das ideias de LOCKE, naquele .

Não se olvide aqui a existência de dois contributos político-filosóficos igualmente importantes: a obra de MONTESQUIEU, especialmente o seu O Espírito das Leis, de 1747/48, e o trabalho de Emmanuel Sieyès, Qu'est-ce que le Tiers État?, publicado no início de 1789. Ambos influíram decisivamente para a evolução do constitucionalismo. Quanto ao primeiro, é conhecida de sobejo a importância da teoria da separação dos poderes para o moderno Direito Constitucional, que se cristalizou no artigo 16 da Constituição francesa de 1791, na parte pertinente à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: "Toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos do homem nem determinada a separação de poderes, não possui constituição." ; quanto ao segundo, deve-se-lhe a distinção, anteriormente apenas intuída por outros pensadores, entre poder constituinte e poder constituído, este delegado, incapaz de modificar as condições de sua delegação e, por isso mesmo, de alterar a constituição.

Não nasceu o Estado Constitucional moderno, permita-se-nos o truísmo, de uma sentada só. Foi fruto de lenta evolução dos costumes das sociedades políticas, as quais nem sempre caminhavam no mesmo diapasão. Fatores de toda ordem, sociais, geográficos, culturais, seguramente contribuíram para que essa caminhada não se processasse da mesma maneira. Não é desprezível, por exemplo, o registro de a Inglaterra, até por sua condição insular, ter desenvolvido uma monarquia parlamentar, ou experimentado uma curta República, quando no continente vigorava uma monarquia absolutista.

Essa diferente evolução do Estado Inglês foi provocada basicamente por fatores endógenos, da própria organização da sociedade inglesa. Daí a Magna Carta, de 1215, que, provocada pelos barões ingleses, gerou as primeiras limitações ao exercício do poder do monarca. No mesmo diapasão, a Petition of Rights, de 1628, deferida por CARLOS I , que se compara, no dizer de BURNS , à Magna Carta, como a segunda grande carta das liberdades inglesas.

O Instrument of Government de 1653, constituição elaborada por oficiais de OLIVER CROMWELL — O Lorde Protetor —, intitulado como a primeira constituição escrita, já se disse, foi um documento autoritário e de vida breve. Já em 1660 restabelecia-se a Monarquia na Inglaterra.

O outro evento importante da história do constitucionalismo inglês só veio a se dar com a Revolução Gloriosa de 1.688/89, quando foi deposto Jaime II, o último soberano da dinastia dos Stuarts. Foram convidados a assumir o trono a filha de JAIME II, MARIA , e seu marido GUILHERME DE ORANGE. Sua assunção ao trono, contudo, ficaria condicionada à aceitação do Bill of Rights que, mais do que uma declaração de direitos, representava profunda restrição ao poder de governo do monarca, significando o triunfo do parlamento sobre o rei, pondo fim à monarquia absoluta na Inglaterra.

As bases teóricas do constitucionalismo francês, já assentado, têm sustentação nas obras de MONTESQUIEU e de SIEYÈS, sendo certo, porém, que a primeira constituição escrita da França decorreu de um processo revolucionário sangrento, diversamente do que aconteceu na Gloriosa Revolução inglesa, quando as forças que alçaram GUILHERME DE ORANGE  ao poder não dispararam um tiro sequer. Convém consignar que a grande contribuição do constitucionalismo francês foi a difusão da ideia da necessidade da existência da garantia dos direitos do homem para que uma sociedade possa afirmar que possui constituição. Evoluiu-se, pois, do conceito primeiro de constituição como organização dos poderes do Estado para o de constituição como limitação desses mesmos poderes, por via do reconhecimento dos direitos do cidadão em face do Estado.

Não se olvide que o movimento pelo constitucionalismo francês recebeu também direta influência da independência das colônias inglesas do novo continente, num processo de retroalimentação: é que o constitucionalismo americano, de sua vez, buscou parte de sua base teórica no pensamento de MONTESQUIEU.

Para comprovar isso, MADISON, delegado da Virginia, e quem mais contribuiu, segundo RALPH GABRIEL, para dar forma à Constituição, anota, a propósito do princípio da separação dos poderes, acolhido implicitamente pela Constituição dos Estados Unidos, que: "O oráculo que sempre se consulta e cita a esse respeito é o celebrado Montesquieu. Se não foi ele o autor deste valioso preceito da ciência política, teve ao menos o mérito de expô-lo e recomendá-lo de modo mais eficaz à atenção da humanidade."

Evidentemente que a ideia do nascente constitucionalismo norte-americano, fincado no princípio da separação de poderes visava a instalar neste lado do Atlântico um governo democrático. Não nos esqueçamos, porém, que se tratava de uma democracia possível para os padrões culturais da época e que, hoje, muito provavelmente, não atenderia às exigências democráticas: (i) a uma, porque intentava construir uma nova aristocracia em substituição à ancestral inglesa; (ii) a duas porque, na origem dessa possibilidade, estava um regime que preservava o sistema de escravidão negra, coisas absolutamente incompatíveis com a ideia de isonomia substancial que orna o atual conceito democrático.

Anote-se, em outra vertente, que, enquanto os constituintes norte-americanos, com receio da monarquia absolutista, cunharam o presidencialismo, sobretudo como forma de responsabilizar o gestor da coisa pública, os constituintes franceses de 1791 optaram pela monarquia constitucional, que, afinal, foi abolida pela Convenção, em 1793.

Após esses eventos, já se tem como determinada a formação da concepção do Estado Constitucional. Isso não quer dizer que esse evolver tenha concluído seu ciclo. Ao contrário, esse caminhar é constante e se faz mediante ondas. Tem-se, por exemplo, o surto constitucional do entre guerras (Constituição da Alemanha e Constituição da Áustria) e o surto do pós-guerra (Alemanha, Itália, Japão). Nada, porém, é tão inusitado que permita contraditar a tese de que o Estado Moderno ganhou contornos definitivos a partir do século XVIII, com o primeiro ciclo de constituições escritas.

Sem embargo disso, e não fosse outro o objeto do nosso estudo, seriam cabíveis, aqui, alguns aprofundamentos sobre as diversas leituras que têm sido feitas sobre o conceito de Estado, até o atingimento do conceito de Estado Democrático de Direito, cuja compreensão será necessária para o perfeito entendimento do controle de constitucionalidade brasileiro. De qualquer sorte, impende ter em conta que, se a ideia originária de Estado de Direito não admite simplificações excessivas, outro tanto deve ser dito em relação a Estado Democrático de Direito.

A expressão “Estado de Direito” (Rechtsstaat), elucida ANNE-LAURE VALEMBOIS , foi criada por JOAHNAN WILHELM PLACIDUS, em 1798 e a teoria que lhe corresponde se desenvolveu no âmbito das preocupações filosóficas e políticas relativas à limitação do arbítrio dos governantes, por obra, sobretudo, dos juristas e filósofos alemães.

Não basta dizer que o Estado de Direito indica um estado submetido ao direito, como afirma criticamente ANNE-LAURE VALEMBOIS , até porque isso implica uma espécie de tautologia. Segundo SYLVIA CALMES, uma das propostas de definição mais interessantes seria devida a K. STERN, nestes termos: “O Estado de Direito significa o exercício do poder estatal sobre a de leis promulgadas constitucionalmente, com o fim de garantir a liberdade, a Justiça e a segurança jurídica. ” O próprio K. STERN, na reedição de sua obra (Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Band I, Grundbegriffe und Grundlagen des Staatsrechts, Strukturprinzipien der Verfassung,1984), houve por bem alterar os termos da definição: “O Estado de direito significa que o exercício do poder estatal não é admissível (zulässig) senão sobre a base da constituição e das leis promulgadas constitucionalmente quanto ao aspecto formal e material, com o fim de garantir a dignidade do Homem, a liberdade, a justiça e a segurança jurídica.”

Poder-se-ia asseverar, sem muitos questionamentos, que essa concepção, sobretudo na sua primeira versão, contemplaria um calendário liberal, uma concepção liberal de Estado. Aliás, as primeiras aproximações entre constituição e Estado foram arranjos do liberalismo. Somente num segundo momento, com o advento da ideia do Eestado-de-bem-estar, já no ciclo constitucional pós-segunda guerra mundial, é atingido o estado social, de promessas muitas vezes irrealizadas, até que, em momentos mais próximos, passou-se a buscar o estado democrático de direito.

Essa expressão foi e é objeto de dissenso acadêmico, havendo quem prefira a fórmula portuguesa: Estado de Direito Democrático. Pensamos que não há razões fecundas a justificar a desavença. Deveras, qualquer que seja a ordem dos vocábulos, o que se pretende figurar é que, para esse tipo de Estado, não basta a instituição estar vinculada a um regime de legalidade, mas sim que esse regime seja fruto de processos democráticos constitucionalmente previstos, no nosso caso, fruto da chamada democracia representativa.

O Estado democrático de direito culminaria com a densificação constitucional dos direitos fundamentais: civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Não basta, entretanto, proclamar esses direitos, como fruto da vontade política. É necessário, como adverte JORGE MIRANDA, estabelecer um quadro institucional em que essa vontade se forme em liberdade e em que cada pessoa tenha a segurança da previsibilidade do futuro... em que o poder político pertença ao povo e seja exercido de acordo com o princípio da maioria, mas subordinado, formal e materialmente à Constituição com a consequente fiscalização jurídica dos atos de poder .

Depois eu conto o resto...

Revelia



Conceito de Revelia


Tanto o autor quanto o réu podem não comparecer perante o juízo para a prática de determinado ato processual ou até mesmo para a prática de todos os atos processuais. Supõe-se que o autor compareceu ao menos para ofertar a petição inicial, enquanto que o réu pode ter uma espécie de não-comparecimento absoluto. Na doutrina processual civil há dois termos para caracterizar o não-comparecimento das partes, contumácia e revelia, que ora têm o mesmo sentido, ora tem sentido diverso, sendo certo que no direito processual civil italiano o termo contumácia parece ter tido mais sucesso do que no direito brasileiro. Contumácia, para os fins do nosso estudo, é a ausência de autor ou réu relativamente à prática de certos atos processuais. É, portanto, gênero, que indica o não-comparecimento para a prática de ato processual tanto do réu quanto do autor.

Do ponto de vista da história do processo parece ser certo afirmar que a revelia não foi conhecida no Direito Romano no período da ordem jurídica privada (ordo iudiciorum privatorum), em que a ação somente se estabelecia com a presença de ambos, para fins de firmar-se a litiscontestatio. Com o advento do sistema da cognitio extraordinem, passou a ser possível a instauração da actio sem a presença do réu, tornado-se possível, também, daí em diante, a ocorrência da revelia do réu que não comparecesse em juízo para contestar a ação.

Revelia, de acordo com o Código de Processo Civil, consiste num dado objetivo: é a ausência de contestação. É uma espécie de não-ato de réu, relativamente à oferta de contestação daquele que foi citado para desincumbir-se do ônus de fazê-lo. Não obstante a clara dicção do art. 319 do Código de Processo Civil, uma forte parcela da doutrina assevera que revelia não é a ausência de contestação e sim a ausência de resposta. É certo que a interpretação literal é a mais pobre de todas as interpretações, mas também é certo que, como diria RUMPF, as audácias do hermeneuta não podem ir ao ponto de substituir a regra que existe por outra, que ele quer que exista. Nada autoriza a extensão da espécie contestação pelo gênero resposta, sobretudo considerando o principal efeito que a revelia tem aptidão para produzir, que é a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor. É que é na regência da contestação, e somente nela, que o CPC estabelece a obediência ao princípio da eventualidade, cabendo ao réu impugnar especificamente (art. 302) os fatos narrados na petição inicial sob pena de serem presumidos verdadeiros os fatos alegados pelo autor, o que é sistematicamente compatível com o disposto na segunda parte do art. 285 do mesmo código.

Revelia, portanto, para fins de nosso estudo, será sempre considerada como sendo a ausência objetiva de contestação. Sem embargo disso, que deflui da leitura dos arts. 319 e 320 do Código , há de ser considerada, no mesmo Código, a redação dos artigos 13 e 265 do CPC, §2º . Nesses fragmentos, revelia aparentemente, pelo menos, surge com sentido diverso, sem significar falta objetiva da contestação, mas sim ausência do réu, num dos sentidos que se atribuem à expressão contumácia.

No que concerne às hipóteses previstas no art. 13, a compreensão a respeito da revelia supõe a compreensão dos vícios processuais que incidem sobre os sujeitos do processo e que normalmente são examinados no estudo das nulidades processuais. Em rápidas palavras, é possível que, em certos momentos em que os sujeitos do processo afastam-se de normas que traçam o figurino legal para a prática de determinados atos processuais. Nessas circunstâncias e de acordo com a natureza da norma processual violada, pode o juiz declarar a nulidade do ato processual praticado e de eventuais atos posteriores que com ele tivessem relação de dependência. Outra é a situação quando o vício não atinge o ato processual e sim os sujeitos da relação processual, em si considerada (autor, juiz, réu). Nessa circunstância, a regra é a de que o vício em relação ao sujeito contamina os atos que ele pratica. Daí que, se o réu contestou a ação, mas sobre si recaía o vício da incapacidade processual ou da irregularidade de representação, é como se a contestação não houvesse sido apresentada (nulamente apresentada). Esse o motivo para que se o declare revel, desde que, é claro, tenha sido assinalado razoável prazo para sanação do defeito e ainda assim o réu haja permanecido inerte.

Na hipótese do art. 265 do CPC, que cuida da suspensão do processo, diz o § 2º que se o réu não constituir novo mandatário (no caso de morte do anterior) no prazo que lhe for assinalado pelo juiz, o processo prosseguirá á sua revelia. Aqui, claramente, a hipótese cuida de uma revelia não objetiva e sim subjetiva, máxime porque, no mais das vezes, a contestação já terá sido apresentada (e, possivelmente, de maneira válida, sob o patrocínio de advogado que posteriormente veio a falecer).


A Revelia e seus efeitos


Não se pode confundir revelia com efeitos da revelia. Se não for apresentada contestação (revelia) são presumidos verdadeiros os fatos alegados pelo autor (efeitos da revelia). No artigo 320, são dispostos os casos em que não ocorrem esses efeitos (isto é, não seriam presumidos verdadeiros os fatos constantes da inicial). A primeira dessas hipóteses decorre a existência de litisconsórcio passivo. Sabe-se que os litisconsortes são independentes em relação à parte contrária, e os atos de um não prejudicam nem beneficiam os demais. Entretanto, se a contestação de um hostilizar algo comum aos litisconsortes, ou se se tratar de litisconsórcio unitário, a ausência de contestação dos outros não induz a ocorrência dos efeitos da revelia. Aliter, se a contestação se referir a aspectos particulares da defesa do litisconsorte e que não aproveitem ao conjunto de situações retratadas na demanda. Aí os efeitos da revelia far-se-ão sentir sobre aqueles que não contestaram.

Também não ocorrem os efeitos da revelia se o litígio versar sobre direitos indisponíveis, assim considerados, por exemplo, os direitos do Estado e, também, os direitos inerentes à personalidade que se caracterizam justamente por sua intransmissibilidade e irrenunciabilidade. Se a ação versar sobre essas espécies de direito, pode o réu ser revel, mão não ocorrerão os efeitos da revelia.

Outra hipótese que obsta a ocorrência dos efeitos da revelia se dá quando o autor não junta à inicial o documento público indispensável à prova do ato (documento ad solemnitatem). A rigor, se documento dessa natureza não estiver acostado à exordial para embasar o pedido do autor, a hipótese é de indeferimento da petição inicial.

Questão interessante relativa à revelia acontece na hipótese de o réu ser revel, mas oferecer reconvenção. Discute-se nessa hipótese, se ocorrem ou não os efeitos da revelia em relação aos fatos alegados pelo autor, na petição inicial. Entendemos que a matéria comporta certa explicitação. A reconvenção supõe conexão (i) pelo pedido, (ii) pela causa de pedir; (iii) com os fundamentos da defesa. Ora, no que concerne à hipótese descrita em (ii), i.e., conexão pela causa de pedir, os fatos narrados a esse título na reconvenção podem estar em confronto com a inicial do autor- reconvindo. Se esse o caso, não haverá possibilidade lógica de ocorrerem os efeitos da revelia, porque a instrução probatória é una e porque, na forma do art. 318 do CPC, ação e reconvenção são julgadas pela mesma sentença.

Outro tanto não deve ser dito se tratar de reconvenção conexa pelo pedido ou com os fundamentos da defesa. Nessas circunstâncias, são diversas as causae petendi, nada aproveitando, pois, ao réu o fato de haver oferecido reconvenção. Ocorrerão os efeitos da revelia com relação ao quanto alegado pelo autor na petição inicial.

Semelhante questão se coloca quando o réu oferece reconvenção (réu-reconvinte) e o autor (autor-reconvindo) não contesta, apesar de instado a fazê-lo. Ocorrem os efeitos da revelia. Em princípio sim, sobretudo com relação às hipóteses em que a reconvenção houver sido aviada com fundamento em (i) e (iii). Quando, entretanto, a reconvenção houver sido proposta com base na conexão pela causa de pedir, pelas mesmas razões antes apresentadas, o juiz não deverá considerar presentes os efeitos da revelia. A convicção do magistrado no processo, a respeito da dinâmica dos fatos, há de ser sempre só uma.

O réu pode intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que o processo se encontra. Se, embora revel, não ocorrem por alguma razão, os efeitos da revelia, faz-se necessário que o autor especifique as provas que pretende produzir em audiência (já se disse que a indicação de provas se faz na inicial e na contestação). Há muitas circunstâncias em que o revel participa das provas requeridas e produzidas pelo autor e pode contraprovar, isto é opor-se, até com testemunhas, à prova do fato constitutivo do direito do autor, além de participar da prova determinada de ofício pelo magistrado, por exemplo, uma perícia, podendo indicar assistente técnico e formular os quesitos a que se reportam os artigos 421, 425 e 435 do Código de Processo Civil .

É bom lembrar, por derradeiro, que os efeitos da revelia são vários (por exemplo, o previsto no artigo 322 que reza que se o réu for revel e não tiver patrono constituído, os prazos correrão contra ele independentemente de intimação, a partir da publicação de cada ato decisório), embora a presunção de veracidade seja o efeito o principal.