Jorge Amaury Maia Nunes
Em
uma coluna sobre processo e procedimento, que já com mais de dois anos desde a
primeira publicação, parece um imperdoável equívoco não ter sido lançado, até
agora, nenhum artigo que procurasse discutir sobre as teorias que tentam
explicar o processo,e buscar sua natureza jurídica. Vamos tentar resgatar o
débito, a partir desta data.
Processo é o veículo posto à
disposição dos cidadãos para levar sua ação ao Poder Judiciário, visando a
obter deste uma resposta sobre determinada pretensão (sentido lato) exercida.
Processo é instrumento de provocação da jurisdição, que, na maioria dos casos,
serve à realização do direito material, seja por meio de sua reparação, seja
por meio de sua preservação, seja por meio de seu acertamento.
Uma das grandes preocupações da
ciência processual moderna sempre foi, desde Oskar
Von Bülow,[1] encontrar a
natureza jurídica do processo. Isso se explica pelo fato de que, até com vistas
à formulação de um conceito adequado de processo, é necessário que o
doutrinador tenha prévia compreensão da seara em que se situa o instituto e
como ele se situa.
Os primeiros estudos a esse
respeito e que se centravam numa vertente histórica, buscando compreender o
processo civil romano para daí extrair um conceito que fosse fiel às suas
origens, intentavam compreender o processo como sendo um contrato ou como um
quase-contrato, tendo como premissa que, no processo (como já visto alhures),
firma-se a litiscontestatio por meio
da qual as partes se comprometiam a aceitar a sentença que viesse a ser
proferida pelo juiz privado.
É certo, primeiro, que a litiscontestatio não constituía um
contrato nem um quase-contrato dado que às partes não era dado furtar-se a
firmá-la. Eram compelidas a fazê-lo em obediência ao poder que detinha o
magistrado perante o qual se encontravam.
Frustrada essa tentativa,
buscou-se considerar o processo como uma instituição, como uma situação
jurídica, como uma relação jurídica (Bülow),
como uma entidade jurídica complexa e, mais recentemente, como o procedimento
em contraditório (Fazzalari).
Algumas dessas tentativas são
francamente frustradas, como, por exemplo, tentar definir o processo como
instituição, quando por outro motivo não seja, pelo fato de que o termo instituição
é essencialmente plurívoco (há mesmo quem haja encontrado mais de 50 diferentes
acepções do que seja instituição, sem contar o institucionalismo de Maurice Hauriou e de Santi-Romano). Assim, dizer que o processo é uma instituição
é dizer muito pouco em termos de busca pela identificação de sua natureza
jurídica.
Com o trabalho de Oskar Bülow, procurou-se identificar o
processo como uma relação jurídica de natureza pública (cuja definição mais
singela é: um vínculo intersubjetivo qualificado pelo Direito), com seus
pressupostos próprios, distintos dos que ornam a relação jurídica de direito
material que lhe serve de conteúdo. Essa vertente, que ganhou foros de certeza
científica, possui alguns desdobramentos que devem ser acentuados, dado que diferentes
visões sobre o processo o admitem como uma relação jurídica: (i) o processo é
uma relação jurídica linear, que se desenvolve entre autor e réu; (ii) o
processo é uma relação jurídica angular, que se desenvolve entre autor-juiz e
juiz-réu; (iii) o processo é uma relação jurídica triangular, que se desenvolve
entre autor-juiz, juiz-réu, autor-réu.
A teoria do processo como
situação jurídica, devida ao gênio de James
Goldschmidt, nega que o processo seja uma relação jurídica. Diz ele que
o processo, diferentemente do direito material, pode ser comparado a uma
situação de guerra, onde predomina um estado de incerteza, de insegurança,
quanto aos direitos e obrigações daqueles que se encontram em conflito, até
porque ninguém poderá prever o conteúdo da sentença. O processo seria assim
caracterizado por um sistema[2] de
possibilidades e de ônus. Sem necessidade de avançar na crítica, apesar de
registros elogiosos sobre o fato de que a categoria ônus processual muito deve à teoria de Goldschmidt, é inegável que esse doutrinador confunde o
direito material com o direito processual. Deveras, a incerteza que se
estabelece é sobre o objeto do processo, sobre o direito material que está em
discussão, e não sobre o processo propriamente dito.
A teoria do processo como uma
entidade jurídica complexa talvez encontre melhor explicitação na dicção de Giovanni Conso[3], para quem o
processo se materializa através de um procedimento, cuja estrutura revela o
encadeamento de atos, cada qual deles guardando sua particular conceituação e
função, todos, entretanto, vinculados por um nexo de antecedente e consequente,
que os articula finalisticamente, tendo-se em vista o resultado final típico
perseguido – a prestação jurisdicional. Uma fattispecie
complexa de formação sucessiva, do tipo procedimento.
Elio
Fazzalari procurou dar nova feição aos estudos sobre a natureza jurídica
do processo, caracterizando-o como o procedimento em contraditório e afastando
as premissas até então fixadas. Parece, entretanto, que os estudos que realizou
não o conduziram ao pretendido afastamento, na medida em que se valeu de
conceitos (faculdade, poder, direito subjetivo) que o aproximam invariavelmente
do conceito de relação jurídica. Com efeito, direito subjetivo é posição de vantagem
em face de outrem com quem se está em relação jurídica. Esses conceitos são
indissociáveis.
Demais disso, o acrescentamento
do contraditório como sua marca
identificadora do processo levaria a conclusões inaceitáveis, como, por
exemplo, somente haveria processo em situações contenciosas, descartada,
portanto, e indevidamente, a generalidade das hipóteses de jurisdição
voluntária, os processos de inventário e partilha em que houvesse interesses de
menores e incapazes, os processos necessários em que não houvesse controvérsia,
etc.
Temos, para nós, que o processo
judicial – tomando emprestados alguns elementos de Giovani Conso, já antes referido – pode ser caracterizado
não como uma relação jurídica, mas como um conjunto de relações jurídicas que
se ajustam e se concretizam por meio do procedimento (não necessariamente em
contraditório), cuja estrutura revela o encadeamento de atos, cada qual deles
guardando sua particular conceituação e função, todos, entretanto, vinculados
por um nexo de antecedente e consequente, que os articula por meio de uma
unidade de escopo que a prestação da atividade jurisdicional.
Convém ir adiante. Embora não
nos alinhemos entre os fanáticos pelas doutrinas neoconstitucionalistas,
pós-positivistas e quejandas, é induvidoso que a matriz do processo civil
brasileiro, do devido processo legal, possui estatura constitucional, o que nos
impõe o dever de examinar os princípios constitucionais e infraconstitucionais que
mais de perto nos dizem respeito e que regram a atividade do legislador e do
aplicador das regras processuais, tais assim, o princípio do devido processo
legal, aí compreendido o princípio do juiz natural, o direito ao contraditório
efetivo e à ampla defesa, o princípio da fundamentação das decisões judiciais,
do duplo grau de jurisdição, da proibição da utilização da prova ilícita. Não é
possível, neste espaço, e de uma só vez, examinar todos esses princípios com a
necessária verticalidade. Faremos algumas escolhas e, em outro momento,
completaremos a investigação.
É certo que o Código de processo de 2015
trouxe, logo no seu pórtico (Livro I, Título Único, Capítulo I, das Normas
Fundamentais do Processo Civil), um conjunto de preceitos de natureza
principiológica, alguns de estatura constitucional, outros de natureza
infraconstitucional, que servem para iluminar a compreensão de todo o processo
civil brasileiro. Claro que se imbricam, aqui,
princípios que são pertinentes ao processo com aqueles que dizem mais de perto
com a jurisdição, até porque se trata de dois institutos xifópagos, que se
superpõem como se fossem as escamas de um peixe.
Logo
no art. 2º. O legislador processual reafirmou o princípio da inércia da
jurisdição, consagração do velho prolóquio ne
procedat iudex ex officio, princípio esse que impõe um movimento inicial de
parte daquele que pretende a prestação jurisdicional, exatamente por isso
denominado movimento heterodinâmico (id
est, efetuado por quem não é parte do poder judiciário, capaz de pô-lo em
ação). Esse
princípio quer significar que a jurisdição somente se movimenta (impulso
inicial) se houver provocação das partes e vem consagrada na máxima do nemo
judex sine actore. É preciso que haja o aviamento de uma ação para que o
juiz preste a jurisdição.
Merece
nota, nesse passo, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que, no caso
brasileiro, decorre de expressa dicção constitucional, encartada no art. 5o,
XXXV, da Carta Política, que soa, in
verbis: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito”. O código de 2015 reproduziu esse comando, quase que ipsis verbis, no seu Livro inicial,
Capítulo I, art. 3º, com pequena alteração: “Não se excluirá da apreciação
jurisdicional ameaça ou lesão a direito.” Desnecessário dizer, para nós, que o
princípio da inafastabilidade tem como destinatário o legislador. Sem embargo
disso, em alguns manuais de Teoria Geral do Processo, esse princípio vem
confundido com outro princípio, o da indeclinabilidade, que tem como destinatário o
magistrado, impedindo que ele se furte ao dever de julgar (o que era possível
no Direito Romano do período das ações da lei e período formulário, em que o
juiz, por ser um cidadão comum, um particular, poderia pronunciar o famoso non liquet e recusar-se a proferir
sentença). Mesmo que entenda haver lacunas no ordenamento jurídico, o
magistrado deve julgar, valendo-se de formas de integração/interpretação, como
os costumes, aplicação de princípios gerais e a analogia.
Também
merece referência o princípio do Juiz natural, que tem pertinência com o fato
de que todo e qualquer cidadão tem direito a um juízo imparcial, que seja
pré-existente à controvérsia a ser examinada. Dizendo de outra forma, não se
pode criar um juiz ou tribunal para julgar determinada causa. O tribunal deve
pré-existir ao caso a ser julgado. Proíbe-se, assim, a criação de tribunais ex post facto, que são os chamados
tribunais de exceção ou juízos de exceção de que, vez por outra, a História da
notícia.
A
Constituição da República, copiando o que já era regra no pacto de San José da
Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, dispôs sobre a necessidade de que a
atividade jurisdicional seja prestada em prazo razoável, respeitando, assim, a
velha advertência de Rui Barbosa,
Lançada na Oração aos Moços, no sentido de que justiça tardia não é justiça,
senão que injustiça qualificada e manifesta. A disposição constitucional,
erigida à condição de direito fundamental lançado no catálogo do art. 5º, foi
trazida para o seio do código 2015, já no art. 4º, com esta dicção: As partes
têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral de mérito, incluída
a atividade satisfativa.
É claro que a simples inserção
desse comando, seja na Constituição, seja no Código de Processo Civil, não terá
o condão de eliminar todos os padecimentos da cidadania em relação ao tempo
médio de entrega da prestação jurisdicional que é bastante grande. As causas
dessa ineficiência são de natureza vária e não podem, nem devem ser levadas à
conta exclusivamente do Poder Judiciário que, se tem sua parcela de culpa, não
é o grande vilão da história.
Outro aspecto a ser considerado
em qualquer estudo teórico sobre o processo é, como apontado nos manuais da
disciplina, a categoria pressupostos
processuais, que é devida aos estudos de Oskar
Von Bülow, o qual, justamente para extremar a ideia de processo da ideia
de relação jurídica de direito material, buscou encontrar os elementos que lhe
fossem próprios. Vale aqui a ressalva doutrinária no sentido de que, ao estudar
os pressupostos processuais tendo como base o ordenamento jurídico brasileiro,
é necessário ter certas cautelas dadas as escolhas “científicas” prevalecentes
em nosso País. A rigor, para os estudiosos que trabalham com a teoria dos três
planos (da existência, da validade e da eficácia), pressupostos seriam somente
os pertinentes ao plano da existência, seguindo a esteira do pensamento de
Pontes de Miranda. Para o plano da validade, cuidar-se-ia de requisitos (ou de
elementos, como, na doutrina portuguesa, preconiza Marcelo Rebelo de Souza no seu primoroso O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional).
No direito processual brasileiro,
entretanto, pressupostos e requisitos estão encambulhados. Nada obsta,
entretanto, que, em sede doutrinária, a distinção seja feita, ainda que em
efetiva correspondência com o que está contido na legislação de regência.
A doutrina costuma dividir os
pressupostos em (i) pressupostos subjetivos; (ii) objetivos; (iii)
litisingresso impedientes.
Os primeiros pressupostos
processuais subjetivos podem ser relativos (i) ao juiz (dotado de jurisdição,
que é um pressuposto de existência), que tem de ser competente, não impedido e
não suspeito (que são pressupostos de validade) e (ii) às partes que têm de ter capacidade de ser parte, pressuposto
de existência), capacidade de estar em juízo e capacidade postulatória (que são
pressupostos de validade)[4].
Os pressupostos objetivos
indicados pela doutrina são a existência de uma demanda ou de um pedido
(requisito de existência). Indica-se, também, a existência de citação, como pressuposto
de existência e que ela seja válida, como requisito de validade do processo. Nunca
acreditamos nem numa coisa nem em outra (com muito mais razão, agora, com a
regência do novo Código). Citação não é pressuposto processual, haja vista que
pode existir processo, com sentença de mérito transitada em julgado, sem que o
réu, beneficiário da coisa julgada, jamais tenha sido citado para integrar a
relação processual.
Com relação aos pressupostos litisingresso
impedientes (expressão difundida pelo professor Celso
Neves da Universidade de São Paulo), são aquelas situações externas ao
processo que não podem existir a fim de que o processo possa desenvolver-se
validamente. E se existirem, o destino do processo será a morte prematura.
São a perempção, a litispendência,
a coisa julgada e a convenção de arbitragem, que vêm apontadas no art. 337 do
novo Código de Processo Civil e que, se presentes, devem ser alegadas mesmo
antes de iniciada a discussão sobre o mérito da causa.
Essa parte, pertinente aos pressupostos,
que foi aqui apenas enunciada, será desenvolvida no próximo texto.
Até lá!
[1] Cf. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales.
Buenos Aires: Europa-America, 1964.
[2]
Derecho Procesal Civl, Trad. Leonardo Prieto Castro. Barcelona: 1956, p. 8.
[3]
I.fatti giuridici processuali penali, Milão,Giurffrè,1955, p. 115
e ss.
[4]
Teresa Wambier sustenta que capacidade postulatória é pressuposto de existência
do processo.