segunda-feira, 25 de março de 2019

A chamada tutela provisória no CPC de 2015 e a perplexidade doutrinária que provoca


Jorge Amaury Maia Nunes
Muito já se comentou sobre o Livro V, da Parte Geral do novo CPC, que cuida da Tutela Provisória (de urgência e de evidência), para indicar que, nele, pulularam inovações — em especial a estabilização da decisão do art. 304 —, não sendo ainda possível saber se as soluções preconizadas foram as melhores.
Convém, neste artigo, tentar verticalizar um pouco mais o exame do tema, ainda que com o risco de, mais tarde, rever o que estamos a escrever neste momento. Pecado maior do que o erro é a omissão deliberada. Vamos começar, então, com o que nos parece menos problemático e, após, avançaremos para a chamada vexata quaestio da estabilização da decisão e das possibilidades de objetá-la. Não será preocupação do presente exame a questão relativa à tutela de evidência (ou, como pretende o legislador processual, tutela “da” evidência), que ficará para outra oportunidade.
No novo CPC, pretendeu-se dar um tratamento único às tutelas de urgência, antecipatória e cautelar, como se ambas fossem provisórias. Afinal, este é o título do Livro V: Da Tutela Provisória, embora somente a tutela antecipada possua caráter autenticamente provisório. A tutela cautelar, no estrito sentido do termo, é temporária e não provisória, porquanto não será substituída por uma decisão definitiva sobre o mesmo mérito. É que o mérito da cautelar é específico (cabe no binômio periculum damnum irreparabile e fumus boni juris) e não se confunde com o mérito da ação a que se apelida de principal.
Provisória é a tutela antecipada que dá, agora, o bem da vida vindicado. E é provisória porque está em oposição à tutela definitiva, que é a fixada em sentença proferida após a realização de atividade cognitiva exauriente. É bem de ver que, sob os auspícios da reforma de fins de 1994, o legislador processual tratou de estender a chamada antecipação de tutela ao procedimento comum, sendo lugar comum na doutrina a afirmação no sentido de que, presentes os pressupostos autorizadores do art. 273, o juiz anteciparia os efeitos práticos da decisão que poderia vir a ser deferida. Em outras palavras, propiciaria a entrega o bem da vida no mundo físico, nada obstante, no mundo da criação da norma jurídica individual (sentença), a matéria ainda permanecesse em estado de pendência, à espera da realização da cognição exauriente.
Da simples regência da matéria no novo Código, e apesar do discurso ensaiado pelo legislador, percebe-se, primo ictu oculi, que essas duas tutelas continuam a ser diversas, ainda que se tenha tentado uniformizar os pressupostos para seu deferimento. O discurso é negado pela própria evidência normativa. Deveras, basta ter em conta que o legislador sentiu-se obrigado a abrir no Título II, do Livro V, três capítulos: o primeiro para disposições gerais; o segundo para cuidar da tutela antecipada requerida em caráter antecedente; e o terceiro para cuidar da tutela cautelar requerida em caráter antecedente, de cuja leitura percebe-se, claramente, a diferença do tratamento dispensado a um e outro tipo de tutela.
Ao que parece, o legislador pretendeu afastar-se do discrímen histórico — conforme antiga lição de Ovídio Araujo Baptista da Silva, no seu Do Processo Cautelar, 3ª. edição, Rio de Janeiro: Forense, 2001, pp. 13/14 — que havia, desde o direito medieval, entre os conceitos de periculum damnum irreparabile e periculum in mora, este último relativo a certas causas que, dada a sua simplicidade, relevância, ou urgência da matéria a ser examinada, a prudência e a lógica recomendavam que fossem tratadas por um procedimento sumário. O primeiro, perigo de dano irreparável, relativo a qualquer causa em que se impusesse uma resposta jurisdicional expedita, em decorrência da irrupção de um elemento de risco de dano iminente. Afirma Ovídio, ainda com arrimo na doutrina italiana, que o primeiro conceito responde ao risco da tardividade, enquanto que o segundo responde ao risco da infrutuosidade.
Em favor da separação conceitual, cabe lembrar, também, do clameur de haro (invocação a ROLLON, primeiro duque da Normandia), no direito francês, que tem vinculação com o periculum damnum irreparabile, mas não com o periculum in mora, como parece defluir da lição de GARSONNET (Traité Theorique et Pratique de Procédure, deuxième édition, tome huitième, Paris: Librairie de la Société du Recueil Géneral des lois et des arrêts, 1904, p. 284). Essas duas referências históricas, do direito francês e do direito italiano medieval, dão luzes bastante fortes da distinção que existe ou deve existir entre a tutela cautelar e a tutela da tardividade.
Como parece esmaecida a distinção entre os dois institutos, temos de lidar com o Código de 2015, com as cautelas devidas, e não esquecidos de que razões históricas iluminam a existência desses dois tipos de tutela.
Na regência do Código de 1973, a tutela cautelar pode ser instaurada antes ou no curso do processo principal, enquanto que a chamada antecipação de tutela pressupõe que já tenha sido aviado o processo principal, na medida em que esta, antecipação, é ato judicial do processo, externado por meio de uma decisão interlocutória que entrega ao autor, desde logo, os efeitos práticos obteníveis em uma eventual sentença de procedência, desde que o juiz entenda presentes os requisitos previstos no art. 273 (prova inequívoca, rectius, prova convincente, e verossimilhança da alegação,rectius, alto grau de probabilidade de a demanda ser resolvida em favor do autor).
No Código de 2015, dada a pretendida uniformização de regência, é possível, antes do aviamento da ação principal, tanto a formulação de requerimento de tutela antecipada, quanto o requerimento de tutela cautelar. Em outros termos, as duas modalidades de tutela podem ser requeridas em caráter antecedente.
Como a tutela cautelar antecedente ou preparatória já tem uma larga identificação nos fastos do Direito, os questionamentos sobre a sua adoção, também pelo novo código, não serão certamente de monta, nem parece que haverá alguma resistência de parte dos cultores do direito. O mesmo não se diga, entretanto, em relação à tutela antecipada requerida em caráter antecedente. De fato, o aspecto novidadeiro do procedimento engendrado trará muitas dúvidas e hesitações quanto ao alcance e à dimensão do novel instituto. Convém explicitar a regência do procedimento e os questionamentos que se oferecem à meditação.
Diz o artigo 303 do CPC de 2015 que, quando a urgência for contemporânea ao momento em que a ação pode ser proposta, o autor pode formular petição inicial em que conste somente o requerimento da tutela antecipada (desde que seja indicado qual pedido de tutela final será formulado em momento posterior), com a indicação da lide, do direito que se busca realizar, do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo (em certo sentido, trata-se de uma cópia parcial do art. 801 do CPC de 1973, que cuida da petição inicial do processo cautelar, aqui adaptado para o pedido de antecipação de tutela) e do valor da causa, que deverá considerar o pedido de tutela final. Há a possibilidade de emenda da inicial, no prazo de cinco dias, se o magistrado entender que não há nos autos, ainda, elementos suficientes para a concessão da tutela antecipada.
O legislador cuidou, aqui, de emenda da petição inicial. Hipótese diversa é a de aditamento. Com efeito, na petição de requerimento de tutela antecipada de que trata o art. 303, o autor deverá indicar, claramente, que pretende valer-se da regência do caput do artigo e que aditará a inicial, se concedida a antecipação, no prazo de quinze dias ou em outro maior que venha a ser concedido pelo magistrado. No aditamento, poderá complementar a argumentação, juntar novos documentos e confirmar o pedido de tutela final.
Se entender presentes os requisitos exigidos (probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo), o magistrado concederá a tutela antecipada, caso em que (i) o autor deverá aditar a inicial, como mencionado acima e, se não o fizer, o processo será extinto sem resolução de mérito; (ii) o réu será citado e intimado para a audiência de conciliação ou mediação de que trata o art. 334 do novo CPC. Se não chegarem a bom termo na audiência ou se esta não se realizar por desinteresse de ambas as partes, ou porque a natureza do direito em discussão não permite autocomposição, abrir-se-á o prazo para contestação.
Questão delicada é a que sugere a regência do art. 304, seguinte. De fato, esse fragmento da lei processual trata da “estabilização” da decisão que concede a antecipação de tutela, na hipótese de não-interposição do recurso de agravo de instrumento, caso em que, diz o § 1º, o processo será extinto. Daí decorre que haverá uma tutela não exatamente provisória, mas que também não é definitiva. O tratamento dispensado à matéria pelo legislador é algo exótico: pela letra da lei, se o réu não opuser recurso de agravo de instrumento, ainda que haja ofertado contestação, a decisão será estável. Então, qual o sentido de continuar com o processo de cognição exauriente? Nenhum.
Anote-se, a esse respeito, que o legislador, com certo receio da novidade que instituiu, não afirmou ser uma hipótese de extinção do processo com resolução de mérito, ou sem resolução de mérito. Preferiu ficar em perigoso silêncio. Ocorre que essa abulia legiferante, em vez de evitar ou apaziguar problemas teórico-práticos, teve o condão de suscitar uma miríade de intrincadas questões de difícil solução, tais como as debuxadas acima.
Uma primeira análise sugere, de logo, que ofende a lógica e o bom-senso, a regra que impõe seja o processo extinto, apenas pela falta de recurso, porque isso leva à inaceitável conclusão de que, num mesmo processo, a cognição precária deve prevalecer em relação à cognição verticalizada, exauriente, própria dos juízos ordinários. Ora, é da natureza dessas decisões proferidas em juízos meramente de probabilidade, a sua reversibilidade. Não por outro motivo, o art. 294 do novo CPC dispõe que a tutela provisória pode ser revogada ou modificada a qualquer tempo e sua execução segue as normas do cumprimento provisório da sentença (art. 297, parágrafo único).
Além disso, o texto da lei e a sua hesitação põem em evidência vários outros graves percalços que deverão ser sentidos quando da aplicação do procedimento em exame. O primeiro deles concerne ao fato de que não há, na doutrina do processo civil brasileiro, um conceito pronto do que seja tutela antecipada estável ou estabilizada. Parece ser algo mais constante do que a simples antecipação de tutela, precária, provisória, mas menos seguro do que a coisa julgada material. Tanto é assim que o próprio § 2º do art. 304 prevê a possibilidade de que qualquer das partes venha demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada.
Demandar no mesmo ou em outro processo, como parece sugerir MARINONI (Marinoni, Luiz Guilherme, et. al. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 317), numa espécie de simples prosseguimento da ação antecedente, ou em ação completamente autônoma, mas perante o mesmo juiz, como deflui da literalidade dos §§ 2º e 4º do art. 304? E se a parte não demandar no prazo decadencial de dois anos, qual a consequência? O que fazer em relação a essa decisão estável? Reconhecer o seu trânsito em julgado e admitir, a partir daí, a fluência do prazo para propositura de eventual ação rescisória, ou, de outro lado, permitir que aquele contra o qual foi produzida a tutela provisória possa discutir, em qualquer outro processo que não o de que trata o próprio art. 304, mas no mesmo grau de jurisdição?
Quanto a esses questionamentos, soa rigorosamente absurdo entender que um procedimento sumário (e é natural a criação de procedimentos sumários, de estrutura vária, no ordenamento jurídico) seja concebido de sorte a permitir a sua extinção, mesmo ante a oferta de contestação, pelo simples fato de não haver sido tirado recurso de uma decisão de natureza precária. Aduza-se, em favor de nosso entendimento, o fato de que a necessidade de contestar somente ocorrerá se frustrada a autocomposição e após o aditamento ofertado pelo autor (até porque, não ofertado o aditamento, o processo será extinto sem resolução de mérito, com cessação da eficácia da tutela antecipada que foi concedida), situação em que, pela lógica, terá ocorrido a ordinarização do procedimento, a sugerir a necessidade de realização de cognição exauriente.
Decorre do exposto acima que, sem embargo do texto expresso do art. 304, c/c § 1º do mesmo artigo, que dispõe sobre a extinção do processo se não houver interposição do recurso de agravo, a única possibilidade de interpretação que se conforma com o princípio do devido processo legal hospedado em nosso texto constitucional, e do respeito ao contraditório efetivo, princípio erigido em base dessa reforma processual, é aquela que privilegia o entendimento de que toda e qualquer forma de resposta do réu, em especial a contestação, é suficiente para (i) impedir a estabilização da tutela antecipada concedida e a extinção prematura do processo; e (ii) provocar o exercício da cognição exauriente por parte do órgão jurisdicional competente.
No concernente ao segundo questionamento, i.e, se houver efetiva extinção do processo porque ausentes recurso e respostas possíveis, sem que tenha ocorrido, também, no prazo decadencial de dois anos, a propositura da ação (§ 2º do art. 304, c/c § 5º do mesmo artigo) para rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada, o que acontecerá?
O legislador parece encaminhar o tema, de forma adrede, para inadmissão de formação da coisa julgada material (§ 6º do art. 304: a decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilização dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do § 2º deste artigo), mas com a criação de uma estabilidade da decisão que concedeu a antecipação que, após a fluência do prazo de dois anos, não encontraria meios de impugnação.
A perplexidade é grande. Deveras há uma espécie de fetiche que se impõe à doutrina brasileira, no sentido de que somente têm aptidão para produzir coisa julgada as decisões proferidas em processo de cognição exauriente, razão por que negava, peremptoriamente, que sentença proferida em processo cautelar (em que a cognição é sumária) fizesse coisa julgada material. Cabe registrar que esse entendimento encontrou bem sucedida oposição, sendo mesmo de crer serem em maioria os doutrinadores que acolhem a coisa julgada material nessa hipótese. Resenha feita, há mais de dez anos, por GELSON AMARO DE SOUZA, indicava o crescente número de doutrinadores que aderiam explícita ou implicitamente a esse entendimento (SOUZA, Gelson Amaro de. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002) e outros que, mesmo sem admitir explicitamente a formação da coisa julgada material, pregavam o cabimento da ação rescisória de sentença proferida em processo cautelar.
Admitindo, como admitimos, que a coisa julgada material se opera sobre o teor declaratório da decisão, parece-nos viável a formação de coisa julgada nos processos sumários, todos eles calcados, sejam quais forem os efeitos preponderantes da decisão proferida, em parte substancialmente declaratória. Em outras palavras, não é crível admitir como correto o raciocínio no sentido de que juízos de cognição sumária dispensam o teor declaratório da decisão. Antes de dar algo, antecipar algo, ou antecipar os efeitos práticos de algo, o magistrado, obviamente, declara as razões de fato e de direito que o autorizam a tanto, declara o que constitui o suporte que lhe permite a regulação da situação controvertida que lhe foi submetida a exame. É no mínimo uma petição de princípio afirmar que processos sumários não admitem sentença com força de coisa julgada.
É certo, entretanto, que o tema da coisa julgada em processos sumários (especificamente, dos processos sumários determinados) lamentavelmente não se comporta nos espaços angustos de um artigo com dimensões limitadas pela necessidade editorial, mas isso não obsta a anotação rápida no sentido de que não há nenhuma categoria lógica que a impeça essa ocorrência, como não impede, por exemplo, a formação de coisa julgada na ação de mandado de segurança (típico procedimento sumário), ou nos embargos de terceiro senhor e possuidor. Em outro momento, ao discutir a coisa julgada no novo CPC, exploraremos esse ponto de forma mais verticalizada.
Em arremate, que não queira o legislador apelidar de coisa julgada a estabilidade dessa decisão, tudo bem, mas isso não será óbice ao cabimento de ação rescisória, quando por outro motivo não seja, em face do que dispõe o § 2º do art. 966, do novo Código, que admite a rescisória, mesmo que não se trate de sentença transitada em julgado.
Ou isso, ou haverá de ser admitido o cabimento de outra ação de procedimento ordinário que não aquela mencionada no § 2º do art. 304, porque inocorrentes os efeitos próprios da coisa julgada (positivos e negativos) e, também, em homenagem ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, cujo menoscabo não está ao alcance do legislador processual.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Para quem está começando a estudar as chamadas tutelas satisfativas


EXECUÇÃO

Primeiros apontamentos


Em Teoria Geral do Processo, quando estudamos as primeiras classificações sobre a atividade desenvolvida pelas partes e pelo juiz, percebemos, de forma bastante singela, que há situações em que a preocupação das partes é tentar demonstrar ao magistrado o direito que alegam possuir. Em contrapartida, o magistrado preocupa-se em investigar os fatos narrados na petição inicial e na contestação, para, ao fim, inteirado quanto a certeza dos fatos, atribui o bem da vida ao autor ou ao réu.
Essa atividade corresponde ao que a doutrina apelidou, justamente, de processo de conhecimento, expressão também adotada pelo direito positivo, que corresponde, no caso de procedência do pedido do autor, a sentenças de natureza declaratória, constitutiva, condenatória (a que depois Pontes de Miranda acrescentou duas novas categorias, executiva e mandamental).
Além dessa atividade de cognição que visa ao acertamento do direito das partes, há, no âmbito do processo civil, outra atividade jurisdicional, que já parte da certeza do direito (decorrente da investigação que o magistrado realizou ou da  presunção atribuída pelo ordenamento positivo a certos títulos), apelidada de atividade jurissatisfativa, e que não se limita apenas a  procurar a certeza quanto aos fatos para atribuir no campo normativo, o bem da vida a A ou a B, mas, sim, a provocar, no mundo sensível, uma alteração de situação tal que implique a efetiva atribuição do bem da vida ao vencedor da demanda.
Esse mister jurissatisfativo é exercido por meio de atividades executivas, normalmente, porém não necessariamente, dentro de um processo de execução, e tem recebido novo apelido quando decorre de uma sentença proferida no processo de conhecimento: cumprimento de sentença.
É certo que o código de processo civil pretérito tinha, no curso das alterações por que passou, desde 1994, suprimido, sempre que pôde, tanto a expressão sentença condenatória quanto execução de sentença, como se o legislador reformista estivesse tentando expurgar do ordenamento positivo seres malditos, capazes de gerar danos à sociedade, responsáveis por todas as mazelas sofridas pela prestação tardia da atividade jurisdicional. Por certo que essas expressões não possuem a força nefasta que lhes é atribuída, nem a sua supressão é capaz de eliminar ou alterar a natureza da atividade executiva, a ser realizada pelo Estado-juiz como fito de dar efetividade, no mundo dos fatos, àquilo que foi decidido no plano normativo (da norma jurídica individual apelidada de sentença). Diz-se, por isso, normalmente, que o processo de conhecimento o juiz caminha dos fatos par a norma e, no processo de execução, caminha da norma para os fatos.

A EXECUÇÃO

O étimo da palavra ajuda a compreensão do fenômeno: execução, como lecionava o velho Alcides de Mendonça Lima, corresponde pelo sentido ao verbo latino exsequi, mas provém da forma românica executare (pelo particípio exsecutus).  A raiz seq ou sec indica o sentido de seguir, conseguir, executar, execução, perseguir... (conferir, Comentários, vol. VI, tomo I, Forense, 1977, p. 20). Modernamente, e sem muita precisão técnica, podemos arrolar como executiva toda atividade processual tendente a realizar efetivamente o direito daquele que, por ato judicial ou por outro título legitimante,  tem o direito de impor a outrem que com ele esteja em relação jurídica uma conduta positiva ou negativa, por vontade própria ou por constrangimento estatal. De fato, promovida a execução, por meio da qual foi exigida da parte passiva uma obrigação de fazer, não fazer, dar e pagar (e a obrigação de pagar nada mais é do que uma especial forma de obrigação de dar), o executado pode simplesmente aquiescer a cumprir a obrigação constante no título executivo (judicial ou extrajudicial) ou pode ignorar ou, até, resistir à pretensão executiva exercida pelo suposto credor.
Na hipótese da indiferença ou resistência à pretensão exercida pelo credor, caberá ao Estado-juiz lançar mão do aparato da força legítima para realizar o direito do credor. Os meios de que pode valer-se o Estado para consecução do objetivo execucional são vários, e sua utilização dependerá do tipo da prestação obrigacional perseguida em juízo. Fala-se, em sede de doutrina, em execução própria e execução imprópria, dependendo da utilização da técnica A ou da técnica B, classificação que, a nosso ver não colabora em nada para fins da compreensão do fenômeno executivo. Fala-se, também, e às vezes no mesmo sentido,  de execução direta e indireta, para caracterizar a atividade do Estado-juiz. No primeiro caso, incidindo de forma imediata sobre o patrimônio do executado, por meio da sub-rogação do Estado em alguns dos bens do executado cujo valor seja capaz de honrar o crédito perseguido. No segundo caso, execução indireta, cogita-se de atividades do Estado que, sem incidir imediatamente sobre os bens do devedor, são capazes de infligir-lhe receios suficientes que o estimulem a cumprir a obrigação. São técnicas de coerção, de que podem ser mencionados, como exemplo, o preceito cominatório, multa cominatória, astreintes, e a prisão do devedor por alimentos.
Poder-se-ia pensar, na execução direta, em técnicas de desapossamento, como, por exemplo, nas execuções de entregar coisa (art. 538 e arts. 806 a 810), por meio da expedição de mandado de imissão na posse de bem imóvel, ou do mandado de busca e apreensão, na execução de dar coisa móvel.
Poder-se-ia pensar, também, na possibilidade da transformação, em situações tais como aquelas decorrentes da execução de obrigação de fazer infrutífera, em que há a convolação da obrigação original em obrigação de pagar, já porque a obrigação foi prestada por terceiro ou realizada pelo próprio credor, já porque foi substituída pelo pagamento em pecúnia dada a impossibilidade do adimplemento da obrigação original.
Na execução de obrigação de pagar, o Estado-juiz pode valer-se da técnica do desconto em folha, sobretudo quando se tratar de execução por prestação alimentícia. Na hipótese de sub-rogação, relativa à generalidade das execuções por quantia certa, pode ocorrer a expropriação do bem, com uma das seguintes consequências: (i) o credor exequente fica com o bem para si, ocorrendo, aí, a figura da adjudicação; (ii) o credor requer ao magistrado que seja deferida a alienação do bem pro particular; (iii) o credor requer que o bem seja levado a leilão ; (iv) o credor fica com o bem em usufruto até a completa satisfação do crédito exequendo.

Princípios que regem a execução

É claro que o Direito é um sistema de regras; não há, entretanto, que desconsiderar os princípios que ornam o ordenamento e que são capazes de elucidar o alcance e dimensão das regras e que colaboram decisivamente para a sua correta interpretação e aplicação. Vale a ressalva de que são aceitas aqui, sem maior juízo crítico, algumas normas diretamente encartadas no Código de Processo Civil, que, para parcela da doutrina talvez pudessem ser consideradas como normas-regra e não como normas-princípio.
São estes os princípios normalmente mencionados nos livros de doutrina: princípio do título, princípio da autonomia, princípio da patrimonialidade, princípio da máxima coincidência possível, princípio da menor onerosidade, princípio da disponibilidade, sendo certo que os tratadistas e manualistas não se ajustam a respeito de quais e quantos são esses princípios.

Princípio do título

É velha a lição da doutrina: nulla executio sine titulo, para significar que o título executivo é o bilhete de ingresso da execução. Sem ele, não há execução que possa prosperar. Há, em sede doutrinária, larga discussão sobre a natureza  do título executivo, ora afirmando-se trata-se de documento, ora de ato documentado. Araken de Assis bem demonstrou a insuficiência de ambas as teorias, não sendo necessário, nas dimensões deste trabalho, adunar outros argumentos além daqueles já esgrimidos pelo processualista gaúcho.
Título executivo para os fins de proporcionar o início da execução será somente aquele a que a lei atribuir essa condição. Particulares não podem criar títulos executivos além dos assim considerados pela lei federal. No nosso direito processual civil, os títulos executivos podem ser judiciais (sentenças/acórdãos e decisões interlocutórias que antecipam os efeitos da tutela), especificados no art. 515 do Código de Processo Civil e extrajudiciais, tais assim os definidos no art. 784 do Código de Processo Civil, além daqueles criados na robusta legislação extravagante a respeito do assunto.
Ao assunto voltaremos de forma pormenorizada logo após o exame dos demais princípios.

Princípio da autonomia

No auge do cientificismo do Direito Processual civil, cristalizou-se o entendimento de que o processo de execução possuía total autonomia em relação ao processo de conhecimento. As raízes desse entendimento são profundas e, provavelmente decorrem das origens romanistas do nosso direito e da histórica desconfiança dos iluministas franceses e relação aos juízes (que compravam seus cargos).
Nessa vereda, o Código de Processo Civil de 1973 na sua versão original, possuía três livros iniciais, cuidando cada um de um tipo de tutela, dotada de autonomia: o livro I para o processo de conhecimento; o livro II para o processo de execução; e o livro III para o processo cautelar, aos quais foram acrescentados o livro IV para os procedimentos especiais e o V para disposições finais e transitórias, que escaparam da taxionomia inicial.
Dentro dessa concepção, elaborada à imagem e semelhança de Liebman, o processo de execução possuía absoluta autonomia em relação ao processo de conhecimento. A execução, mesmo se consequente a um processo de conhecimento em que proferida sentença condenatória, supunha, sempre, a necessidade da instauração de uma nova relação processual (agora executiva) com o objetivo de realizar o direito conferido ao credor no processo de conhecimento. Começava-se um novo processo.  Não por outro motivo, o legislador editara, na versão original do art. 463 (Livro I do CPC), norma asseverando: ao publicar a sentença de mérito, o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional.
É verdade que os fatos não pedem licença a modelos teóricos: a parte que vai a juízo buscar indenização por danos causados ao seu patrimônio, não quer obter uma sentença condenatória, em que o devedor seja reconhecido como tal e instado a reparar o prejuízo. Essa separação não faz nenhum sentido para o autor. O que ele efetivamente almeja é obter no mundo sensível, no mundo real, uma situação que efetivamente signifique que o prejuízo foi ressarcido, apenas e tão somente isso. Não interessa a ele obter uma sentença condenatória e, após, iniciar novo processo, embora de outra natureza, até porque a experiência demonstrou que a consequência prática da eleição desse modelo autonomista era uma grossa demora na entrega do bem da vida, na conclusão da chamada atividade jurissatisfativa.
Com o advento das leis 8.952, de 1994, 10.444, de 2002, 11.232, de 2005, que instituiu um processo de conhecimento em que a última fase é o exato cumprimento (rectius, execução) da sentença, apelidado de processo sincrético, não parece fazer muito sentido falar em princípio da autonomia do processo de execução. Houve, com o advento das leis antes mencionadas, uma clara redução do âmbito de vigência material do Livro II do Código de Processo Civil de 1973, que regia, na sua versão original, toda a execução por crédito (fosse decorrente de título judicial, fosse decorrente de título extrajudicial) e  hoje regula apenas e tão somente a execução por título extrajudicial e, por outra razões, a execução da sentença condenatória contra a fazenda pública e contra o devedor de alimentos.
Autonomia haverá, portanto, somente em relação a essas últimas espécies de execução. Registre-se, por honestidade acadêmica, que o professor Araken de Assis oferece resistência à desconsideração do princípio da autonomia mesmo naquelas hipóteses em que houve integração da fase executiva ao processo de conhecimento, identificando, aí, pelo menos uma espécie de autonomia funcional (Manual da Execução, 14ª edição, Revista dos Tribunais, p. 110).

princípio da patrimonialidade

Também apelidado de princípio da responsabilidade patrimonial, esse princípio quer significar que a execução dos tempos atuais possui o caráter real e não pode mais incidir sobre o corpo do devedor. A rigor, essa é uma conquista do vetusto direito romano. Com efeito, desde 326 a.C. que foi editada a Lex Poetelia Papiria para impedir a execução sobre o corpo do devedor civil. Até então, o credor poderia até mesmo matar o devedor inadimplente, ou vendê-lo como escravo trans tiberim (além do Rio Tibre); após a edição da lei, vedada a manus iniectio, estabeleceu-se a ideia de execução de caráter exclusivamente patrimonial, que hoje vem consignada no art. 789 do CPC atual: o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as estrições estabelecidas em lei.
Vale o apontamento de que esse princípio encontra exceções e abrandamentos no próprio Código de Processo Civil, consistentes na prisão de devedor por alimentos e nas técnicas executivas de que cogita o art. 536 (além do 139, IV), que permite ao magistrado a adoção de várias medidas que extrapolam as fronteiras da patrimonialidade e ingressam na seara da pessoalidade: v.g., remoção de coisas e pessoas.

 princípio da máxima coincidência possível

A ideia que anima o princípio é a de que o credor que tem razão deve obter, com a execução, exatamente aquilo a que tem direito, tal como consignado na sentença ou no título executivo extrajudicial. O Estado deve assegurar-lhe, sempre que possível, esse resultado.
É certo que, algumas vezes, a prestação ordinariamente exigida pode se tornar impossível, ou porque a coisa a ser entregue se perdeu, pereceu, ou a obrigação a ser prestada é infungível e encontra invencível resistência por parte do devedor. Em situações que tais, deve o Estado dar ao credor, como diretor do processo executivo, a solução mais próxima da ideal (no já mencionado art. 536) “pelo  resultado prático equivalente”. 

  Princípio da menor onerosidade

O princípio da menor onerosidade possível tem pertinência com a ideia de que a execução visa à satisfação do direito do credor sem que isso signifique, entretanto, que deva ser instrumento de sua vingança pessoal. Não por outro motivo, o art. 805 do CPC deixa claro que, quando a execução puder ser realizada por mais de uma forma, o juiz deve determinar que seja feita pelo modo menos gravoso para o devedor.
A menor onerosidade conecta-se com a ideia do respeito à dignidade da pessoa humana, no sentido de que a execução não pode e não deve ser realizada quando, para a realização do direito de crédito do exequente, o devedor tiver de ser reduzido à condição análoga à de escravo, sem o mínimo necessário para sua subsistência.
Sabiamente, o legislador processual para atingir esse desiderato, colocou fora do alcance da execução certas parcelas patrimoniais do devedor (art. 833) que lhe garantam a condição humana, declarando, sobre tais bens, a absoluta impenhorabilidade, isto é, a impossibilidade de sobre eles incidir constrição do Estado para o fim da satisfação de eventual direito do credor.

 Princípio da disponibilidade

A execução existe para satisfação do direito do credor. Não se lhe pode impor, entretanto, que lance mão do processo executivo, nem que continue na condução daquele que haja começado. Não por outro motivo, dispõe o CPC, no art. 775: O exequente tem o direito de desistir de toda a execução ou de apenas alguma medida executiva. Fique claro, entretanto, que, se o executado houver oposto embargos à execução (isto é, uma ação de conhecimento, de natureza incidental, que normalmente visa a desconstituir o título ou demonstrar a sua inexigibilidade) será necessária a sua concordância dado que, a partir do ajuizamento da demanda incidental, também o executado passou aa ter direito a uma prestação jurisdicional sobre o título executivo que amparava a execução.

quarta-feira, 13 de março de 2019

PROGRAMA DE PROCESSO CIVIL - UNB


FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Tutelas Satisfativas
Professor Voluntário: JORGE AMAURY MAIA NUNES
PROGRAMA para o 1º Semestre de 2019

Ementa:
Conteúdo: A disciplina contempla o estudo das tutelas satisfativas, assim compreendidas aquelas cujo objetivo seja a entrega do bem da vida ao vindicante. São abordados tanto os aspectos principiológico quanto normativos. São estudados, nesse amplo espectro, tanto os procedimentos de satisfatividade imediata e antecipada, quanto aqueles relativos ao cumprimento de sentença e ao processo de execução.
Objetivos:
A disciplina tem por escopo estudar as principais vertentes doutrinárias sobre a atividade jurissatifativa, sua definição e princípios reguladores.  O mesmo empenho ocorre com relação aos procedimentos executivos desenhados no vigente código de processo civil.
 Procedimentos de ensino
Serão realizadas aulas expositivas e, também, sempre que possível, utilizadas técnicas de ABP (Aprendizagem baseada em problemas).

Critérios de Avaliação
Serão realizadas duas provas escritas, em diferentes momentos do semestre letivo, com igual peso na atribuição de menção final.
O professor poderá pontuar participação de boa qualidade nas atividades de ABP.


Técnicas de execução (sub-rogação e coerção). As tutelas antecipatórias do novo código.
Princípios, condições e pressupostos da execução civil. Suspensão e extinção da execução
Títulos executivos judiciais e extrajudiciais. Liquidação.
Partes e terceiros na execução.
Responsabilidade patrimonial. Fraude de execução e fraude a credores. Desconsideração da personalidade jurídica
Execução para pagamento de quantia fundada em título judicial– aspectos procedimentais
Execução para pagamento de quantia fundada em título extrajudicial– aspectos procedimentais
Penhora e expropriação.
Execução para entrega de coisa certa fundada em título judicial e extrajudicial
Execução de obrigação de fazer e não fazer fundada em título judicial e extrajudicial
Defesas do executado
Execução contra a Fazenda Pública.
Execução de alimentos. Execução fiscal

ABELHA, Marcelo. Manual da execução civil. 6. ed. rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 2016.
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 18ª. edição revista, atualizada em ampliada.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. 7. ed. Salvador: Juspodium, 2017;
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de Urgência e Tutela da Evidência. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2017.
MEDINA, José Miguel Garcia Medina. Direito Processual Civil Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
NEVES, Daniel Amorim de Assunção. Manual de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm. 2016.
WAMBIER, Luiz Rodrigues. TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil,  16ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.