sábado, 18 de junho de 2011

Separação de poderes, Poder Judiciário e Consequencialismo. Texto do Autor escrito no âmbito do GEPRO-UnB

OS LINDES DA QUESTÃO

A norma insculpida no artigo 2º da Constituição, que dispõe sobre a independência e harmonia dos poderes da União, tem sido motivo de perplexidade, não tanto pela sua expressão literal, mas, possivelmente, em face do pequeno grau de correspondência que esse princípio tem no mundo sensível, considerado aqui especificamente o Estado brasileiro.

Ao que tudo indica, mais de três séculos de elaboração, experimentação e consolidação da teoria da separação dos poderes não foram suficientes para espancar as hesitações doutrinárias e práticas a respeito do perigo que representa o abandono da tese: o poder para o poder. Isso se deve, talvez, a uma tresleitura do princípio ou à necessidade de sua releitura, não sendo poucos, porém, os que sustentam que, avelhantada, a teoria "expirou desde muito como dogma de ciência."

Impõe-se um exame crítico do assunto, em termos do que realmente significa ou pode significar a separação dos poderes, como concepção teórica e como princípio referenciado ao ordenamento jurídico-político brasileiro, de molde a tentar descobrir, se for o caso, em que medida a dimensão que se lhe atribua repercutirá sobre o relacionamento do Judiciário com os demais Poderes.

Separação de Poderes

Como concepção teórica, pareceria correto admitir que os formuladores do princípio e seus precursores (Aristóteles, por exemplo) não conferiram ao Poder Judiciário a posição de proeminência que parcela da doutrina juspublicista lhe atribui. Locke , com efeito, a ele nem sequer se refere como poder autônomo; Montesquieu dispensa-lhe um papel secundário, como um desdobramento da atividade executiva.

Como princípio referenciado ao ordenamento jurídico brasileiro, o seu acolhimento constitucional não é, por si só, capaz de deitar luzes definitivas ao problema. É que, como advertem Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Brito , os princípios ensartados no Estatuto Político, entre eles o da separação dos poderes, "padecem de uma imprecisão conceitual ontológica", fenômeno, aliás, reconhecido por praticamente todos os constitucionalistas que se ocuparam do exame da matéria.

É necessário, pois, precisar esse conceito, sempre tendo presente que todos os elementos interpretativos do texto constitucional hão de ter sua conformação exclusivamente endógena, dada a noção de autorreferência que cerca a hermenêutica constitucional .

Não se pretende, contudo, fazer dessa investigação mera formulação teórica, desvestida de utilidade prática. A todo instante vêm a lume pesquisas sobre o papel do Judiciário na nova concepção de Estado democrático de direito embaladas, sobretudo, pelas chamadas teorias neoconstitucionalistas, investigações essas que têm como foco, dentre outros a observação sobre a legitimidade (ou ausência de) do Poder Judiciário para atuar propositivamente no exercício de seus misteres e os limites dentro dos quais pode operar sem desbordar para a seara do arbítrio.

Tem-se admitido como certo que o Princípio da Separação dos Poderes, de estatura constitucional, influi de maneira preponderante na formação do Estado, sendo acolhido praticamente em todas as modernas constituições, ressalvada a Constituição do Estado da Cidade do Vaticano.

A ideia de separação dos poderes inspirou-se, nos séculos XVII e XVIII, em princípios similares aos que hoje provocam a repartição do poder. Novos são, apenas, a percepção do aspecto fragmentário do poder e o fato de que a sociedade moderna (considerada aqui apenas a chamada civilização ocidental) não é rigidamente estratificada. Talvez até tenha sido a existência de sociedades rigidamente estratificadas a mola propulsora do desenvolvimento da teoria da soberania popular.

É certo, porém, que os princípios ensartados no Estatuto Político "padecem de uma imprecisão conceitual ontológica", como já apontado preambularmente, cabendo à doutrina precisá-los. No caso concreto, cumpre especificar o que hoje significa o Princípio da Separação dos Poderes e como foi ele lançado no ordenamento constitucional brasileiro pelo poder constituinte originário.

Isso não poderá ser feito senão com o estudo da evolução do pensamento político e filosófico a respeito do tema. Toda investigação a respeito do tema conduz a Aristóteles como precursor da Teoria da Separação dos Poderes. Ao conceber no seu A Política os princípios informadores da constituição mista, ou da constituição média , Aristóteles já previa a partição do poder entre classes, ideia que certamente foi assimilada pelos modernos formuladores da teoria sob exame: o equilíbrio do poder político, através de sua distribuição entre as várias classes sociais, como forma de representar os chamados fins sociais realmente queridos por toda a coletividade.

Para atingir esse desiderato, Aristóteles entendia ser necessário misturar as diversas formas de governo que concebeu — realeza, aristocracia e república, formas boas, e tirania, oligarquia e demagogia, formas más. — , porque nas constituições puras um único grupo ou classe social detém o poder político.

A constituição mista é, para Aristóteles, aquela em que os vários grupos ou classes sociais participam do exercício do poder político, ou aquela em que o exercício da soberania, ou o governo, em vez de estar nas mãos de uma única parte constitutiva é comum a todas.

Há, pois, na teoria das constituições mistas, uma espécie de separação dos poderes (poder político) por meio de sua distribuição entre as várias classes sociais, embora não tivesse cogitado Aristóteles, ainda, de uma expressa divisão orgânica.

É certo, entretanto, que foi Locke quem assentou — visando a dar legitimidade à assunção de Guilherme de Orange ao trono inglês — as bases do Princípio da Separação dos Poderes, ou, melhor dizendo, de uma das formulações conceituais de maior prestígio a respeito do tema.

As formulações de Locke não eram de natureza meramente teórica. Ao revés, fundavam-se na experiência inglesa e, ao que parece, representavam os anseios políticos da época.

Locke encontrava estabelecida no Estado Inglês a temática da constituição mista porquanto o rei, a nobreza e os comuns ocupavam posições bem definidas tanto nas instituições estaduais quanto no exercício do poder político.


Ao contrário, porém, do que se sucede na teoria das constituições mistas, que se baseiam num fato natural, Locke, a exemplo de Rousseau e Hobbes, encontra a essência do poder político e, por via de conseqüência, do Estado, em um pacto — pacto de sociedade para os dois primeiros, pacto de sujeição para o último. A adoção da teoria contratualista sugere que Locke se afasta da teoria mista da distribuição estamental do poder e pugna pela divisão de poderes; classifica-os em legislativo, executivo e federativo, sendo que este último concerne aos assuntos exteriores (poder de fazer a guerra, a paz, constituir ligas e alianças e de levar adiante todas as negociações que seja preciso realizar como pessoas e comunidades políticas alheias).

Paulo Bonavides aponta ter Locke distinguido o Judiciário como um poder autônomo. Na mesma senda caminha Jose Maria Rodriguez Paniagua . Essas opiniões são, a nosso ver, equivocadas. Deveras, o exame da fonte primeira, O Ensaio sobre o Governo Civil, não autoriza a conclusão a que chegam. Com efeito, a epígrafe do Capítulo XII bem demonstra o pensamento do filósofo inglês: Do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Federativo da Comunidade Política; e, nele, somente esses três poderes são versados.

É claro que Locke não desconhece a necessidade do exercício da função judicial, mas o atributo que lhe comete é esse mesmo: de função; jamais lhe empresta a conotação de poder independente. Assim, por exemplo, ao cuidar da sociedade Política, ou Civil, no Capítulo VII, afirma: "Isto é que retira os homens de um estado de Natureza e os coloca dentro de uma sociedade civil, quer dizer, o fato de estabelecer neste mundo um juiz com autoridade para decidir todas as disputas e reparar todos os danos que possa sofrer um membro da sociedade. Esse juiz é o Poder Legislativo." O exercício da função judicial seria, pois, atribuído ao poder legislativo, ou a quem ele delegasse; jamais constituiria outro poder.

Esclareça-se que essa separação de poderes concebida por Locke não os colocava em absoluto pé de igualdade. É compreensível isto: assim como Hobbes, no Leviatã, fazia a apologia do poder absolutista (daí o pacto de sujeição), Locke atacava as bases dos Estados absolutos conferindo o poder de fazer as leis à sociedade como um todo e vinculando o chefe do Executivo a agir na sua conformidade. Suas palavras não deixam margem a dúvida:
"Não somente é o poder legislativo o poder máximo da comunidade política; é também sagrado e imutável em mãos onde a comunidade o haja situado. Nenhum edito ou ordenação, seja de quem seja, qualquer que seja sua redação e qualquer que seja o poder que lhe dê supedâneo, tem a força e a obrigatoriedade de uma lei, se não tiver sido aprovada pelo poder legislativo eleito e aprovado pelo povo."

Sem embargo dessa supremacia do Legislativo, parece evidente que a atribuição do poder executivo ao monarca (i) aproximava a teoria de Locke da teoria das constituições mistas; e (ii) intuía a separação de funções do Estado de forma não estanque, sobretudo porque reservava ao Poder Executivo a chamada Prerrogativa, uma espécie de poder de editar medidas provisórias, para promover o bem comum, onde a lei fosse omissa ou lacunosa, ou mesmo, em certos casos, agir contra legem para atenuar os rigores da lei .

Isso tudo nos leva a crer ter sido Locke o primeiro formulador de uma teoria da separação dos poderes, embora essa, evidentemente, não corresponda àquela que foi popularizada por Montesquieu que, registre-se, foi construída, indutivamente, a partir da observação do filósofo francês sobre a Constituição e a praxis inglesas.

É certo, porém, que a fama e a respeitabilidade do princípio devem-se a Montesquieu. Para comprovar isso, Madison, delegado da Virginia, e quem mais contribuiu, segundo Ralph Gabriel , para dar forma à Constituição, anota, a propósito do princípio da separação dos poderes, acolhido implicitamente pela Constituição dos Estados Unidos, que: "O oráculo que sempre se consulta e cita a esse respeito é o celebrado Montesquieu. Se não foi ele o autor deste valioso preceito da ciência política, teve ao menos o mérito de expô-lo e recomendá-lo de modo mais eficaz à atenção da humanidade."

Essa a dimensão que se deve atribuir ao contributo de Montesquieu à teoria da separação dos poderes, que se erigiu em princípio fundamental da organização política do Estado moderno , marcando a evolução do constitucionalismo francês e mundial, sobretudo após sua inserção no artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, soando "Toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos do homem nem determinada a separação dos poderes não possui, absolutamente, constituição."

É quase indissonante o entendimento de que o princípio da separação de poderes concebido por Montesquieu consiste em distinguir três funções estatais — legislação, administração e jurisdição — e atribuí-las a três órgãos ou grupos de órgãos, reciprocamente autônomos, que as exercerão com exclusividade ou ao menos preponderantemente.

Não nos parece, contudo, que esse seja o único entendimento preponderante na teoria do jusfilósofo francês, como será demonstrado a seguir.

A respeito de suas concepções, cujo conhecimento facilita a compreensão da teoria sob exame, é preciso que se diga que, diversamente de Locke e Rousseau, Montesquieu não é adepto das teorias contratualistas e, por isso, não vê o poder soberano unitariamente contido no povo. Isso é facilmente identificável em diversas passagens de sua obra, quando se refere aos vários estratos sociais como eventuais detentores do poder político , o que autoriza o entendimento de que, mesmo com a não utilização expressa do termo, Montesquieu se aproxima seguramente da teoria das constituições mistas, de distribuição do Poder Político entre os diversos estamentos sociais. Expressiva é, por exemplo, esta passagem, extraída do famoso Capítulo VI, do Livro XI:

Existem sempre num Estado pessoas eminentes pelo nascimento, pelas riquezas ou pelas honras.Se elas ficassem confundidas entre o Povo, e não tivessem senão um voto como os outros, a liberdade comum seria a sua escravidão, e elas não teriam interesses em defender a liberdade, porquanto a maioria das resoluções seria contra elas.
A participação dessas pessoas na Legislação deve pois estar proporcionada às demais vantagens que têm no Estado. Ora, isto se dará se elas formarem um corpo com direito de frear as iniciativas do Povo, assim como o Povo terá direito de frear as delas.
Assim, o Poder Legislativo estará confiado não só ao corpo de nobres mas também ao corpo escolhido para representar o Povo. Os dois corpos terão cada qual as suas assembléias e suas deliberações à parte, e pontos de vista e interesses distintos.

Nuno Piçarra bem enfatiza esse aspecto e, em consequência, consegue examinar a teoria de Montesquieu debaixo de um duplo enfoque: um institucional, funcional, a que chama separação vertical, que cuida da dimensão orgânico-funcional; outro, extrainstitucional, ou separação horizontal, que cuida da dimensão político-social de sua doutrina.

É evidente a utilidade da dimensão político-social para a compreensão da obra de Montesquieu que, de sabença geral, era referida à Inglaterra do início do sec. XVIII e que tinha como referencial inarredável a realidade social da França daquela época. A distribuição do poder entre os diversos estamentos buscava impedir a sustentação teórica das chamadas monarquias absolutas, se bem que em Montesquieu não se encontra uma real correspondência entre os diversos estratos sociais e os órgãos designados para o exercício do poder.

Outro aspecto interessante na obra de Montesquieu, quanto à dimensão político-social é que, ao que parece, embora não adepto das teorias contratualistas, entendia o Barão De La Brède que a representação das classes era, internamente, fruto de uma vontade homogênea. Não havia, pois, para ele, conceito de maioria ou minoria dentro das classes. Esse conceito só poderia ser entendido se referenciado a uma outra classe.

É induvidoso, porém, que o caráter mais festejado e mais conhecido da teoria de Montesquieu é o da separação das funções do Estado, como forma de evitar o arbítrio. Assevera o jusfilósofo que em cada Estado há três espécies de poderes: o Legislativo; o Executivo das coisas que dependem do Direito das Gentes e o Executivo das que dependem do Direito Civil.

Pelo primeiro, o Príncipe ou magistrado cuida da elaboração das leis, para algum tempo ou para sempre, e corrige ou ab-roga as que estão feitas; pelo segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne invasões; pelo terceiro, pune os crimes, ou julga as demandas entre particulares.

A respeito dessa separação, afirma Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
Em realidade, essa tripartição não tem o rigor necessário para ser acatada como científica. De fato, é fácil mostrar que as funções administrativa e jurisdicional são no fundo a mesma coisa que é a aplicação da lei a casos particulares. A distinção entre ambas pode estar de modo, no acidental, portanto, já que substancialmente não existe.

Talvez nem seja o caso de ingressar nessa discussão; porém, é evidente que o constitucionalista brasileiro sustenta exatamente a mesma posição que é esposada por Montesquieu. Não há dissenso entre eles como pareceu ao constitucionalista brasileiro. Deveras, na variante que ora se examina, duas são as funções executivas: uma das coisas que dependem do direito das gentes (Poder Executivo do Estado); outra o Executivo das coisas que dependem do Direito Civil (Poder de Julgar) . Ambas são funções de natureza executiva no sentido de não serem atividade de criação do Direito, e sim no sentido de serem atividades consequentes, atividades de aplicação do Direito.

É bem de ver, porém, que, nada obstante trate de uma mesma atividade executiva, Montesquieu sugere que, subjetivamente, tais funções sejam atribuídas a seres distintos, como o faz, também, relativamente ao Poder Legislativo. É celebre a passagem que se reproduz:
Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o Juiz seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor.
Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes e as demandas dos particulares.

Montesquieu, em diversas passagens, acentua uma enorme preocupação com o Poder de Julgar, que constitui, hoje, a atividade do Poder Judiciário, e busca, cautelosamente, neutralizá-lo, num exercício premonitório do que viria a acontecer mais tarde, por exemplo, nos Estados Unidos, onde se estabeleceu o chamado "governo dos juízes". Fá-lo nestes termos:

O Poder de Julgar não deve ser entregue a um senado — a expressão deve ser entendida como representando um grupo de pessoas de escol — permanente, mas exercido por pessoas tiradas do seio do Povo, em certas épocas do ano, da maneira prescrita em lei, para formar um tribunal que não durará senão o quanto o exigir a necessidade.
Deste modo, o Poder de Julgar tão terrível entre os homens, não estando ligado nem a um certo estado, nem a uma certa profissão torna-se, por assim dizer, invisível e nulo.
..................
Mas, se os tribunais não devem ser fixos, devem-no os julgamentos. A tal ponto que não sejam estes jamais senão um texto preciso da lei. Fossem eles a opinião particular dos juízes, e viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente quais os compromissos assumidos." — os grifos não são do original.

É verdade que alguns autores têm buscado demonstrar, hoje, a imprestabilidade do princípio. Nesse sentido, a clássica catilinária contra ele lançada por Marcel de La Bigne Villeneuve , em 1934, procurando demonstrar a imprestabilidade e inaplicabilidade do princípio e, também, a afirmação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho de que "sua importância costuma ser minimizada, seu fim, profetizado, sua existência até negada... ela é mais aparente do que real" Na mesma toada, Paulo Bonavides vai buscar em Coste-Floret a afirmação de que "há muito tempo a regra da separação dos poderes, imaginada por Montesquieu como um meio e lutar contra o absolutismo, perdeu toda a razão de ser."

Ora, venia concessa, não procede o entendimento dos que seguem essa corrente. Deveras, ainda que se possa concordar com o fato de que, sobretudo após a segunda guerra, não se fazem mais presentes as condições que autorizavam a formulação da teoria da separação os poderes especificamente referenciada à partilha do poder político, no sentido de que todos os estratos da sociedade deveriam estar representados no concerto do exercício das funções estatais, daí não se pode inferir que o princípio perdeu sua utilidade. É que esse princípio como qualquer outro da área da Ciência Política ou do Direito não pode ser compreendido fora de sua dimensão histórica e deve ser historicamente atualizado.

Deveras, com o declínio das monarquias, melhor dizendo, com o declínio das estruturas monárquico-constitucionais detentoras do poder político e com a ascensão da chamada democracia parlamentar, desapareceu o próprio substrato fático que autorizava a construção da teoria das constituições mistas e da separação horizontal do poder, já que todo o poder político passou a ser concentrado no seio de toda a coletividade, dentro de uma concepção que pode, nesse ponto, ser considerada rousseauniana (embora sem a ideia do one man one vote).

Não se deve cogitar, porém, em razão da ausência da sociedade estamentalizada, com diferentes polos de poder, de uma inaplicação total dos postulados lançados por Montesquieu. Com efeito, já se disse aqui, ao lado da separação horizontal, cuidou Montesquieu de uma separação orgânico-funcional. Cometeu as principais atividades estatais preponderantemente a certos órgãos, ainda que taxionomicamente se possa lançar essa ou aquela crítica a esse cometimento. Bem de ver, contudo, que próprio conceito de Poder Executivo à época da formulação de Montesquieu era absolutamente distinto do que se tem hoje. O Poder Executivo de então se resumia ao poder de executar as resoluções públicas e seu conceito se obtinha por oposição, e residualmente, ao conceito de Poder Legislativo. Em outras palavras, o que não fosse atividade de criação da lei seria atividade executiva. De outra parte, a Europa daquela época não concebia um Estado onipresente , atuando em todas as frentes participando ativamente do jogo da economia e atuando como "Estado assistencial" ou Estado providence.

Mesmo, porém, com a alteração que se possa ter do conceito de Poder Executivo, permanece válida, a nosso pensar, a divisão orgânico-funcional preconizada na teoria da separação dos poderes que tem, também, o condão e estremá-la da teoria das constituições mistas, de purificá-la, portanto.

Mister se faz, apenas, que os exercentes do poder, orgânico-funcionalmente falando, sejam legitimados pelos detentores do poder político nas chamadas democracias representativas, através de processos seletivos e temporários de representação.

Também não merecem qualquer credibilidade as afirmações que rejeitam a teoria da separação dos poderes porque a prática constitucional teria demonstrado ser impossível uma total separação, sendo preferível falar-se em interdependência entre os poderes. É preciso que se diga que Montesquieu jamais preconizou a separação absoluta entre os poderes. Ele conhecia a versão da balança dos poderes, ou sistema de freios recíprocos, controles recíprocos, tributário que era, confessadamente, do constitucionalismo inglês, de onde é originário tal sistema. Nem por outro motivo, uma das expressões mais famosas de Montesquieu é: o poder para o poder. Justamente por isso, atribui aos poderes a faculté d'empêcher e a faculté de statuer sendo a primeira, obviamente, um meio de controlar ou contrabalançar o poder de outro órgão.

Justamente em face da historicidade dos princípios, antes referida, cabe destacar que não seria lógico afirmar que o conceito informador do princípio da separação dos poderes, na Constituição Brasileira, estivesse referenciado à distribuição do poder político como nas monarquias mistas, ou na separação horizontal, exatamente porque a sociedade brasileira não é estamentalizada. Tanto mais assim se há de entender quanto se sabe que o Parágrafo Único do artigo 1° elege o Povo como o solitário detentor do poder.

A questão é, pois, de separação funcional. O poder é reservado ao Povo e é por este delegado aos membros do Legislativo e do Executivo, ou é exercido diretamente, nos termos da Constituição.

Há aí uma espécie de deslocamento de pano de fundo: por um lado, a teoria de que o poder para o poder deixa de se preocupar com as classes sociais, com os estamentos, para se preocupar com pessoas ou grupos de pessoas (grupos de pressão, lobbies). Por outro, o poder político, num movimento originário de autorregulação estabelece, no seu estatuto político, regras de jurisfação do poder de tal sorte que o exercício de uma função não permita ao seu agente apresar os agentes das outras funções estabelecidas, atentando à máxima de Montesquieu sobre a tendência que têm os detentores do poder a dele abusar.

O Judiciário no concerto dos Poderes do Estado

Já se disse que, na origem, nem Montesquieu nem Locke preconizavam a existência de um Poder Judiciário, embora admitissem a função de julgar. Essa dignidade somente é emprestada ao Poder Judiciário quando o princípio atravessa o Atlântico e se encarta no Direito constitucional norte-americano.

É certo que o princípio da Separação, embora exija o conhecimento dessas formulações teóricas a seu respeito, e das dissensões até então lavradas, possui, em si, algo de absolutamente incontroverso: a independência e harmonia dos três Poderes entre si.

E onde o constituinte diz independência não pode o hermeneuta ler submissão, dependência, subalternidade de qualquer dos poderes em relação aos outros. Afinal, como adverte Rumpf, citado por Maury de Macedo, "As audácias do hermeneuta não podem ir a ponto de substituir, de fato, a norma por outra." Assim, quaisquer interpretações da Constituição que possam ser levadas a efeito, hão de ter sua aplicabilidade e ser entendidas como forma de garantir esse independência e harmonia entre os Poderes da República. Nunca o contrário.

Essa advertência se faz tanto mais necessário quanto se sabe que, nos dias atuais, tem vindo à balha, com frequência, a discussão sobre o magistrado adepto do ativismo judicial e seu poder criador; sobretudo nos últimos anos, em que o Supremo Tribunal Federal abandonou a sua clássica posição de ser apenas e tão-somente um legislador negativo, para atuar como legislador positivo, ocupando um espaço destinado ao Poder Legislativo.

Discute-se, em outras palavras se o magistrado, na construção da norma jurídica individual, cria direito ou revela o direito já existente no ordenamento e aplicável ao caso concreto, numa espécie de antítese entre a atividade de interpretação judiciária e a atividade criadora dos magistrados.

Em princípio, isso parece ser um falso problema. Deveras, admitido que o Direito não é um sistema dotado de completude, que não é axiomático-dedutivo, nem lógico formal, é forçoso concluir que há inevitáveis espaços de criação na construção da norma jurídica individual.

Assim, como ressalta MAURO CAPPPELLETTI , o verdadeiro problema é o do “grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários.”

Dizendo de outra forma, quanto de criatividade pode ser invocado pelos magistrados na criação da norma individual sem que essa atividade desborde para a seara do arbítrio, em atenção, à afirmação de Lord Acton — citado por Ives Gandra Martins —, no sentido de que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente .

Se é certo que a Constituição pátria prevê a independência e harmonia dos poderes, então deve ter estabelecido um eficaz sistema de controles recíprocos, para dividir igualmente as faculdades d'empêcher de que cuidava Montesquieu, como forma de equilíbrio entre os poderes.

O tratamento constitucional que recebeu o Poder Judiciário brasileiro, cujos membros não são eleitos, e têm deferida a faculdade de controlar a constitucionalidade das leis, tornou-o um Poder essencialmente diverso do concebido por praticamente todos os teóricos da separação dos poderes, merecendo, também por isso, um tratamento especialíssimo, de modo a evitar que se torne letra morta a cláusula pétrea do princípio da separação dos poderes.

Esse tratamento há-de levar em conta, com máximo desvelo, a questão pertinente à legitimação dos três Poderes da República. Ora, admitido como certo que o princípio da separação dos poderes cuida de uma separação orgânica de funções — porque incompreensível a adoção da teoria das constituições mistas em sociedades não estamentalizadas — tem-se que a legitimação próxima do exercício dessas funções deflui do próprio texto constitucional.

Ocorre que esse mesmo instrumento legitimante reconheceu que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente... (Constituição Federal, artigo 1°, parágrafo único), o que vem confirmado no artigo 14 do mesmo Estatuto Político que determina: "A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto (e periódico, conforme definido no artigo 60, § 4°, que inclui essa disposição entre as cláusulas pétreas).

Esse poder soberano, mesmo admitida a tese de Miguel Reale sobre a jurisfação do poder, se exerce sobre as funções (=poderes) Legislativa e Executiva, justamente através do voto direto e periódico, como forma de escolha de seus agentes, representantes no poder, e, induvidosamente, como forma de placitar ou reprovar condutas havidas no exercício dessa representação.

No que diz, porém, com o Poder Judiciário, a situação é bastante diferente. Não são os seus agentes escolhidos pelo detentor da soberania e, sobretudo, não passam pelo controle periódico de legitimação, o voto, visto como são vitalícios.

Justamente por isso, a forma alternativa de legitimação que possuem passa pela necessidade de que procedam conformidade com o justo social, presumivelmente querido pela lei. Não podem simplesmente eleger a sua ideia de justiça pessoal independentemente de prestação de contas à sociedade sobre cuja conduta decidem. Nem podem fazer-se independentes de alguma forma de controle da sociedade, sob pena de incidirem na advertência de Lord Devlin: "
"É grande a tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo democrático. Tratar-se-ia, contudo, de desviação só aparentemente provisória; em realidade, seria ela a entrada de uma via incapaz de se reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e tortuoso que seja o caminho, ao estado totalitário."

Não se pretende, obviamente, reduzir a independência do Judiciário. Quer-se, isso sim, reduzi-lo às suas reais dimensões: igual aos outros Poderes, nem mais nem menos importante. Não é, pois, o caso de reduzir o Judiciário a "um poder nulo e invisível" ou à "boca que pronuncia as palavras da lei". Isso seria uma tolice acadêmica e uma imprevidência em termos de Ciência Política.

Admite-se que a atividade do Poder Judiciário implica um espaço necessário de criação do direito. Essa admissão, todavia, não implica a aceitação de formas exacerbadas de ativismo judiciário, seja ele exercido pelas instâncias ordinárias, seja ele exercido pelo Supremo Tribunal Federal que não teve reservado a si, pela Constituição, o poder de exercer o papel de legislador positivo (ressalvadas as situações especificamente admitidas para o uso do mandado de injunção e nos seus limites), ao argumento de que o Legislativo demitiu-se do múnus de concretizar a Constituição, argumento esse supostamente abrigado em exóticas teorias neoconstitucionalistas.

Em outras palavras, ainda que se possa identificar o elevado grau de abulia do Congresso Nacional no exercício dos misteres que lhe são próprios, daí não resulta que possa o STF avançar no vácuo do poder e instalar-se como novel legislador.

Sem embargo disso, e como já afirmado, é evidente o poder criador do magistrado na construção da norma jurídica individual, seja como consectário natural do exercício de sua função seja como decorrência do fato de que o sistema jurídico é dotado de natural incompletude, a exigir do julgador o preenchimento de suas eventuais lacunas. Tanto em uma como em outra situação ocorrerá a manifestação inevitável do poder criador do juiz.

Consequencialismo e Legitimação
Nessa seara é que parece florescer a necessidade de examinar, com mais cuidado, a postura consequencialista do julgador, como um limitador na construção da norma jurídica, a impor ao magistrado um exercício de prognose em relação aos efeitos que o cumprimento da decisão irá provocar no chamado mundo sensível. Não se trata, pois, simplesmente de proferir a decisão, mas, sim, de preocupar-se com sua realização no mundo real de forma adequada, até como forma de eliminar frustração de expectativas, construídas pela própria sentença, em relação ao vencedor, ao vencido, e à sociedade como um todo.

O consequencialismo funciona, em certo sentido, como fonte e forma de legitimação do Poder Judiciário porque ajusta a conduta do Judiciário, conformando-a ao todo social, num reconhecimento de que a justiça do caso concreto se espraia sobre toda a sociedade que não pode nem deve sofrer danos colaterais decorrentes dessas decisões. Ademais, funciona como processo de justificação da decisão judicial, de modo a permitir o controle da sociedade sobre as expectativas que devem manter em relação ao Judiciário e às suas manifestações.

É preciso, em face disso, tecer algumas considerações sobre o consequencialismo como teoria jurídica.

Há uma espécie de admissão tácita de que a tese do consequencialismo deve envolver “the act wich will lead to the most good” , conceito esse que não parece expressar exatamente a ideia que se deve ter e, sim, mais precisamente, algumas vertentes do pragmatismo norteamericano, que têm alguns pontos de contato com o consequencialismo mas que não lhe captam a essência.

Conceda-se, antes de continuar o exame, que a ideia de consequencialismo e sua formulação teórica vicejaram no campo da commom Law. Sem embargo, sua aplicação em ordenamentos de civil Law, especialmente no Brasil, é plenamente admissível, máxime em se considerando a adoção, desde a Emenda Constitucional 45, das chamadas súmulas vinculantes, fato esse que provocou uma maior aproximação entre os dois sistemas sob a ótica da criação da norma jurídica individual e da sua capacidade de funcionar como binding precedent ou precedente vinculante.

Demais disso, são fartos os exemplos de argumentação consequencialista retirados da jurisprudência britânica em que os tribunais decidem sobre direito estatutário, sobre aplicação da lei ao caso concreto, nos moldes que ocorrem no sistema de civil law.

É claro que nos sistemas de commom law, e isso é apontado por MacCormick, amparado em Austin, a decisão de hoje pode ser — e normalmente o é — o precedente de amanhã, fato esse que determina se a apreciação judicial voltada não exclusivamente para o caso concreto mas tendente à consideração de que poderá abrigar casos futuros. Conceda-se, porém, que a atual atividade do Supremo Tribunal Federal na edição de súmulas vinculantes e da apreciação da repercussão geral dos recursos extraordinários e, também, do STJ no julgamento dos recursos repetitivos, tem, ou deve ter, exatamente a mesma preocupação: a valorização das consequências das decisões proferidas.

Nessa linha, convém ter presente a ideia de sinépica como um conjunto de regras que, habilitando o órgão da jurisdição a sopesar as consequências, permite a ponderação dos efeitos da decisão adotada.

Nessa vereda, poder-se-ia pensar em algumas achegas trazidas pela AED (Análise Econômica do Direito), como uma conduta consequencialista, mais exatamente como um instrumento consequencialista (mas que não se confunde, a nosso entender, com consequencialismo), como também, na mesma toada, poder-se-ia pensar no princípio da reserva do financeiramente possível, já algumas vezes invocado no STF, em manifestações do Min. Gilmar Mendes, além de outras posturas consequencialistas que não tenham imediata repercussão patrimonial.

Entre outras aplicações práticas, o consequencialismo se impõe de forma mais acentuada nas relações que concernem à concretização e execução de medidas relativas a políticas públicas, ações de massa, tanto aquelas relativas à tutela coletiva de direitos como à tutela de direitos coletivos.

A ideia que se quer deixar assentada é a de que o pensar as consequências extraprocessuais da decisão judicial, validando-as, entretanto, no próprio sistema jurídico, pode e deve funcionar como meio de legitimação do Judiciário e da decisão judicial, por força do comprometimento do juiz com a sociedade, comprometimento que não se esgota após proferida a sentença de mérito ou após determinado o cumprimento da decisão judicial, mas que se prolonga além tempo e que, por isso mesmo, tem do condão de obrigá-lo, vinculá-lo, responsabilizá-lo.

Diante de tudo o que foi dito, parece lícito concluir que a postura consequencialista reafirma o princípio da separação dos Poderes, aproxima o Judiciário da sociedade e serve como sua fonte de legitimação.

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