quinta-feira, 1 de novembro de 2012

petição inicial

No texto original havia  algumas notas de rodapé que se perderam no momento de trasladá-lo para o ambiente do blog. Se precisarem das referências, falem comigo.

I. Demanda. Petição inicial: requisitos. Pedido. Antecipação de tutela, indeferimento da inicial.

 


I.1 Demanda

Numa primeira aproximação, pode-se afirmar que demanda é a lide que é colocada perante o magistrado. Dizendo com mais precisão, é o ato de vir a juízo indicando a pretensão de direito material que se quer ver acolhida pela resposta estatal. Obviamente, a demanda, em regra, indica as partes, autor e réu, que coincidirão com os titulares da relação jurídica de direito material, por exemplo, locador e locatário, credor e devedor. Deve haver nessa demanda, além das partes (i) a causa de pedir (o fundamento do pedido) que pode ser cindida em causa de pedir remota — que é o fato gerador a incidência originária (por exemplo, um contrato); e causa de pedir próxima – que é o fato gerador da incidência derivada (por exemplo, o inadimplemento contratual); e (ii) o pedido.

É importante compreender a demanda como uma espécie de “parâmetro ou baliza que define e limita a controvérsia sobre a qual o juiz pode e deve pronunciar-se. Ele terá de decidir a controvérsia (lide) que lhe é apresentada, respondendo ao pedido de tutela jurisdicional contido na demanda. A tal se obrigou o Estado a partir do momento em que, proibindo a realização privada do direito, avocou a si o monopólio da jurisdição. Todavia, se ele tem o dever institucional de decidir a lide, somente poderá decidir aquela lide que lhe foi apresentada pelos litigantes, não podendo ampliá-la de modo que a sentença venha a decidir mais do que fora pedido pelas partes.” Isso se dá, em homenagem ao princípio da congruência entre a demanda e a sentença, consectário natural e direto dos arts. 2º e 128 do Código de Processo Civil brasileiro, valendo a transcrita deste último: “artigo 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa das partes.”

Indica DINAMARCO que há outros possíveis significados para demanda, valendo deles destacar o de ato formal por meio do qual se apresenta a pretensão em juízo, cuja representação física é justamente a petição inicial, de que passamos a tratar.

I.3 Petição Inicial


Expressão principal do exercício do direito subjetivo público de ação e veículo da pretensão à proteção estatal de determinado bem da vida do qual o autor se julga titular. Ela permite que se inicie o processo e é o primeiro contato do juiz com a parte autora, por meio do advogado. Os principais elementos do processo nela estão indicados.

Sem embargo de vigorarem, no direito processual civil brasileiro, os princípios da liberdade das formas e da instrumentalidade das formas, a petição inicial exige a atenção para determinados requisitos formais, logo a seguir examinados, sem os quais é inviável a instauração da relação processual.

Cabem, entretanto, antes do exame pontual desses elementos, algumas considerações de ordem geral, sobre a elaboração dessa peça processual: uma boa petição inicial deve ser clara, simples, direta, concisa, precisa e esteticamente adequada. Petição inicial não é sede própria para desenvolvimento de trabalhos doutrinários, nem é repositório de acórdãos retirados das bases de dados dos Tribunais. É claro que, dependendo do tema versado, sobretudo quando esse for inusual na vida forense, pode ser necessário o recurso a algum aporte doutrinário, ou jurisprudencial; mas não é apropriado copiar e colar acórdãos em profusão, todos no mesmo sentido, na petição inicial. Uma petição inicial muito extensa, em vez de demonstrar o direito da parte, é capaz de ocultá-lo da primeira leitura feita pelo magistrado.

Vamos ao exame.

Requisitos da Petição Inicial

No artigo 282 do Código de Processo Civil, que cuida da petição inicial, podem ser identificados nos incisos I, II, V, VI e VII requisitos de desenvolvimento válido e regular do processo. Já os incisos III e IV referem-se ao mérito; coincidem com o que, na época das Ordenações do Reino, era identificado com o libelo.

No inciso I, está previsto que a petição inicial indicará o juiz ou tribunal a que é dirigida. Apesar de o Código mencionar juiz, é bom deixar claro que a pessoa física do juiz, para esse evento, não tem nenhuma importância (aliás, somente passa a ter importância após a distribuição do feito, e única e exclusivamente para fins de verificação da ocorrência ou não de impedimento ou suspeição). Assim, não é adequado, nem na inicial, mesmo nas comarcas onde só há um juiz, nem em outras peças processuais posteriores, indicar na invocação o nome da pessoa física que exerce a função jurisdicional.

Essa invocação, por óbvio, vem na parte superior da petição, mais ou menos com os seguintes dizeres: EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO [Não é necessário utilizar a expressão doutor, que, no Brasil republicano, é apenas um título acadêmico] DA VARA DE FAZENDA PÚBLICA A QUEM ESTA FOR DISTRIBUÍDA. De observar, no exemplo, a expressão vara de fazenda pública, para definir a competência e orientar a distribuição. Quando se indica juiz de direito, significa que destinatária é a justiça comum; se provocada a Justiça do Trabalho, indica-se juiz do trabalho e assim por diante.

No inciso II, cuida-se da qualificação das partes: nomes, prenomes, etc. Identifica-se e individualiza-se a parte. E isso tanto com relação ao polo ativo como com relação ao polo passivo. Se a parte for representada ou assistida, por ser absoluta ou relativamente incapaz, é importante que também estes (representante ou assistente) sejam qualificados. Bem é de ver, quanto ao ponto, que o desconhecimento de dados relativamente ao réu não pode inibir o autor de ter acesso à prestação jurisdicional. Assim, por exemplo, é usual, com relação aos atuais procedimentos de luta pela reforma agrária, que ocorram invasões de propriedade privada. O detentor da posse da terra invadida não tem condição de saber o nome e qualificação dos invasores; basta que indique o prenome de um ou alguns dos líderes da invasão para que se considere cumprido o requisito.

Tem se tornado comum o Poder Judiciário exigir que da petição inicial conste o CPF ou o CNPJ das partes no processo [Ressalvada a hipótese de se tratar de processo eletrônico, dado que, com relação a este, há previsão expressa na lei de regência (Lei nº 11.419, de 19.12.2006, artigo 15)]. A nosso sentir, a exigência é ilegal dado que somente a lei federal poderia dispor a esse respeito. Há muito pouco a fazer, entretanto, dado que o próprio Supremo Tribunal Federal editou uma norma (Resolução nº 309/2005) dispondo que, se da petição não constar esse requisito, o Relator poderá determinar diligência para suprir a omissão.

O estado civil deve ser indicado, principalmente em casos relativos a bens imóveis, justamente para verificação da incidência da norma insculpida no artigo 10 do CPC . Se são rés pessoas jurídicas de direito público, a indicação tem de ser relativa a elas. Assim, por exemplo, a ação deve ser ajuizada contra o Distrito Federal, não contra o Governo do Distrito Federal. Nesse caso, o endereço para fins de citação será o da Procuradoria Geral do Distrito Federal. Registro, aqui, que há um vezo de dizer que a ação não é proposta contra alguém e sim em face de alguém, talvez em decorrência de ter ficado assentado em doutrina que a ação é proposta contra o Estado e não contra o réu. Ora, isso não faz sentido por pelo menos dois motivos: (i) quando se propõe a ação contra alguém, se indica logo o nome do réu e não o nome do Estado-Juiz (vem propor, contra fulano de tal). Significa que o autor, naquele momento, está se reportando à ação material, em que a contraparte é realmente o titular do polo passivo da relação jurídica de direito material, e não à ação processual; (ii) depois, substituir “contra fulano de tal” por “em face de fulano de tal” é absolutamente inócuo haja vista que as expressões são sinônimas.

O endereço do réu deve ser informado da forma mais completa possível. Aliás, este é um dos maiores problemas do Judiciário: a difícil localização do endereço dos réus. No intuito de colaborar, justamente porque é o maior interessado na rápida solução do litígio, o autor poderá indicar o CEP correspondente ao endereço do réu, até porque, na generalidade dos casos, a citação será feita por via postal.

No inciso III, se deve indicar a causa de pedir, isto é, o fato e os fundamentos jurídicos do pedido. Na linguagem de Calmon de Passos, o autor deverá indicar tanto o fato gerador da incidência originária (causa de pedir remota, de onde se origina a relação jurídica posta em juízo, v.g., um contrato), quanto o fato gerador da incidência derivada (causa de pedir próxima — a inadimplência no contrato), ou seja, tanto a relação jurídica que vinculou as partes quanto o fato contra jus que permite ao autor exigir do réu determinado comportamento.

Com relação à causa petendi, há pelo menos duas grandes teorias: a teoria da substanciação e a teoria da individuação. Diz Calmon de Passos que, para os adeptos da teoria da substanciação a causa de pedir “é representada pelo fato ou complexo de fatos aptos a suportar a pretensão do autor, pois são eles que constituem o elemento de onde deflui a conclusão.” Aduzindo que o nosso Código filiou-se à teoria da substanciação, Cássio Scarpinella Bueno parte da dicção do artigo 282, III (fatos e fundamentos jurídicos do pedido), para afirmar que os fatos correspondem à causa de pedir remota e os fundamentos jurídicos do pedido correspondem à causa de pedir próxima. Embora haja aparente dissenso, quando se verificam os exemplos dados por ambos, percebe-se que, com diversos dizeres, chegam ao mesmo resultado.

Para os adeptos da teoria da individuação, a causa de pedir é a relação ou estado jurídico afirmado pelo autor em apoio a sua pretensão, posto o fato em plano secundário e não relevante, salvo quando indispensável à individualização da relação jurídica. No Brasil, adepto dessa teoria é o professor Joel Dias Figueira Junior.

Dinamarco , na esteira do magistério de Zanzucchi, adepto da teoria da substanciação, reporta-se, também, à existência de uma causa petendi passiva e de uma causa petendi ativa. A primeira, relativa ao direito que o autor dizia ter antes da conduta contra jus atribuída ao réu e a segunda, justamente a situação de violação ou ameaça do direito que decorre dessa alegada conduta.

O fundamental é que os fatos sejam alegados na inicial da forma mais clara e concludente possível para que o juiz possa deles perceber se constituem direito do autor. Depois, se invoca a regra de direito, se se quiser. A não-invocação da regra jurídica, ou a sua invocação equivocada, não gera nenhuma consequência de natureza processual. A qualificação jurídica, a subsunção do fato à norma é atividade do juiz. A ele se dão aos fatos; ele dá o direito (da mihi factum, dabo tibi jus; juria novit curia). O máximo (e grave para o advogado, certamente) que pode acontecer na hipótese de haver equivocada categorização dos fatos narrados é um dano à imagem do advogado que elaborou a peça inicial, o qual, dependendo da natureza do equívoco, pode passar a impressão de ser profissional pouco zeloso, ou pouco atento, às coisas do Direito.

No inciso IV do artigo 282, está indicada a necessidade de formular o pedido com suas especificações. Ao estudo desse requisito será destinada uma seção apartada, logo a seguir. Por ora, basta afirmar que (i) o Código ajustou-se à distinção entre relação jurídica processual, envolvendo processo e procedimento, e relação jurídica de direito material, envolvendo o libelo. É de prestar atenção que, com relação ao libelo, ao bem da vida que se quer obter, o legislador mencionou pedido. Já no inciso VII, que cuida da citação do réu, necessária ao desenvolvimento da relação processual, o legislador preferiu utilizar o termo requerimento; (ii) o pedido há ser uma consequência lógica dos fatos e fundamentos jurídicos que foram apresentados, sob pena de a petição inicial não ser considerada apta a gerar uma demanda.

No inciso V, fala-se do valor da causa, que tem importância tanto com relação à fixação das custas, quanto com relação à escolha do procedimento. Alguns juízes também levam em consideração o valor da causa para, no fim do processo, fixar a verba honorária do advogado da parte vencedora, embora esse critério não esteja consagrado no artigo 20 do Código de Processo Civil.


O certo é que, por exigência do artigo 258 do Código de Processo Civil, a toda causa será atribuído um valor certo, ainda que não tenha conteúdo econômico imediato (mesmo em ação declaratória, em ação cautelar, em causas conduzidas pela Defensoria Pública, sob o pálio da justiça gratuita). O valor da causa deve refletir o benefício econômico almejado pela parte e deve ser fixado na forma dos arts. 259 e 260 do Código de Processo Civil.

Com a criação dos juizados especiais, o valor da causa passou a ter uma importância ainda mais significativa. Nas ações de competência da justiça federal, se o valor da causa for igual ou inferior a 60 salários mínimos, o seu ajuizamento será efetuado obrigatoriamente perante o Juizado Especial Federal (trata-se de competência absoluta), salvo se a hipótese couber nas exceções previstas na própria Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, que instituiu esses juizados.

Se não se tratar de causa de competência da Justiça Federal, e o seu valor for inferior a 40 salários mínimos, a parte pode optar entre o Juizado Cível Comum e o Juizado Especial. É que a competência dos juizados cíveis não é absoluta, diferentemente do que ocorre com o juizado especial federal.

O inciso VI do artigo 282 determina que o autor indique as provas com que pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados. É dizer, desde o início da vigência deste Código (1974), não há mais possibilidade de fazer-se, na petição inicial, o protesto genérico por provas, que se fazia sob a égide do Código de 1939. Na prática, entretanto, o Poder Judiciário tem sido extremamente condescendente, afirmando que não há essa necessidade de indicar a prova logo no primeiro momento, pois há várias outras oportunidades para fazê-lo. A regra, assim, e lamentavelmente, é quase letra morta, não mais do que mera proposição sintática dentro do Código, sem nenhuma força normativa. Mais lamentável, ainda, é o fato de que, em decorrência disso, instituiu-se o vezo judicial de proferir despacho, logo após o encerramento da fase postulatória, determinando que as partes especifiquem as provas que ainda pretendem produzir, indicando desde logo a sua finalidade sob pena de indeferimento.

Ora, essa providência já deve ter sido adotada na petição inicial (e na contestação). Despacho dessa natureza não tem utilidade alguma, não encontra amparo no Código de Processo Civil, e sua consequência imediata e direta é simplesmente retardar a entrega da prestação jurisdicional, já de si morosa.

No inciso VII, impõe-se a necessidade de que a parte requeira a citação (in jus vocatio) do réu. Vale registrar que, quando se tratar de pessoa jurídica, e sempre que possível, deve ser indicado o nome de quem deve receber a citação. É claro que, muitas vezes, isso não é possível (sobretudo nos grandes conglomerados empresariais). Se for esse o caso, basta requerer a citação na pessoa do representante legal (a rigor, presentante).

Além desses requisitos, há de ser observada a regra do artigo 39 do CPC, que dispõe que o advogado e a parte (esta, quando postular em causa própria) devem declarar na petição inicial o endereço em que receberá a intimação e comunicar qualquer alteração de endereço que ocorra na fluência do processo.

Se da inicial não constar esse requisito, o juiz mandará suprir a falta no prazo de 48 horas, sob pena de indeferimento da inicial. Se não comunicar a mudança de endereço, presumem-se válidas as intimações enviadas ao endereço antigo, por força do que dispõe o parágrafo único do artigo 39 e o parágrafo único do artigo 238, do Código de Processo Civil.

Além do cumprimento de todos esses requisitos, o artigo 283 determina que à petição inicial sejam juntados os documentos indispensáveis à propositura da ação. A doutrina assevera que além desses documentos indispensáveis, também os documentos substanciais devem ser juntados com a inicial. É necessário fazer alguma investigação. Somente são indispensáveis aqueles documentos cuja eventual ausência possa ensejar a extinção do processo sem julgamento do mérito com base no artigo 267, I, do Código de Processo Civil: são os documentos que constituem pressuposto da demanda. Os substanciais são aqueles assim considerados porque sem eles o ato material não existe. Ambos, para os fins do aviamento da petição inicial, devem ser considerados indispensáveis.

A esse respeito, preleciona Calmon de Passos, que a indispensabilidade do documento

"pode derivar da circunstância de que sem ele não há a pretensão deduzida em juízo. Isso porque ele é da substância do ato, ou dele deriva a especialidade do procedimento.
............................................
Mas, ao lado de documentos dessa natureza, outros existem que não são da substância do ato jurídico, mas apenas em relação a ele, ou em relação aos fatos simples, têm força probante. Esses documentos não são indispensáveis para a prova do fundamento fático da demanda, que pode vir a ser aceito como verdadeiro pelo magistrado, com apoio em provas de outra natureza: testemunhal, pericial, indiciária, etc."

É dizer, documentos indispensáveis são aqueles ou que são pressupostos da ação (como na ação de divórcio, há de estar presente a certidão de casamento) ou os considerados ad solemnitatem, como, v.g., a prova da propriedade nas ações de domínio; não assim os ad probationem.

Esse entendimento é placitado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Com efeito, no julgamento da Apelação Cível nº 46.633, a Quinta Turma Cível, relator o Desembargador Waldir Leôncio Júnior, adotou-o, em acórdão assim ementado:

O autor não necessita juntar com a petição inicial todos os documentos relativos à prova dos fatos que alegou. Indispensável é apenas que instrua a inicial com os documentos fundamentais do pedido ajuizado. Inteligência do artigo 283 do CPC. Não sendo o caso de indeferimento da inicial com fulcro no artigo 284 do CPC porque os documentos necessários e os indispensáveis da propositura da demanda vieram com a inicial, cassa-se a sentença para que o processo siga em seus ulteriores termos.

Não discrepa o Superior Tribunal de Justiça

"Somente os documentos tidos como pressupostos da causa é que devem acompanhar a inicial e a defesa... (RSTJ 14/359). Isto é: só os documentos indispensáveis (RSTJ 37/390)
...........................................
Não se tratando de documentos indispensáveis à propositura da ação, admite-se possam ser juntados fora da oportunidade prevista no artigo 276 [redação antiga] do CPC, desde que disso não resulte prejuízo para a defesa da outra parte (STJ 3a. Turma, Resp. 16. 957-SP, rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJU. 13.4.92, pag. 4.998), apud Theotônio Negrão, nota 1 ao artigo 397, 28º ed., pág. 316."

Se efetivamente tratar-se de documentos indispensáveis e esses não tiverem sido juntados à inicial, o magistrado deverá determinar que a parte a emende ou complete no prazo de dez dias sob pena de indeferimento.

Com relação aos documentos não indispensáveis (todos os outros que não caibam na conceituação antes expendida), se não tiverem sido juntados, certamente que não se poderá cogitar de indeferimento da petição inicial. Consequências da falta de juntada, se as houvesse, seriam de outra ordem. Poder-se-ia pensar em preclusão, mas a jurisprudência vem se firmando em sentido contrário. De fato, tem sido afirmado que os documentos ditos não indispensáveis podem ser juntados a qualquer tempo no processo , desde que ouvida a outra parte, e desde que não exista espírito de ocultação e tentativa de surpreender o juízo.

Em certas situações, não se tem o documento em mãos na hora da distribuição da petição inicial, ou porque o autor a ele não tem acesso, ou porque está em poder do réu, ou porque o documento é relativo a um fato superveniente. Em situações que tais, o direito haverá de dar solução específica. Na hipótese de fato superveniente, tanto o autor como o réu podem, posteriormente, requerer a juntada do documento. Se o documento estiver em alguma repartição pública, o juiz poderá requisitá-lo, na forma do artigo 397 do CPC. Se se encontrar em poder do réu ou terceiro, age-se na forma do artigo 355 e 360 do Código de Processo Civil, suscitando, respectivamente um incidente processual de exibição de documento ou um processo incidental de exibição de documento. Há, também, a possibilidade da propositura de uma ação de exibição de documento com fundamento no artigo 844 e 845 do Código de Processo Civil, de natureza preparatória para que sejam obtidos documentos necessários para que depois se avie a ação principal.


I.4 Pedido



O pedido constitui o objeto da ação, ou o bem jurídico que o autor espera ver protegido ao invocar a prestação da atividade jurisdicional do Estado. Como já se disse alhures, o pedido, em face do princípio da congruência, faz com que a sentença seja por ele limitada. Algumas vezes, somente na hora do cumprimento da sentença é que se percebe a importância da completa e bem feita especificação do pedido . Nesse sentido, vale recordar antiga lição de todos os professores de Teoria Geral do Processo. O pedido é o projeto de sentença do ponto de vista do autor. Na petição inicial está a perspectiva da sentença do autor. A ele fica o juiz vinculado, tanto do ponto de vista qualitativo como do ponto de vista quantitativo, não podendo, ainda que entenda que o autor tem direito, dar-lhe coisa diversa da que foi pedida, nem em maior quantidade.

A doutrina distingue entre pedido mediato e pedido imediato. O pedido mediato é o bem da vida que se busca obter. Pedido imediato é a tutela jurisdicional pretendida: às vezes, o autor pretende uma simples certificação, declaração, ou, mais do que isso, a constituição ou desconstituição (constituição negativa) de determinada relação jurídica, ou a condenação do réu ao cumprimento de uma obrigação, o que, inclusive, permite uma espécie de classificação das ações de conhecimento, em ação declaratória, constitutiva e condenatória. Há, com certeza, íntima conexão entre pedido mediato e pedido imediato. É que o pedido imediato é determinado por aquele (mediato), na medida em que, às vezes, somente uma única forma de tutela jurisdicional é capaz de dar o bem da vida vindicado em juízo.

Certeza e determinação do pedido. Sem embargo da dicção do artigo 286, o pedido deve ser certo e determinado, e não pedido certo ou determinado. O ou do texto legal não é disjuntivo, é copulativo.

Para a doutrina prevalecente , formular pedido determinado é fazê-lo indicando o bem da vida da forma mais precisa possível, extremando-o de quaisquer outros. Formular pedido certo é formular pedido que não deixa margem a dúvida quanto ao que se pretende, seja em termos de qualidade, seja em termos de extensão, seja em termos de quantidade. Em resumo, dessa conjugação, ter-se-á que o autor pediu o bem mais específico possível, só pode ser ele - excluído qualquer outro bem – com a qualidade X, na extensão Y, na quantidade Z.

Acreditamos que pedido certo é o pedido formulado de forma expressa, sem a utilização de formas vagas, genéricas e destituídas de sentido exato (por exemplo, lemos na petição inicial de uma ação de improbidade promovida por certo órgão do Ministério Público o pedido para que vários réus fossem condenados “nas penas do artigo XXX da Lei de Regência”. E o pedido deve ser expresso justamente porque não se admitem pedidos implícitos, ressalvadas as exceções indicadas no próprio Código de Processo Civil. Como consequência, para nós, a determinação do pedido engloba todas as características relativas à certeza e determinação indicadas nas anteriores lições doutrinárias.


I.4.1 Pedido Genérico


Há situações, entretanto, nas quais ainda não é possível ao autor (ao momento da propositura da ação) formular pedido determinado. A indeterminação pode acontecer somente a quanto se deve (quantum debeatur), pode ser determinado. O que é devido (an debeatur) tem que ser determinado. Nessas circunstâncias, o Código de Processo Civil autoriza o autor a formular o chamado pedido genérico.

Segundo o Código de Processo Civil, há três circunstâncias em que o autor pode formular pedido genérico: I – nas ações universais, se o autor não puder individuar na petição os bens demandados; II – quando não for possível determinar, de modo definitivo, as consequências do ato ou fato ilícito; e III quando a determinação do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu.

Como o nome indica, as ações universais, indicadas no primeiro inciso, têm pertinência com aquelas ações em que a pretensão recai sobre uma universalidade de fato ou de direito. Constitui universalidade de fato, diz o artigo 90 do novo Código Civil brasileiro, a pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária (um rebanho, os livros de uma biblioteca, etc). Já universalidade de direito, parara o Código Civil, artigo 91, é o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico. Os direitos hereditários, por exemplo, que possam ensejar uma ação de petição de herança por exemplo. É importante lembrar que, embora se trate de ações universais, o autor somente poderá lançar mão de pedido genérico se não puder, ou ainda não puder, discriminar os bens que constituem a universalidade. Se já dispuser dos elementos necessários, deverá formular pedido determinado.

No que concerne às hipóteses do inciso II, “quando não for possível determinar, de modo definitivo as consequências do ato ou fato ilícito”, essas ocorrem em profusão. É mesmo usual que nas ações de reparação de dano o autor, ao aviar a petição inicial ainda não possa dimensionar toda a extensão dos prejuízos causados, circunstância em que formulará pedido genérico de condenação do réu a ressarcir os danos que causou. Se o autor for vencedor na demanda, apurar-se-á o quantum debeatur na fase de liquidação de sentença.

A hipótese do inciso III não envolve nenhuma espécie de dificuldade. A determinação do valor da condenação depende de ato que deve ser praticado pelo réu. O exemplo típico é o da ação de prestação de contas.


1.4.2 Cumulação de pedidos

Há cumulação quando o autor na mesma relação jurídica processual, lançando mão da mesma ação processual, formula mais de um pedido de natureza substancial. Diz-se também, cumulação de ações (certamente ações de direito material) cumulação de demandas ou cumulação objetiva (em contraposição a cumulação subjetiva, que tem pertinência com a formação de litisconsórcio).

Convém, antes de estudar a matéria, deixar claro que cumulação de pedidos e concurso de pedidos são coisas diversas. No concurso, diversamente do que ocorre na cumulação, há um só pedido (formalmente único) porque basta uma resposta estatal, mas o autor se vale de mais de um fundamento, mais de uma causa de pedir, cada uma das quais bastante em si para autorizar o magistrado a conceder o bem da vida perseguido pelo autor. Por exemplo, o autor pode pedir a separação judicial alegando (i) doença mental grave do cônjuge, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de dois anos, a enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável; (ii) adultério; (iii) tentativa de morte; (iv) conduta desonrosa. Cada um desses fundamentos, sozinho, se provado no curso da instrução processual é capaz de gerar como consequência a decretação da separação judicial. A isso se chama concurso de pedido, ou concurso objetivo.

Voltando ao exame da cumulação: não há consenso doutrinário sobre a melhor maneira de estudar a cumulação de pedidos, nem há uniformidade de nomenclatura. Entende-se, porém, que é de bom alvitre separar-se a cumulação própria da cumulação imprópria. Na cumulação própria, o autor formula realmente dois pedidos, e quer que o Judiciário atenda a ambos. São dois, portanto, os bens da vida buscados. Na cumulação imprópria, embora o autor formule mais de um pedido, ele realmente só quer receber um. Basta um para que a lide seja solucionada.

A cumulação própria pode ser simples ou sucessiva. Na cumulação simples, o autor formula dois pedidos, que podem ser absolutamente independentes entre si, na forma preconizada pelo artigo 292 do Código de Processo Civil, e desde que atendidos os requisitos ali estabelecidos. Por exemplo, contra o mesmo réu, o autor formula um pedido de cobrança de dívida decorrente de um contrato de mútuo e outra cobrança decorrente da prestação de serviços profissionais de consultoria. Esses dois pedidos poderiam ter ensejado a propositura de duas ações independentes, que nem sequer seriam conexas entre si, mas o autor lançou mão do artigo 292.

Na cumulação sucessiva, ocorre uma espécie de prejudicialidade entre os pedidos. O autor formula dois pedidos e quer obter a proteção jurisdicional em relação aos dois (por isso cumulação própria); todavia, o segundo pedido somente será exitoso se o autor obtiver êxito com relação ao primeiro. Por exemplo, reconhecimento de paternidade cumulado com petição de herança; ou reconhecimento de paternidade cumulado com prestação de alimentos. Nas duas hipóteses, o segundo pedido somente poderá ser examinado e provido se o primeiro pedido houver sido acolhido.

É bom esclarecer que essa espécie de cumulação sucessiva, assim batizada pela doutrina, não coincide com a expressão sucessiva, escolhida pelo Código de Processo Civil para significar outra coisa. De fato, o artigo 289 utiliza a expressão “pedido em ordem sucessiva para significar” uma modalidade de cumulação imprópria como passa a ser visto.

Na cumulação imprópria, como já foi estudado anteriormente, formula-se mais de um pedido, embora a lide possa ser composta com o deferimento de apenas um deles. A cumulação imprópria pode ser alternativa ou eventual. Na cumulação alternativa stricto sensu o autor formula mais de um pedido, sem ordem de preferência nenhuma, deixando ao alvedrio do magistrado a solução da demanda, da forma que entenda mais justa, mais conforme ao direito.

Não cabe confundir cumulação alternativa com o pedido alternativo de que cogita o artigo 288 do Código de Processo Civil . Na cumulação alternativa, o autor formula mais de um pedido para que o juiz delibere, sobre como deve ser atendido o direito do autor. Já quando se tratar de pedido alternativo (quando, pela natureza da obrigação, o devedor puder cumprir a prestação de mais de um modo) o autor formulará um único pedido.

Na cumulação eventual, também, chamada subsidiária, o autor formula pedidos em ordem de preferência. Ele quer que seja atendido o primeiro pedido formulado. Se isso não for possível (artigo 288 do CPC), passa o magistrado ao exame do segundo, do terceiro e assim sucessivamente.

De observar uma distinção prática interessante, apontada por Cândido Rangel Dinamarco: quando se trata de cumulação alternativa, não importa qual dos pedidos foi atendido, porque não se estabeleceu ordem de preferência. Basta que um dos pedidos tenha sido atendido para que se considere a demanda totalmente procedente. Em sentido contrário, adverte Cássio Scarpinella Bueno , se se tratar de cumulação eventual ou subsidiária, a concessão do pedido fora da ordem de preferência indicada na petição inicial pode ensanchar o exercício do recurso cabível para que o tribunal aprecie o primeiro pedido formulado. Na situação anterior, i.e., em que não foi estabelecida ordem de preferência, não terá o autor interesse em recorrer.


1.4.3 Pedido cominatório

O Código de processo civil dispõe no artigo 287 que se o autor pedir que seja imposta ao réu a abstenção da prática de algum ato, tolerar alguma atividade, prestar ato ou entregar coisa, poderá requerer cominação de pena pecuniária para o caso de descumprimento da sentença ou da decisão antecipatória de tutela (arts. 461, § 4o, e 461-A).

O preceito cominatório é essencialmente um instrumento posto à disposição do Direito Processual por meio do qual o Judiciário pratica atos de coação para que o sujeito passivo da relação jurídica substancial cumpra a obrigação de fazer ou não fazer. Caracteriza-se ele pelo fato de possibilitar ao autor a obtenção de um provimento (sem que haja necessariamente prévia oitiva do adversário) para que o réu faça ou deixe de fazer alguma coisa, sob pena de incorrer em certa sanção pecuniária, que reverterá em benefício do adversário. Esse instituto, que assimilamos do direito francês, visa a dar maior eficácia à atividade jurisdicional que, por força da forte influência do iluminismo, não admitia que alguém pudesse ser constrangido pelo Estado-Juiz a fazer algo contra sua vontade. Assim, quando, na França, se discutia sobre o cumprimento de um fazer ou um não fazer, ou bem se concebia uma técnica alternativa ou a decisão não tinha meios de ser cumprida. Daí a ideação das astreintes para solução do problema.

É de crer-se que, com a nova redação do disposto no artigo 287 c/c o artigo 461 e seus parágrafos, o legislador tenha pretendido lançar uma pá de cal em antiga, tortuosa e interminável discussão doutrinária, ao dispor que nas ações que tenham por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz poderá, tanto na hipótese de antecipação de tutela quanto na de procedência do pedido reconhecida por sentença, impor multa diária ao réu independentemente de pedido do autor — se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para cumprimento do preceito.

Vale anotar que, até a edição da Lei nº 8.952, de 1994, e em face do que dispunha o artigo 287 c/c artigo 644, as posições doutrinárias eram inconciliáveis. Parcela, da doutrina entendia que, se se tratasse de obrigação de não fazer e de fazer personalíssima (infungível), se o autor não pedisse a aplicação do preceito cominatório, deveria ser indeferida a inicial , justamente porque, não pedida, não poderia o juiz concedê-la de ofício, com o que qualquer provimento jurisdicional seria inapto para realizar o eventual direito do autor. Explica-se: para integrar o direito do autor, para executar uma sentença condenatória, vale-se o Estado-juiz de meios de coação e de sub-rogação. Através da primeira modalidade, constrange o executado para que ele realize o direito do credor (daí, a ameaça da imposição de multa diária ao devedor se ele não realizar a prestação no prazo que lhe for assinado). Por via da segunda, meio de sub-rogação, o próprio Estado-juiz realiza a prestação, independentemente de qualquer atividade do devedor, embora a suas expensas (busca e apreensão de bens, penhora etc.).

Deve ser percebido que, quando se trata de obrigação de fazer infungível, não é possível a utilização de meios de sub-rogação. Resta, em situações que tais, apenas o recurso aos meios de coação. Se não pedida, nessas circunstâncias, a multa, o Estado-Juiz, segundo entende Calmon de Passos, fica de mãos atadas e não pode realizar a total entrega da prestação jurisdicional. No mesmo sentido é o magistério de Araken de Assis:

É razoável a interpretação que compatibiliza os artigos 287 e 644 no sentido de que o pedido de multa é obrigatório para a execução específica de obrigação de fazer ou de não fazer infungível — levando a sua ausência a um inevitável indeferimento da inicial, ressalvada a hipótese de existir pedido sucessivo de condenação em perdas e danos, caso em que o crédito se demudaria em quantia certa já no título — e é facultativo se o fazer é fungível porque existe o meio executório da transformação."

Agora, entretanto, em face da dicção do § 4º do artigo 461, não mais cabe discutir se se trata se obrigação de fazer fungível ou infungível, nem se pode mais cogitar de indeferimento da inicial por inépcia se não requerida a imposição das astreintes. Impô-las-á o juiz de ofício.

O legislador inovou com relação ao tema, também no que concerne ao âmbito de aplicação das astreintes. Com efeito, sempre se concebeu esse instituo vinculando-o às obrigações de fazer e não fazer. Havia até Súmula do Supremo Tribunal Federal (súmula nº 500), explicitando que não cabia a aplicação do preceito cominatória quando se tratasse de obrigação de dar. Pois bem, o novo artigo 461-A é expresso ao invocar, no seu § 3º a aplicação dos §§ 1º ao º do artigo 461, dentre os quais se encontra o que prevê o preceito cominatório.


I.4.4 Pedido de antecipação de tutela
[Não lançamos, aqui, a possível nova regência, do projeto do Código de Processo Civil, que ainda se encontra sujeito a toda sorte de discussão. Não se lhe sabe o destino, até o momento em que escrevemos este texto.]



I.4.4.1 Considerações Gerais

Nos primórdios do direito romano, o juiz somente poderia dizer quem tinha direito no ato sentencial. Há uma série de justificativas históricas para isso, a começar pelo fato de que o juiz era privado e somente dizia quem tinha razão. Não havia execução estatal nos dois primeiros períodos do Direito Romano (período das ações da lei e período formulário). Em um segundo momento, o estado monopolizou o exercício da força: só se praticavam atos de entrega do bem da vida depois do ato sentencial. Na França, antes da revolução francesa, os cargos dos magistrados eram comprados, o que gerava suspeita sobre a imparcialidade dos membros Judiciário. Daí que, justamente em face dessa suspeição, procrastinava-se ao máximo a prática de atos executivos por parte desses juízes.

O processo brasileiro tentava repudiar, como regra geral, medidas de caráter satisfativo, executivo, até por força dessa herança a histórica. Vale uma digressão a esse respeito.

No processo de conhecimento o jurisdicionado visa à obtenção de uma norma jurídica individual. Na execução, faz-se o caminho inverso: parte-se da norma individual para o mundo físico para realizar o direito. No processo cautelar, busca-se assegurar a utilidade de um processo de conhecimento e de execução (arts. 796/ 889 do Código de Processo Civil). Nesse último, pressupõe-se, no mais das vezes, a concessão de uma medida liminar, que já antecipa aquilo que, em tese, o que o requerente irá obter com a sentença de procedência proferida no processo cautelar.

Isso não havia no procedimento ordinário e nele somente foi inserido nos idos de 1994. Em sede de procedimentos especiais já era instituto conhecido. Demais disso, não eram raros os juízes (muitos dos quais não se criam adeptos do direito alternativo) que deferiam liminares de evidente cunho antecipatório — e às vezes irreversivelmente satisfativo —, por não terem assimilado, em 20 anos de vigência do Código de Processo Civil, a real dimensão do processo cautelar, previsto no Livro III do CPC.

Com efeito, a tutela antecipatória urgente sempre foi prestada sob o manto protetor do processo cautelar (mesmo quando não devia sê-lo). Agora, parece mais fácil identificar essas duas situações: a tutela cautelar, prevista no Livro III do CPC (embora lá remanesçam algumas tutelas antecipatórias), cuja característica maior é a instrumentalidade, não-satisfativa; e a tutela de urgência, de natureza substancial, de que cogitam os arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil.

A uma primeira análise, a tendência que se verifica é a de identificar as disposições desse artigo 273 com um processo de cognição sumária , como forma de atribuir maior efetividade à prestação da atividade jurisdicional.

A cognição sumária, que parte da doutrina quer encontrar no novo artigo 273, se opõe aos processos a que a doutrina sói chamar de processos de investigação plenária, que não permitem que o juiz profira decisões antecipatórias de tutela.

Há várias técnicas de sumarização do processo: uma, concentrando os atos em audiência, eliminando passos dentro do procedimento, a que se chama sumariedade formal, características do procedimento sumário indeterminado , com o que se pode chamá-lo de plenário rápido, como o faz Milton Sanseverino ; outra, em que se limita o direito material em discussão e outra em que são limitados os meios probatórios (mandado de segurança, exempli gratia). Nas duas últimas, ocorre a diminuição da atividade cognitiva do juiz, com o que a sumariedade, aí, é substancial.

O que se preconiza, porém, no artigo 273, é coisa diferente. Nos procedimentos de cognição sumária, stricto sensu, a nosso ver, o juiz decide, em caráter definitivo, da forma mais expedita possível, por força das técnicas de sumarização do processo aplicadas pelo legislador. Aqui, na hipótese sub examine, não. Trata-se sempre de processo de cognição plenária (mesmo que se trate de cognição plenária rápida, quando o procedimento seguir as disposições do artigo 275 do CPC). Deveras, realça o texto legal a precariedade da tutela concedida ao dispor que, concedida ou não a tutela, o processo prosseguirá até final julgamento.

Ora, se assim ocorre, então não se cuida, como poderia parecer à primeira vista, de processo de cognição sumária. Poder-se-ia cogitar de antecipação de tutela com base em mero juízo de verossimilhança, com o que o nosso Direito estaria a afastar-se do tronco romano, que é sua base e origem e que, mercê da crença na ordinariedade do processo, não admite a emissão de sentença com base nesses juízos precários.

Ocorre que a disposição legal, caput, menciona, ao lado da verossimilhança, a existência de prova inequívoca. Ora, se se trata de prova inequívoca, sem equívoco, sem contraste, não há cogitar de mera verossimilhança, qualidade de verossímil, que pode vir a ser considerado verdadeiro, que tem foros de coisa razoável. Se a prova é inequívoca, então o fato é mais do que verossímil, o que, ou nos afasta da hipótese aventada no parágrafo anterior, ou — o que é mais provável — demonstra a existência de contradição entre esses dois termos, que somente se resolverá se o inequívoco for considerado como meramente convincente, como acentuava o Anteprojeto de 1985 que, demais disto, não se referia a juízo de verossimilhança. Ou, então, o caput sugere ser possível ao juiz, mesmo havendo prova inequívoca, que é o mais, não se convencer do menos, que é a verossimilhança. O absurdo é palmar!

Para que seja deferida a tutela antecipatória, além da prova inequívoca, deve, disjuntivamente: a) haver fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, isto é, o periculum in mora, que caracteriza a chamada tutela de urgência; b) ficar caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito procrastinatório do réu. Aqui, na hipótese b, não se trata de tutela de urgência e nem se faz mister a existência do perigo na demora da prestação jurisdicional. Basta que se caracterize o abuso do direito de defesa (e parece que o intuito procrastinatório nele poderia sempre estar subsumido), para que o julgador, diante da prova inequívoca, possa antecipar a tutela requerida.

Convém considerar que, na primeira hipótese, periculum in mora, parece plausível que o julgador, aforada a inicial, e diante da prova inequívoca trazida com a petição inicial, já antecipe a tutela, à semelhança do que acontece nas ações de mandado de segurança. Não se faz mister para tanto a citação do réu ; não o exige a lei. Na hipótese do inciso II, diversamente, só é possível cogitar-se da existência de abuso de direito de defesa ou de propósito procrastinatório, após estabelecida relação processual relativamente ao réu, isto é, após a sua citação.

Claro está que a antecipação da tutela deve ser suficientemente motivada. O juiz dará de modo claro e preciso as razões de seu convencimento. A princípio, a dicção do parágrafo primeiro poderia parecer mera superfetação, em face do que dispõem o artigo 93, IX, da Constituição e o artigo 165, do Código de Processo Civil. A nosso ver, contudo, bem se houve o legislador ao reforçar o comando impondo ao juiz o dever de motivar.

É que há certo vezo em parcela do Judiciário (felizmente não se trata da maioria) em conceder tutelas de urgência em decisões padronizadas, mais ou menos com os seguintes dizeres: presentes os pressupostos, defiro a liminar. Se isso ocorria mesmo à ausência de texto autorizativo de antecipação de tutela, imagine-se agora.

Ora, isso não é motivar, não é dar as razões de seu convencimento. Deveras, é de comum ensinança em Direito que a decisão judicial há de ser a conclusão de um silogismo , cuja premissa maior é a lei, norma geral e abstrata, e cuja premissa menor é o fato. A motivação nada mais é do que a prática de subsumir o fato à norma (no caso, demonstrar, ainda que de modo conciso, a existência da prova inequívoca e as razões de recear dano irreparável ou de difícil reparação, ou o abuso de direito, ou, ainda, o intuito procrastinatório). Ou seja, deve o julgador indicar quais fatos narrados na inicial indicam essas circunstâncias e por que se viu inclinado a crer na narração desses fatos, na hipótese do inciso I, ou quais fatos posteriores à propositura da ação indicam o abuso do direito de defesa ou o intuito procrastinatório.

Importante observar que, como a tutela é antecipada sempre a título precário — visto como o processo prossegue até final julgamento —, depender-se-á sempre do mais absoluto discernimento do juiz a fim de que não seja concedida tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. Aqui, a tendência doutrinária é admitir que a irreversibilidade de que se cuida não tem pertinência com os efeitos fáticos da decisão e sim com os seus efeitos normativos, sob pena de restar inviabilizada a prestação da tutela de urgência. Em outras palavras, e à guisa de exemplo, os alimentos provisionais, pela própria natureza, são, no mundo dos fatos, irreversíveis; nem por isso o é a decisão que os deferiu.

Parece que norte seguro para o deferimento será a aferição dos valores em jogo. Qual o dano maior? A dação de uma tutela irreversível poderá gerar, para o réu, um dano superior àquele que o autor sofrerá se a tutela não for concedida? A resposta a essa indagação é que deverá indicar o posicionamento do julgador. A esse respeito, sábia a dicção do Código de Processo Civil de Portugal, que ao cuidar do processo cautelar, dispôs, in verbis:

Artigo 387

1 - A providência é decretada, desde que haja probabilidade séria da existência do direito e mostre suficientemente fundado o receio de sua lesão.

2 – A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo resultante para o requerido exceda o dano que com ela o pretendente quer evitar.



A doutrina e a jurisprudência brasileiras vêm batizando esse exame, se presente a hipótese do final do nº 2, de periculum in mora inverso, para significar que perigo existe é para o requerido, se a concessão liminar for deferida.



1.4.4.2 Antecipação de tutela contra o Poder Público



Convém dizer uma palavra a respeito da possibilidade de antecipação de tutela contra a União, Estado e Município. Da sistemática processual a que se submetem as ações contra o Poder Público, regidas pelo Código de Processo Civil, pareceria decorrer a inviabilidade tornam inviável a antecipação da tutela. Basta atentar para o fato de que, conforme disposto no artigo 475 do Código de Processo Civil, está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal a sentença proferida contra a União o Estado e o Município.

O reexame pelo Tribunal da matéria decidida no primeiro grau de jurisdição, muito mais do que um recurso obrigatório, é condição integrativa do decisum. Cuida-se, na espécie, de duplo grau de jurisdição obrigatório, chamado anteriormente, e com pouca precisão técnica, de recurso ex officio.

Esse recurso, de origem nitidamente lusitana, foi acolhido no Direito brasileiro a partir da Lei de 04.10.1831, que impôs ao juiz a obrigação de apelar da sentença proferida contra a Fazenda Pública, se excedesse sua alçada.

Desde então, o objetivo do impropriamente chamado recurso de ofício é, em atenção à natureza da causa, ou em atenção às pessoas que dela participam, impor a revisão obrigatória do decisum, como condição integrativa essencial.

Quer isto significar que o duplo grau obrigatório, mais do que recurso, é ato jurisdicional complexo, indispensável para a validade e eficácia da sentença, que não vigerá por si mesma. Não produzirá efeitos enquanto não apreciada pelo órgão ad quem.

A falta de executividade da sentença é-lhe, pois, ínsita, se ainda não apreciada pelo órgão superior; falta-lhe ainda, vida própria, é ato sem condição implementada. Se assim se dá com o provimento jurisdicional máximo que é a sentença, a fortiori deve ocorrer com o provimento que antecipa a tutela que, como o próprio nome indica, nada mais é do que a entrega da tutela substancial requerida, antes da prolação da sentença de mérito. Aliás, como acentua Calmon de Passos, ao comentar o instituto, o objetivo precípuo da antecipação da tutela é justamente impedir a eficácia suspensiva do recurso de apelação que venha a ser interposto . E isto é impossível em face do reexame obrigatório que, como visto, possui ínsita a suspensividade, até por força da divisão funcional de competência que se estabelece nas ações ordinárias em que a União é parte.

Outra ordem de argumentos pode conduzir ao mesmo resultado, relativamente a certo número de pretensões. Realmente, parece lícito entender que a tutela antecipatória de que se cuida não poderia atingir as relações jurídicas hoje disciplinadas pela Lei nº 8.437, de 30.06. 92.

Deveras, a vigência pessoal da lei geral não vai a ponto de vulnerar a lex specialis que dispõe não ser cabível, medida liminar contra atos do poder público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança em virtude de vedação legal. É dizer, onde não for possível a concessão de liminar em mandado de segurança não será possível a antecipação da tutela porque isto seria uma forma transversa de obter resultado não admitido pelo direito.

Implica dizer que, ou por um raciocínio ou por outro, não seria possível conceder-se a tutela antecipatória, sendo que, pela primeira linha de argumento, forram-se à antecipação de tutela a União, os Estados e os Municípios (referidos no artigo 475) e, pela segunda, foram-se, além destas, também as suas autarquias.

A jurisprudência, entretanto, se inclinou no sentido contrário e passou a conceder indiscriminadamente antecipação de tutela contra o Poder Público. Daí ter havido a necessidade da edição da Lei nº 9.494, de 1997, que, apesar de não haver impedido a concessão da antecipação de tutela contra o poder público, limitou fortemente as hipóteses em que isso é possível.

1.4.4.3 Fungibilidade entre antecipação de tutela e tutela cautelar

Quando do advento do Código de Processo Civil de 1973, o processo cautelar, fosse preparatório, fosse incidental, sempre guardava autonomia em relação ao processo principal. Isso não mudou quando, em 1994, se instituiu o pedido de antecipação de tutela no âmbito dos procedimentos ordinários.

Não eram raras as vezes, entretanto, após 1995, que advogados, por ignorância, má-fé (ou porque a hipótese ensejava verdadeira dúvida objetiva) sob o título antecipação de tutela, formulavam pedido de natureza nitidamente cautelar. A prática equivocada acabou provocando o legislador que fez acrescentar um § 7º ao artigo 273, com o seguinte teor.

7o Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.

Não obstante os termos claros do fragmento legal doutrina entende que se trata de uma via de mão dupla: tanto o autor pode pedir uma tutela antecipada quando a hipótese for de cautelar; quanto poderá pedir uma tutela cautelar quando a hipótese for de antecipação de tutela. Nas duas hipóteses o juiz poderá aplicar o princípio da fungibilidade e dar a proteção estatal, desde que presentes os respectivos requisitos autorizadores.

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