domingo, 17 de junho de 2012

Teoria Geral da Prova

Primeiras achegas sobre a prova

Encerrada a fase postulatória no processo de conhecimento, faz-se necessário, inúmeras vezes, ingressar numa outra fase, chamada de instrução, durante a qual será colhido o material necessário à formação do convencimento do magistrado, a fase de produção de prova, até porque é de todos sabido que, nos processos de cognição, caminha-se dos fatos alegados até a prolação da norma jurídica individual, chamada sentença, a ser proferida pelo juiz responsável pela direção da demanda. Não por outro motivo, desde os tempos mais remotos, são consagradas as formas narra mihi factum, dabo tibi jus e allegare nihil et allegatum non probatum paria sunt, significando que (i) cabe às partes indicar os fatos para que o juiz possa dar o direito e que (ii) não alegar e alegar e não provar são exatamente a mesma coisa. Deveras, em homenagem ao princípio dispositivo, cabe às partes no processo indicar os fatos (rectius, as versões sobre fatos) que sustentam a causa de pedir e o pedido que formulam — sobre os quais deve incidir a prova apta a firmar o convencimento do magistrado.

Provar consiste em buscar a demonstração de uma certeza para si ou para outrem. O conceito de certeza tem a ver com juízos de probabilidade exercidos por aquele a quem a prova se destina. O termo verdade que, em tese, poderia ser considerado na conceituação que intentamos fazer, acaba resvalando para a órbita da filosofia, a exigir profunda investigação que não cabe no exame que ora realizamos. Não consideramos adequado, também, no que concerne a uma teoria geral da prova, tratar profundamente do conceito de verossimilhança [1]. É que, no nosso entendimento (e sem embargo do disposto no art. 273 do Código de Processo Civil) verossimilhança, qualidade de verossímil, é o que parece verdadeiro, que não repugna à verdade. Verossímil é qualidade de uma narração que, por si mesma, e de acordo com os critérios comuns dos interlocutores, independentemente de qualquer prova, merece acolhimento da audiência. Habita, pois, em mundo diverso do mundo da probabilidade, daquilo que é provável ou está sendo provado.

Também não parece ser conveniente admitir que o magistrado, no processo, civil, conforma-se com a verdade formal enquanto que, no processo penal, há de buscar a verdade real. Esse discrímen, que ganhou foros de certeza científica durante largo período da história do Direito, há de ser repudiado de forma veemente. O que ocorre, isso sim, é que o processo há de ter um fim e, dada a necessidade prática que o Estado-juiz tem de dar uma resposta à provocação das partes, o legislador viu-se obrigado a sancionar a ausência da prova, que deveria ter sido realizada pela parte a quem o ônus foi atribuído, dando ganho de causa ao adversário.

A rigor, em direito, não se provam fatos. Provam-se alegações, versões sobre os fatos que supostamente ocorreram e que são importantes para o desate da causa. A expressão prova do fato, eventualmente doravante utilizada neste trabalho, deve ser entendida como prova da alegação sobre o fato, e sua utilização somente é compreendida como uma homenagem à brevidade. Vale um apontamento: diz-se que a prova pode incidir sobre direito, isso quando a parte alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário. A rigor não é bem isso. O que se prova é a alegação de que o teor do direito invocado é X ou Y, ou que o direito está (já está ou ainda está) em vigência.

Prova Judiciária é, assim, a tentativa de demonstrar ao julgador a certeza de determinada versão dos fatos, alinhados no processo como aptos a atribuir a uma das partes determinada consequência jurídica.

A doutrina do Direito ainda não se decidiu se prova é tema do direito processual ou do direito material. Embora a questão seja inçada de dificuldades, há de nossa parte pelo menos uma convicção: a de que as regras sobre os procedimentos destinados à realização da prova no processo hão de ser estudadas na órbita do Direito Processual. Assim, embora seja possível ao Direito substancial até a especificação e nominação das provas em direito admitidas e o estudo do princípio constitucional da proibição da prova ilícita, parece-nos claro que ao Direito Processual cabe a especificação das regras relativas à proposição, à admissão e à produção da prova no processo.

Para quem se prova?

Em Direito Processual, provamos para o magistrado porque é ele quem tem de ficar convencido de que as nossas alegações são as ‘verdadeiras’, de maneira a poder proferir uma sentença que, no seu entender, expresse a justiça do Direito em relação à demanda que lhe foi apresentada. Para que ele possa assim proceder, e dado que não lhe é permitido pronunciar o famoso non liquet, algumas vezes há de considerar as regras de divisão do ônus da prova como forma de decidir a quem deve atribuir o bem da vida disputado.

O que se prova?

É bem de ver que não é todo o fato que necessita ser provado ao juiz do feito. Devemos provar somente os fatos controvertidos e relevantes. Temos que provar aquilo que está no cerne da demanda e que é necessário para firmar o convencimento do juiz num determinado sentido. Dizendo de outra forma, as partes têm de produzir prova sobre as alegações constantes da causa petendi e que mereceram a contradita, a oposição da parte adversária, tornando-se, portanto, questões, dentro do conceito Carnelluttiano. Adicionalmente, podem e devem ser provados fatos que tenham sido suscitados por ocasião das providências preliminares de que cogitam os arts. 325/327 do Código de Processo Civil e também os fatos posteriore a que alude o art. 462 do mesmo codex.

Fora dessas situações, a prova, regra geral, é desnecessária e o magistrado há de ter a adequada prudência para rejeitar pedidos de produção de prova quando essa se mostre inútil, procrastinatória, etc. Não precisamos nem devemos provar, por exemplo, (i) o que já foi admitido como incontroverso pelo adversário, porque não impugnou o ponto na contestação, (ii) o fato admitido expressamente na contestação, e (iii) os fatos narrados na inicial se o réu não contestou (ressalvadas as exceções previstas no art. 302 do CPC, já estudadas em outro momento).Também não necessitam ser provados os chamados fatos notórios, quer dizer, aqueles fatos que são de conhecimento comum, corriqueiro, de certa sociedade, de certo estrato social, a quem interesse o julgamento da lide. São os chamados fatos de sabença geral. Não necessito, por exemplo, provar, que o mês de agosto, em Brasília-DF, é historicamente um período de escassas chuvas e de umidade relativa do ar, extremamente baixa, por que isso é de domínio público entre os residentes na região. Não se pode confundir, entretanto, fato notório nem com os boatos, fuxicos, eventualmente divulgados por transmissão oral, que não adquirem foros de verdade, nem, tampouco, com aqueles fatos que, ainda que divulgados com certa dose de estardalhaço na imprensa, nestes tempos de sociedade midiática, não possuem o registro da tradição do conhecimento do grupo social. Nesse sentido, cabe dizer, por exemplo, que não constitui fato notório, mesmo que intensamente divulgado pela imprensa, que tal ou qual político é ímprobo, conforme apurado por determinada comissão parlamentar de inquérito.

No mesmo disapasão, não necessitam ser provados os fatos em cujo favor milita a presunção legal de existência ou de veracidade. Necessário que se diga que presunção (e indício) não é prova. É, sim, um juízo crítico, ora feito pelo legislador, ora feito pelo julgador por meio do qual, de um fato conhecido, chega-se à demonstração da ocorrência ou autoria de um fato desconhecido. O famoso Regulamento 737 já dispunha sobre as presunções legais e sobre as presunções comuns, aduzindo que essas hão de ser aplicadas com comedimento, com parcimônia por parte do magistrado. É comum dividir as presunções em absolutas (juris et de jure) e relativas (juris tantum), as primeiras não admitem prova em sentido contrário, enquanto as segundas admitem.

Na outra ponta da escala, cujo grau máximo seria representado pelos fatos notórios, encontram-se os fatos impossíveis e absurdos. Também sobre eles não pode ou não deve incidir a prova, quando nada em homenagem ao velho apotegma: impossibilem allegans no auditur, que, em língua vernácula quer dizer, não se deve ouvir aquele que alega o impossível. Nesse sentido, e num exemplo absurdo, não se deve permitir a produção de prova relativa à alegação de que alguém reside no Sol. É bom ter presente, entretanto, que o conceito de impossível e absurdo há de ser considerado sempre em conformidade com o momento em que vive e se encontra certa sociedade relativamente ao seu estádio de desenvolvimento. Com efeito, na primeira metade do século passado, um magistrado dotado de bom senso não admitiria a prova requerida por uma parte que quisesse confirmar ter viajado até a lua, por tratar-se de afirmação estapafúrdia sobre fato de impossível ocorrência. Nos tempos atuais, a afirmação já não soa dessa maneira, dado que há alguns seres humanos que podem fazê-la sem estar incorrendo em equívoco ou ato de insanidade.

Momentos da prova


Como já indicado, há três momentos clássicos da prova: Proposição da prova, Admissão da prova, Produção da Prova. A prova é proposta, em regra (mas não exclusivamente), na petição inicial e na contestação; no momento previsto no artigo 331 do Código, também em regra, a prova é admitida ou indeferida. Depois disso, em vários outros momentos e de diversas maneiras, a prova é produzida. Evidente que esses três momentos clássicos são mais perceptíveis quando se trata de provas constituendas (pericial, testemunhal, etc.) e não perceptíveis primo ictu oculi, quando se trata de provas constituídas (documental). No primeiro caso, é fácil perceber que o autor, por exemplo, propõe a prova testemunhal já na petição inicial; a admissão dá-se no momento de que cogita o art. 331 do CPC e a produção somente acontece na audiência de instrução e julgamento, ressalvadas algumas exceções, relativas ao estado de saúde da testemunha ou relevância do cargo ou função que desempenhe. No segundo caso, de provas constituídas, do ponto de vista cronológico, o momento de proposição e o da produção confundem-se; somente do ponto de vista lógico é possível incrustar, entre eles, o momento da admissão. De fato, no momento que se propõe a prova documental já é o documento encartado (produzido) nos autos. Somente após isso é que o magistrado se manifesta a res peito da pretensão probatória.


Fontes de prova e meios de prova


Cabe aqui uma distinção entre fontes de prova e meios de prova. Fontes de prova são os fatos e situações alegados pelas partes na fase postulatória, ou até em momento posterior. São disponibilidade exclusiva das partes e sobre elas o juiz não tem nenhuma ingerência. Meios de prova constituem o conjunto dos instrumentos de que lança mão o magistrado para chegar à certeza jurídica. Assim, a testemunha é fonte de prova. O depoimento pessoal e meio de prova. O documento citado na petição inicial é fonte de prova. A perícia que sobre ele se realiza é meio de prova. Daí decorrem importantes consequências práticas: a parte não está obrigada a mencionar, no processo, determinada fonte de prova, uma pessoa, um documento, uma coisa, etc., mas, se o fizer, o magistrado estará habilitado a determinar que incidam sobre a fonte citada os meios de prova necessários a extração da certeza de que ele necessita para julgar a demanda.


Sistemas de avaliação de provas


Historicamente, são identificados três sistemas de avaliação das provas: (i) sistema da prova tarifada ou da prova legal. Nesse sistema, de que há registros históricos desde, pelo menos, o Direito Romano, o magistrado é limitado pelo que a lei determina: por exemplo, mulher não pode testemunhar; uma testemunha não vale nada; duas testemunhas valem mais do que uma, etc. Ainda existem no Brasil alguns dispositivos influenciados pelo sistema da prova tarifada de que servem de amostra os arts. 400, 401 e 366 do CPC. Os artigos 400 e 401 mostram que a valia da prova testemunhal é relativa. Em certas circunstâncias somente se admite a prova documental. Assim, também se um contrato tem valor superior a 10 salários mínimos, a prova exclusivamente testemunhal não cabe. No artigo 366 aparece outro caso clássico de prova tarifada: se a transferência da propriedade imobiliária não for comprovada com a certidão de transferência no cartório de registro de imóveis, não pode ser comprovada de outra forma.

(ii) sistema do livre convencimento. Nesse sistema, não há necessidade de o julgador fundamentar a decisão que tomou para o caso concreto, como acontece, por exemplo, com os membros de um tribunal do júri. É clássica, por exemplo, a expressão dos membros do júri nos sistemas de common law que se limitam a afirmar: culpado/ não culpado.

(iii) sistema da persuasão racional ou do livre convencimento motivado. Esse sistema que é o, preponderantemente, adotado no Brasil, é dado ao julgador firmar sua convicção livremente, mas há de fazê-lo de forma fundamentada. É o que se depreende do disposto nos arts. 93, IX, da Constituição, e 131 do CPC. Em outras palavras (creditadas a Liebman), o juiz há de declarar qual o caminho lógico que percorreu para chegar à conclusão a que chegou. Só assim a motivação será uma garantia contra o arbítrio.

Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados no Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa. É vedada, por força de preceito constitucional, a utilização da prova ilícita (não cabe, no direito brasileiro, qualquer distinção entre prova ilícita e prova ilegítima). A respeito do tema, e por amor à honestidade científica, cumpre-nos lembrar que uma parcela da doutrina vem sustentando, contra o nosso entendimento, que em determinadas circunstâncias, a prova ilícita pode ser admitida no processo, haja vista a regra constitucional (direito fundamental incrustado no art. 5º, LVI, da Carta Política) pode ser afastada em confronto com algum princípio. Parece-nos uma equivocada leitura principiológica da Constituição que, entretanto, está a ganhar aceitação na seara acadêmica.


Quem prova? - Divisão do ônus da prova


A legislação processual civil brasileira (art. 333) divide esse ônus, afirmando que incumbe ao autor a prova quanto ao fato constitutivo do seu direito; e ao réu, a prova de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Apesar dessa distinção, no direito brasileiro, vigora o princípio da comunhão ou aquisição das provas, isto é, depois de produzidas as provas não importa quem produziu, só importa que o destinatário das provas é o juiz. Vale ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor permite, em certas circunstâncias a inversão do ônus da prova como uma forma de equalizar as forças processuais. A inversão do ônus da prova tem de acontecer, segundo pensamos, na fase do artigo 331 (o juiz determinará as provas que terão de ser produzidas). Houve quem sugerisse, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, que isso poderia ser feito no momento da prolação da sentença. Ora, o raciocínio esbofeteia a lógica e o bom senso. Deveras, o devido processo legal impõe que seja dado às partes o conhecimento das regras do jogo, seus ônus, direitos e deveres.

É bem verdade que esse raciocínio de que a inversão do ônus da prova há de ser feito na sentença, vem como uma roupagem que pretende ser sedutora, alegando que isso é uma técnica de julgamento, que se ajusta à teoria da carga dinâmica da prova (que foi suscitada, melhor diria, ressuscitada na Argentina e que já faz adeptos no Brasil), segundo a qual, por meio de robusta flexibilização do teor do artigo 331, do CPC, deve provar aquele que tiver mais condições, inclusive técnicas de fazê-lo, independentemente de a quem a lei atribui esse ônus.

Ainda que, de lege ferenda, a tese seja interessante e se amolde aos ideais de justiça do processo, não parece sequer razoável que se tenha a possibilidade de alteração do ônus da prova como uma técnica de julgamento. É preciso que às partes seja dado conhecer quais ônus lhes cabem para que possam deles desincumbir-se. A não ser assim, o processo estará convolado num jogo de adivinhação, numa charada, cuja chave será conhecida apenas do magistrado, em grave ofensa ao princípio da segurança jurídica.

Hoje em dia, e pelo menos por enquanto, está pacificado em sede de jurisprudência que a possível inversão do ônus da prova é uma regra relativa ao procedimento processual e não uma regra de julgamento. Demais disso, cumpre ser dito que a inversão não pode conduzir a parte à produção de uma prova impossível.


Prova emprestada e prova de fora da terra


Duas últimas observações hão de ser feitas, ainda, sobre a teoria geral da prova, relativas à prova emprestada e à prova de fora da terra. O primeiro termo significa a possibilidade de extrair uma prova, já produzida em determinado processo, para encartá-la em outro, independentemente de haver coincidência total ou parcial entre os sujeitos do processo. É certo que, em tese, quanto maior for a coincidência entre esses sujeitos, maior será, também, a possibilidade de o magistrado à prova assim produzida determinado valor. Fique claro, porém, que não há nenhuma espécie de subordinação do magistrado que dirige o processo para o qual a prova for trasladada em relação à valoração dada à prova pelo magistrado que conduziu o processo no qual ela foi originalmente produzida.

O segundo termo tem pertinência com a prova que é produzida ou que, por algum motivo, deve ser produzida perante juízo diverso daquele em que se processa o feito, a que se reporta, por exemplo, o art. 265, IV, “b”, do Código de Processo Civil. Nesses casos, clara hipótese de divisão de competência funcional, a prova é produzida perante outro juízo (v.g., juízo do local onde reside a testemunha) e, após, encaminhada ao juiz do feito que poderá atribuir-lhe o valor que entenda devido.

Depois eu conto o resto!

 

 

5 comentários:

  1. O conteúdo está bem claro e objetivo. Muito bom!!!

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  2. Gostei muito da forma clara que nos passou seus conhecimentos. Obrigada!

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  3. Professor, uma dúvida sobre prova tarifada.

    Por exemplo, o art. 6º, § 2º, da Lei 8.134/1990 (deduções da base de cálculo do imposto de renda): "O contribuinte deverá comprovar a veracidade das receitas e das despesas, mediante documentação idônea, escrituradas em livro-caixa, que serão mantidos em seu poder, a disposição da fiscalização, enquanto não ocorrer a prescrição ou decadência)". P.s.: os erros de português são originais, rs...

    Trata-se de prova tarifada, certo?

    Pode a lei vincular o juízo, reduzindo o escopo do seu livre convencimento motivado, ou essa norma tem como destinatário, exclusivamente, a Administração?

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