quarta-feira, 16 de maio de 2012

Parecer no caso Geraldo Vandré

Eis o parecer que apresentei à PGFN, em 1998, a respeito da revisibilidade da demissão de servidor público, com base no AI-5.


(Uma explicação prévia ao parecer: como o blog não permite nem recupera notas de rodapé, tive de inseri-las no próprio texto, o que, por vezes, foi feito em prejuízo à clareza)

Pedido de reconsideração formulado pelo servidor Geraldo Pedrosa de Araújo Dias.
Assunto: retificação e republicação do despacho que o reverteu ao serviço público.
Matéria jurídica envolvida: Revisibilidade ou não de ato administrativo praticado com base no Ato Institucional n° 5; incidência ou não de prescrição quinquenal e aplicação ou não do princípio da legalidade aos atos praticados pelos governos militares.

Senhor Procurador-Geral,

Trata-se de recurso dirigido ao Excelentíssimo Senhor Ministro da Fazenda, pelo servidor GERALDO PEDROSA DE ARAÚJO DIAS, de decisão proferida pela SUNAB, que inadmitiu fosse alçada à instância maior deste Ministério a súplica visando à retificação e republicação do despacho n° 001184-GM, de 27.08.84, que o reverteu ao Serviço Público.
2. O servidor em causa pugna por que constem, no referido despacho, como fundamento da decisão que o reverteu, regras do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União e não da Lei n° 6.683, de 28.08.79, a chamada Lei da Anistia.
3. Encaminhado pelo Superintendente da SUNAB ao Excelentíssimo Senhor Ministro da Fazenda, o recurso findou brecado na Coordenação Geral de Recursos Humanos que, de sua vez, o enviou à SAG de onde, por meio da Subsecretaria de Assuntos Administrativos, foi devolvido à SUNAB, sem a oitiva do Senhor Ministro.
4. Posteriormente, por ato do Senhor Chefe de Gabinete do Ministro, os autos foram encaminhados a esta Procuradoria para parecer.

Fatos

5. No presente processo, tem-se um requerimento firmado por advogado constituído pelo Senhor GERALDO PEDROSA DE ARAÚJO DIAS, em que é postulado, com espeque na Lei n° 6.683/79 (Lei da Anistia), o seu retorno à atividade, como funcionário da SUNAB. A esse requerimento, que foi indeferido, seguiu-se, por força do disposto na lei sob referência (art. 4°), a aposentadoria ex officio do postulante.
6. Em decorrência disso, o funcionário aviou, em março de 1981, extensa petição manifestando indignação e irresignação, já com o indeferimento de seu pleito de retorno à atividade, já com os próprios termos utilizados por seu Advogado que, desbordando dos lindes do mandato que lhe fora outorgado, fundou a pretensão de retorno do peticionário ao serviço público na Lei n° 6.683/79, que concedeu anistia aos que foram demitidos com base no Ato Institucional n° 5, de 1968.
7. Em fevereiro de 1983, parecer da lavra do Dr. José Mesquita dos Santos, Procurador-Geral da SUNAB, sugeriu a revisão do ato de aposentadoria, o que, afinal, foi feito, por meio de Despacho do ex-Ministro Antônio Delfim Neto, que, entretanto, fundou a reversão do servidor ao serviço público justamente no disposto na "Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979, e no Decreto n° 84.143, de 31 de outubro de 1979".
8. Veemente irresignação do servidor, mais uma vez, foi trazida aos autos, ao argumento de que, porque não cometera crime, não poderia ser anistiado, devendo, por isso, o despacho de reversão ser retificado e republicado, fundando-se a reconsideração no Estatuto dos Funcionários Públicos da União.
9. As manifestações da administração pública foram, de forma indissonante, contrárias ao deferimento do pleito, invocando, ora questões de ordem formal ora de ordem material, valendo reproduzi-las:
a) Manifestação do Procurador-Geral da SUNAB, de 25.10.85 (fls. 206):
... a reversão ou retorno do Requerente à atividade se deu com fundamento nos dispositivos legais mencionados quer no referido Despacho Ministerial quer na Portaria SUNAB N° 56, de 14 de março de 1985, anexado por cópia no Proc. SUNAB n° 13.440/83, já referido, porque em se tratando dessa legislação especial, e não no Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, com base no qual não poderia ser atendido o seu pedido.(ad litteram)
b) Parecer desta Procuradoria, n° PGFN/CSJD 150/86, da lavra da Dra. Celmy de Souza:
Levando-se em conta a insuscetibilidade de revisão, até pelo Poder Judiciário, dos atos do Governo Federal lastreados nos Atos Institucionais e nos Atos Complementares (Constituição Federal, art. 181, I), só cessam os efeitos das demissões nele, fundamentadas nos estritos termos da Lei n° 6.683, de 28.08.79 ou, agora da Emenda Constitucional n° 26, de 27 de novembro de 1985, art. 4°.
De outra parte, nem a Lei n° 6.683/1979 (art. 11 ), nem a Emenda Constitucional n° 26/1985 (art. 4°, § 5°) autorizam a retroeficácia a anistia, ficando, dessarte, elidida, no todo a pretensão recursal.
c) Despacho do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, substituto, de 03.02.86 (fls. 254), que mereceu aprovação ministerial, em 04.02.86:
O deferimento foi feito nos exatos termos do pedido, isto é, retorno ao serviço ativo, em função da anistia concedida pela Lei n° 6683, de 1979, visto haver sido o servidor punido com fundamento no AI 5/68.
.........................
Os motivos e a justiça da decisão são insuscetíveis de reexame pela Administração e pelo próprio poder Judiciário (cf. CF. art. 181, e art. 3° da Emenda n° 3/78)
.....................
Tanto a lei de anistia como a recente Emenda Constitucional n° 26/85 (art. 4° § 5°) vedam expressamente qualquer remuneração em caráter retroativo.
Por outro lado, trata-se, de segundo pedido de reconsideração, que também é inadmissível (Dec. 20:848, de 23.12.31, art. 1°).
10. Outras tantas manifestações ocorreram, de parte a parte, todas com o mesmo fundamento, até que retornaram os autos ao exame do Excelentíssimo Senhor Ministro da Fazenda.

Exame

11. Como antecipado, a investigação do presente processo há de abordar questões de ordem formal e questões de ordem substancial, material.
12. As questões de ordem formal têm pertinência com o argumento de que não se pode postular na via administrativa por mais de uma vez, com pretensão de revisão, o que levou que se sustentasse a impossibilidade de conhecimento do recurso.
13. As questões de ordem material dizem respeito ao fato de que, como o servidor foi demitido com base no AI n° 5, não caberia cuidar de revisão nem judicial nem administrativa, além do que o art. 3° da Emenda Constitucional n° 11, de 13/10/78, que revogou os atos institucionais e complementares, ressalvou "os efeitos dos atos praticados com base neles os quais estão excluídos de apreciação. (vale ressaltado que a regra da exclusão da apreciação judicial já existia tanto no AI 5/68, como no art. 181 da Constituição de 67 (Emenda de 69), que dispunha: “Ficam aprovados e excluídos da apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964.”

Questões de Ordem Formal

14. Quanto às questões, de ordem formal, bem poderia o aplicador da lei (e não a aplica só o Judiciário), exultante ante a preliminar existente, e pertinente, de que se trata de um segundo pedido de revisão, furtar-se ao complexo exame de mérito que o tema suscita. Cumpriria, assim, seu papel de bom aplicador do regulamento.
15. Ocorre que, na espécie, tem sido suscitada, ora nulidade, ora, mesmo, inexistência dos procedimentos administrativos que culminaram com o ato demissório do servidor. Assim, se o exame dos autos determinar ou a nulidade ou a inexistência dos procedimentos administrativos em causa, então a prefacial no sentido de não conhecimento do recurso pode, e deve, ser afastada. É que, em se tratando de nulidade, viria a pêlo a Formulação n° 222 do antigo DASP, que soa:
A nulidade dos atos administrativos pode, a qualquer tempo, ser declarada pela própria administração.
16. No mesmo sentido, a Súmula n° 473 do Supremo Tribunal Federal, in verbis, recita:
"A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais porque deles não se originam direitos; ou revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial."
17. Ora, se pode a administração, de ofício, isto é, independentemente de provocação, reexaminar a qualquer tempo a nulidade dos atos administrativos, também o pode se o reexame ocorre por força de provocação do interessado. Isso é de uma lógica acaciana.
18. Por força disso, a simples possibilidade de que se trate de nulidade impõe que a questão de mérito seja examinada precedentemente às exceções de ordem formal.

Questões de ordem substancial

19. Duas ordens de questões substanciais devem ser consideradas para o perfeito desate do problema: a) impende saber se há possibilidade constitucional/legal de reexaminar o ato demissório do servidor, que foi baseado no Ato Institucional n° 5/68; b) se houver essa possibilidade, cumpre examinar se o ato em questão foi praticado com algum vício que, pela sua magnitude, o tenha tornado imprestável para atingir os fins a que se destinava.
a) Quanto à revisibilidade, ou não, do ato demissório.

20. Trata-se de comovente peleja que, desde 1979, vem travando servidor público civil, demitido com base no § 1° do art. 6° da Ato Institucional n° 5/68 (Nos primeiros exames feitos quanto à postulação de seu retorno à atividade os órgãos da SUNAB manifestaram o seu desinteresse, “nada obstante a ficha funcional do servidor nada indicasse de desabonador.” Havia, ao revés, assentamentos elogiosos na fé-de-ofício do servidor recorrente.) para demonstrar a impertinência da conduta do administrador que o alijou do serviço público.
21. Embora não conste dos autos, quadra consignar que o postulante é o mesmo cidadão conhecido no mundo artístico como GERALDO VANDRÉ, de cujas canções não se pode dizer que professavam a ortodoxia do poder político que se instalou no País a partir de março de 1964, o que, supõe-se, pode ter ensejado desagrado aos titulares da ordem então estabelecida.
22. Certo é que o ato demissório, mandado publicar pela junta militar que governava o País nos fins da década de 60, fundou-se no Ato Institucional n° 5, fato esse que afastava qualquer possibilidade de apreciação por parte do Poder Judiciário e, embora sem referência expressa nos atos institucionais de então, sem possibilidade de reexame também na esfera administrativa ( É que o fenômeno da jurisfação do poder, identificado em situações de razoável normalidade, em situações de dominação pelo poder legítimo, não ocorre da mesma maneira quando advêm golpes militares. Aí, cada ato do governo militar que mantém a revolução permanentemente "em ser", constitui um ato do poder constituinte originário, irrevisível por parte dos poderes instituídos. Pode-se discutir, com argumentos metajurídicos, se tais atos são legítimos ou ilegítimos, mas não se pode, enquanto permanecer em atividade o poder constituinte originário/revolucionário, cogitar de eficaz oposição jurídica a esses atos.).
23. Para completar a moldura em que deve caber o exame da primeira ordem de questões, cumpre lembrar:
1) os atos institucionais só vieram a ser revogados por meio da Emenda Constitucional n° 11, de 13.10.78, que, todavia, ressalvou os efeitos dos atos praticados com base neles. (Registro, por oportuno, que, mesmo ante a ausência de possibilidade de revisão, o postulante vinha tentando, desde 1975, que seu processo fosse tratado com base na legislação infraconstitucional.) ;
2) a normalidade democrática voltou a imperar no País com o advento da Constituição de 1988, que não repetiu a vedação de exame, pelo Poder Judiciário (nem por qualquer outro Poder) dos atos praticados com base na legislação excepcional.

24. A questão que se põe, assim, é: pode um poder, instituído por um certo poder constituinte, examinar atos que tenham sido praticados por um outro poder constituinte originário, anterior, sem que haja o texto constitucional em vigor previsto expressamente a hipótese?

25. Se o texto constitucional em vigor albergasse expressamente a hipótese de eficácia retro-operante, dúvida nenhuma poderia remanescer quanto a isso, e os órgãos do Poder não teriam qualquer dificuldade em proceder ao reexame da matéria. O fato é que não existe tal previsão constitucional. Penso, entretanto, que mesmo à ausência de um tal dispositivo, não se pode fazer tábula rasa dos atos praticados em nome do Estado, durante o período em que estiveram no poder os governos militares.
26. Na recente história do pós-guerra, tem-se o exemplo da França, onde se tentou apagar, da História oficial, o período correspondente ao governo colaboracionista da fase de ocupação alemã. Da mesma forma como se tenta apagar um labéu inoportuno, proclamava de Gaulle, em agosto de 1944: "Vichy fut toujours et demeure nul et non avenu."
27. Vã tentativa. Os fantasmas do período de ocupação insistem em sair das trevas e pôr-se sob a luz que promana da verdade histórica. Encontra-se a França, hoje, às voltas com a necessidade de rever aquela posição e resgatar suas responsabilidades como nação e como Estado: em outubro do ano transato, iniciou-se o julgamento de Maurice Papon — que, após a guerra, tornou-se auxiliar do General de Gaulle (1958) — por crimes cometidos contra a humanidade, justamente durante aquele período que a França teimava em apagar da memória.
28. Lá, como cá (espera-se), os fantasmas do passado vivificam na retina da cidadania o compromisso com o ideário de Justiça que é apanágio dos Estados Democráticos de Direito, (essa afirmação, que não pretende ter como argumento jurídico stricto sensu, conteúdo panfletário, se não serve porque se trata de diferentes ordenamentos jurídicos, em diferentes momentos históricos, certamente contribuirá para que se compreenda o discurso legitimante do Direito.) e é com a mente voltada para o modelo do Direito francês, que admitiu julgar atos praticados pelos detentores do poder político, de antes da Constituição de 1958, que convém iniciar a investigação para, ao fim, verificar se a mesma solução pode ser adotada, ou não, pelo Direito brasileiro.
29. Aqui, a primeira regra constitucional que vem a lume — à guisa de aproximação inicial, porque se trata de um processo administrativo e não judicial — é a encartada no art.¬ 5°, XXXV, da Constituição de 1988 que preceitua que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
30. Tal preceito já se encontrava substancialmente insculpido na Constituição pretérita (a diferença é que o atual prevê a necessidade de preservar-se o cidadão até mesmo contra a simples ameaça de lesão). Ocorre que, naquela Constituição, existia uma outra regra que suprimia a possibilidade de exercício da jurisdição quando se tratasse de atos praticados pelo comando supremo da revolução. A prevalecer o entendimento, assente em doutrina, de que tempus regit actum, nenhuma outra consideração seria necessária porquanto o ato demissório ocorreu, desenganadamente, na vigência da Constituição passada.
31. Creio, entretanto, que assim não deve ocorrer. Com efeito, como adverte Meirelles Teixeira:
"Cumpre não confundir a vigência temporal da norma com a sua aplicação retroativa, isto é, a fatos ou situações pretéritos, o que pode ocorrer até mesmo entre nós, desde que se respeitem os direitos adquiridos, os atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada [....] Assim, a atual constituição poderá perfeitamente aplicar-se a situações passadas, isto é, anteriores àquela data, sempre que expressamente o determine (é evidente que qualquer constituição poderá sempre abrir exceção a seus próprios preceitos) ou, mesmo, não ocorrendo tal hipótese, desde que não se ofenda o preceito atrás citado."  J.H. Meirelles Teixeira, Curso de Direito Constitucional, Forense Universitária, 1991, p. 288.).
32. O lúcido comentário do constitucionalista em destaque seria suficiente para demonstrar que, mesmo à ausência de texto expresso, seria possível aplicar os regramentos da atual Constituição a um fato ocorrido sob a égide da antiga Constituição, desde que não houvesse ofensa a direito adquirido, a ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
33. É bem verdade que pode ser sustentado em sentido contrário, isto é, no sentido de que a Constituição, se se aplica aos fatos futuros e aos fatos pendentes, não busca revolver os chamados facta praeterita. O raciocínio, contudo, não lograria infirmar o que vem de ser sustentado porque, como será visto oportunamente, quando do exame da ocorrência ou não de prescrição, o que se tem in casu é justamente um ato pendente de revisão administrativa que nessa condição se encontrava quando entrou em vigor a atual Constituição.
34. Uma outra vertente de raciocínio, que parte justamente do outro polo do problema, é a pertinente ao fato de que o art. 181 da Constituição passada e o art. 3° da Emenda Constitucional n° 11/78 perderam qualquer aptidão normativa em face do advento da Constituição de 1988. Conferir-lhes eficácia post mortem, conferir-lhes ultratividade, é juízo que não se compadece com os cânones da ciência política e que vulnera todos os princípios que regem os conflitos de leis no tempo, como passa a ser demonstrado.
35. Quanto ao primeiro aspecto, conviria lembrar as palavras de Sieyès (Emmanuel Joseph Sieyès, Qu'est-ce que le Tiers Etat? Trad. Norma Azeredo, Liber Juris, 1988, p. 119), prógone da teoria do Poder Constituinte:
Seria possível dizer que uma nação pode, por um primeiro ato de sua vontade não querer no futuro comprometer-se senão de uma maneira predeterminada?
Primeiramente, uma nação não pode nem alienar, nem se proibir o direito de mudar; e, qualquer que seja a sua vontade, ela não pode cercear o direito de mudança, assim que o interesse geral o exigir. Em segundo lugar: com quem se teria comprometido esta nação? eu entendo que ela pode obrigar seus membros e mandatários, e tudo o que lhe pertence; mas será que ela pode impor deveres a si mesma? O que é um contrato consigo mesmo? Sendo as duas partes a mesma vontade, ela pode sempre desobrigar-se de tal compromisso.
36. É bem de ver que essas palavras, que foram escritas para objurgar a pretensão de atribuir-se eternidade a um texto constitucional, casam, como luva de encomenda, com o caso concreto. Deveras, a partir do texto, observa-se o absurdo que representa conferir-se ultratividade (isto é, permitir que uma lei ou artigo já revogados continuem a possuir eficácia normativa) a um preceito da Constituição revogada, máxime no caso concreto, quando a Constituição atual contém norma expressa vedando qualquer possibilidade da existência de um ato qualquer que não possa ser submetido ao exame do Poder Judiciário.
37. As regras de solução de conflitos de lei no tempo também não autorizam, para o caso concreto, a ultratividade das regras que impediam o Judiciário de examinar os atos praticados com base no AI n° 5/68.
38. Realmente, o direito constitucional anterior cessa, desaparece, com a entrada em vigor do novo estatuto político! O que há aqui, ensina Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Coimbra, Coimbra Editora Limitada, 1991 pp. 272/3), é revogação global da constituição anterior. É que
"Por definição, não pode haver senão uma constituição – em sentido material e em sentido formal; em cada país e em cada momento, só pode prevalecer uma certa ideia de Direito; a finalidade especifica do acto constituinte consiste em substituir a ordem constitucional criada a partir de anterior acto constituinte por uma diferente ordem constitucional...
Não cabe indagar da compatibilidade ou não de qualquer norma constitucional anterior com a correspondente norma constitucional nova ou com a nova constituição no seu conjunto; basta a sua inserção na anterior constituição para que automaticamente -- expressa ou tacitamente - fique ou se entenda revogada pela constituição posterior."
39. Também no sentido de que não se deve admitir a ultratividade de um preceito constitucional é o magistério de José de Oliveira Ascensão (Direito. Introdução e Teoria Geral, Uma Perspectiva Luso-Brasileira, 9a. edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1995, pág. 296):
A pretensão de toda constituição é a de compendiar exaustivamente o Direito Constitucional do país (escrito) não podendo portanto admitir a concorrência de uma constituição anterior.
40. Ora, se assim é, resta induvidoso que os preceitos da Constituição passada que impunham a irrevisibilidade dos atos revolucionários não passam, hoje, de meras proposições sintáticas, sendo defeso ao intérprete reconhecer-lhes qualquer força ultrativa.
41. Em suma, do ponto de vista do Direito Constitucional, quanto ao aspecto da atual revisibilidade do ato administrativo praticado com base no Ato Institucional n° 5, não vejo qualquer impedimento a que ocorra. Isso, obviamente, dentro de um espectro estritamente jurídico.

Quanto à Prescrição

42. Caberia cogitar, entretanto, como feito nas manifestações administrativas anteriores a esta, de óbice de natureza infraconstitucional consistente na prescrição administrativa.
43. É sabido que, no Direito Brasileiro, como de resto, no Direito da grande maioria dos povos ocidentais, são previstos prazos dentro dos quais as questões podem ser examinadas pelos órgãos administrativos e jurisdicionais, após o que ocorre prescrição ou decadência, conforme o caso.
44. No caso concreto, argui-se a prescrição quinquenal prevista no art. 169 do antigo Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, para inadmitir o reexame da matéria. É que, demitido em 1969, somente após oito anos do ato demissório teria o peticionário apresentado irresignação contra o referido ato.
45. Como se sabe, a Formulação n° 33 do DASP permite que a administração releve a prescrição administrativa, desde que não se trate da prescrição quinquenal. E por que assim se passa? Porque a prescrição quinquenal é o limite imposto pelo Decreto 20.910/32 para prescrição das ações judiciais contra as pessoas jurídicas de direito público. Soaria, assim, contraditório relevar a prescrição administrativa quando, na esfera judicial, idêntico resultado não pudesse ser obtido.
46. Vejo alguma dificuldade de acolher o argumento, tal como posto. Com efeito, quando se fala em prescrição parte-se do princípio de que alguém, tendo sofrido uma certa lesão, tenha deixado transcorrer in albis o prazo que lhe foi outorgado pela lei para promover a competente ação judicial visando à reparação da lesão.
47. Cumpre recordar, neste passo, que o Estatuto Constitucional que vigeu até fins de 1988 previa expressamente que a jurisdição não se estendia ao exame dos atos praticados com base no Ato Institucional n° 5/68. Ora, comezinho em Direito, jurisdição e ação são os dois lados de uma mesma moeda. Se não há jurisdição, ação não há, e se ação não há não pode correr prazo de prescrição que implique perda do direito de ação, por uma simples e elementar razão: não se perde o que não se tem!
48. Assim, qualquer prazo prescricional (judicial ou administrativo) a respeito de qualquer pretensão que visasse à correção de ato praticado com base no Ato Institucional n° 5 somente poderia começar a ser contado a partir da vigência do novo Estatuto Político, isto é, quando, segundo o entendimento aqui esposado, passou a ser possível a revisão judicial dos atos revolucionários, por força da revogação total do art. 181 da Constituição passada e do art. 3° da Emenda Constitucional n° 11/78.
49. Sendo 5 de outubro de 1988 o dies a quo (o dia inicial) da contagem do prazo, a prescrição quinquenal terá alcançado todas as pretensões que não tenham sido exercidas até 5 de outubro de 1993, aí incluídas, por óbvio, as pretensões de natureza financeira. Essa a regra geral a ser seguida.
50. Cumpre verificar o que se passou, para saber se a regra enunciada encontra aplicação ao caso concreto.
51. Em 21 de janeiro de 1975 (fls. 129), o postulante requereu vista de seus assentos funcionais "para conhecimento e melhor orientação de suas obrigações e direitos."
52. Em 19.09.75, requereu (fls. 134) os "autos do Processo Administrativo que deu origem ao ato demissório."
53. Em 20 de maio de 77 requereu ( fls. 189) abertura de inquérito administrativo, "inconformado com a completa e inadmissível ilegalidade de procedimentos que resultou em sua `exoneração’. (ad litteram)
54. Há, ainda, o requerimento de 1979, com a corrigenda que se lhe seguiu, e o recurso de 12 de março de 1981, onde consta a irresignação contra a primeira aplicação da Lei de Anistia, o que foi repetido na petição de irresignação datada de 08 de janeiro de 1985, fls. 194, e ratificada na petição de 29.03.85, fls. 200, ambas vindicando a alteração do fundamento do despacho que lhe concedeu a reversão ao serviço público.
55. Do exame dos autos resulta que, há mais de vinte anos, e mais de dez anos antes de ocorrer o dies a quo do prazo prescricional aplicável à pretensão do servidor, vem ele, reiteradamente, rogando que a administração pública lhe dê o direito ao devido processo legal, que instaure um procedimento administrativo para que se apurem eventuais ilícitos administrativos que tenha cometido e onde possa apresentar a defesa pertinente. Mais de uma vez perguntou à administração onde estava a apuração dos fatos que ensancharam a sua demissão; quais motivos determinaram a demissão. Tudo em vão.
56. Se a prescrição se baseia no velho brocardo dormientibus non sucurrit jus, o parágrafo supra demonstra que, certamente, esse não é o caso do postulante. Em conclusão quanto a este aspecto, não vejo como deixar de apreciar a súplica do servidor, tanto porque não ocorreu a prescrição quanto porque, especificamente neste caso, considero que a atividade recursal exercida impediu a preclusão de toda a matéria agitada no presente processo, o que permite caracterizar a situação como um fato pendente, a ele sendo aplicável o novo texto constitucional.

De outras razões que orientam para o reexame da matéria

57. Afirma-se que a história se repete. Nada mais verdadeiro, se considerado o caso presente. Examinando os grandes processos da História (ou os grandes erros da História) decerto que o mais evidente equívoco existente nos fastos do Direito foi o cometido, na França, contra Alfred Dreyfus.

58. A Dreyfus, após ser condenado pela segunda vez — pelo mesmo crime de alta traição que não houvera cometido — por um Conselho de Guerra francês, ofereceram o indulto, como forma de reparar o erro do Estado. O condenado respondeu:
"Não quero perdão, Não quero perdão. O perdão desonra-me!" (apud, Paul Richard, Os Grandes Processos da História, 11° vol. , trad. de Argeu Ramos, Edição da Livraria do Globo, Porto Alegre, 1941, p. 321)
59. Ao fim, porém, debilitado e quase morto, esgotado por cinco anos de atrozes torturas físicas e morais, admite ser indultado, apenas para sair da prisão declarando:
O governo da República devolveu-me a liberdade. nada, porém, significa sem honra. Desde hoje vou continuar procurando a reparação do terrível erro judiciário de que sou vítima. Quero que toda a França saiba, por uma sentença definitiva, que sou inocente. Meu coração não ficará tranquilo enquanto houver um só francês que me impute o crime que outra pessoa cometeu."
60. Em 1889, o Governo francês apresentou um projeto de anistia ao Senado para "todos os fatos criminosos ou delituosos conexos com o `caso' ou compreendidos em um processo relativo a um desses fatos." A resposta de Dreyfus foi imediata:
"... O inocente tem direito, não à clemência, mas à justiça.
61. Aqui, também, o peticionário, em todas as vezes que lhe foi possível, bradou contra a anistia que insistiam em ofertar-lhe, porque, no seu entendimento, não cometera crime de qualquer espécie.
62. Quando vejo a Igreja, tão ciosa de seus dogmas e de suas verdades, séculos após, em ato de contrição, rever o julgamento de GALILEU, para reconhecer que se enredou em colossal equívoco, pergunto-me se não é hora de se fazer a hora, quae sera tamem.
63. Afinal,
"Durante esse tempo todo, o infortunado dilacera as carnes, protestando a sua inocência. E a instrução foi feita à maneira do século XV, misteriosamente..." (Emile Zola, Eu Acuso!, apud Os Grandes Processos... p. 389)
64. A persistência do signatário parece a encarnação do que proposto, no Século passado, por Ihering (R. von Ihering, A Lucta pelo Direito, Livraria e Editora Vendramim, s/data, pp. 32/33), que bem calha transcrever:
de modo semelhante, nas acções e nos pleitos judiciaes, em que existe uma grande desproporção entre o valor do objecto e os sacrifícios de qualquer natureza que nelles é mister dispender, não se vai demandar, não se litiga pelo valor insignificante talvez do objecto, mas sim por um motivo ideal, a defesa da pessoa e do seu sentimento pelo direito.
Quando o que litiga se propõe semelhante fim e vai guiado por taes sentimentos não há sacrifício nem esforço que tenha para si peso algum, porquanto vê no fim que quer atingir a recompensa de todos os meios que emprega.
A grande questão para elle não é a restituição do objecto que muitas vezes é doado a uma instituição de beneficência, a que o póde impellir a litigar; o que mais deseja é que se lhe reconheça o direito.
Uma voz interior lhe brada que não lhe é permitido retirar-se da lucta, que não é só o objecto que não tem valor algum, mas sim a sua personalidade, seu sentimento pelo direito e a estima que elle deve a si mesmo, que estão em jogo...
Resistir à injustiça é um dever do indivíduo para comsigo mesmo; porque é um preceito da existência moral: - é um dever para com a sociedade, porque esta resistência não póde ser coroada com o triumpho, senão quando fôr geral. (mantida a grafia da tradução portuguesa)
65. Um argumento a mais precisa ser lançado nesse sentido: ao que consta, não há interesses patrimoniais em jogo, até porque, com o advento da Emenda Constitucional n° 26/85, foi computado o seu tempo de afastamento para os efeitos de quinqênios, promoções, licença-prêmio e outras vantagens a que teria direito se em atividade estivesse. Eventuais salários relativos ao período de afastamento não seriam exigíveis, porque atingidos pela prescrição em 05 de outubro de 1993, haja vista que, com relação ao tema, não houve irresignação do servidor.
66. Com esses adminículos, reafirmo a convicção de que a luta quase obsessiva do servidor para ver revisto o ato de reversão ao serviço público deve prosperar porque não há razão de ordem jurídica que possa ser oposta a essa pretensão.

Do Mérito do Ato Demissório

67. Em todo este volumoso processo há apenas e tão-somente dois documentos que dizem respeito ao procedimento administrativo levado a efeito para demitir o servidor: 1) cópia do Diário Oficial de 25 de julho de 1969 em que constava Edital de intimação do servidor para tomar ciência do processo que lhe era movido e apresentar a defesa que tivesse (Registre-se que, dos autos consta, o servidor encontrava-se licenciado do serviço público desde o ano anterior e em viagem ao exterior.); e 2) Decreto de 18 de setembro de 1969, dos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, segundo o qual
De acordo com o disposto no § 1° do artigo 6° do Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968, combinado com o artigo 1°, item II do Ato Complementar n° 39, de 20 de dezembro de 1968 demite o servidor em questão.

68. E só!

69. O que falta ao ato? A motivação. E isso, por si só, é suficiente para demonstrar que o ato demissório não se acomoda ao princípio da legalidade. Dir-se-á que se tratava de um ato do poder revolucionário a que, portanto, não se aplicariam as regras que incidem em situações de normalidade. Colho, para rebater o argumento, o que vem sendo ensinado, há anos, por Miguel Reale:
... o que se pode verificar é a jurisfação ou seja, a juridicidade progressiva do poder... há uma dialética essencial entre direito e poder, de tal modo que o poder se subordina ao direito no ato mesmo em que se decide por uma das soluções normativas possíveis, em função dos valores e fatos que condicionam a decisão mesma. É a essa correlação dialética que denomino jurisfação do poder. (Teoria do Direito e do Estado, p. 82)
70. Disso decorre que mesmo o poder revolucionário deveria submeter-se àquela Constituição (que poderia reformar como quisesse) que admitia como sendo a vigente para o País.
71. Ora, segundo aquele estatuto básico, os atos administrativos deveriam subordinar-se, dentre outros princípios, ao da legalidade estrita. Com efeito, o princípio da legalidade que impregna os atos da administração não é conquista que se deva à Constituição de 1988. A confirmar o asserto, basta breve exame na doutrina e na jurisprudência de vinte anos atrás para se ter essa certeza. O administrador público, ressalvadas as hipóteses de atos discricionários, sempre teve o dever de motivar os atos que praticava. Apenas à guisa de exemplo do que afirmado, é colhida jurisprudência de nossa mais alta corte de Justiça editada antes do advento da Constituição de 1988:
"Servidor publico em estágio probatório. Ato administrativo examinado em face de sua motivação. Exoneração fundada na conveniência do serviço. Funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado, nem demitido, sem inquérito, ou sem as formalidades legais de apuração de sua capacidade." (RE¬61401/GB, relator Ministro Eloy da Rocha, Segunda Turma).
"Mandado de Segurança. Anistia. Magistrado. Reversão ao serviço ativo. Pressupostos negativos do deferimento. Ato administrativo vinculado. Postas, na lei, as condicionantes negativas de reversão ao serviço ativo do servidor anistiado, a validade do ato administrativo indeferitório esta condicionada como requisito essencial, aos respectivos motivos determinantes, cuja existência e congruência se submetem ao controle judicial. Invalidade do ato indeferitório que não expressa a necessária motivação legal, igualmente inexistente no processo administrativo que lhe dá suporte MS-20274IDF relator Ministro Rafael Mayer - Tribunal Pleno).
72. Para que se tivesse o ato por motivado, deveria a administração ter declinado o motivo por que o servidor estava sendo demitido, porque, de trivial sabença, a motivação nada mais é do que a subsunção dos fatos em que se baseia a administração na norma jurídica que deve incidir. À falta de motivação, outro caminho não resta senão declarar a nulidade do ato demissório com espeque na Súmula n° 473 do Supremo Tribunal Federal, mencionada em outra parte deste parecer.
73. Convém fazer um registro antes de encerrar esta manifestação que já vai longa. O recurso é dirigido ao Exm° Senhor Ministro da Fazenda, a rigor responsável pelo ato de reversão do servidor ao serviço público. Ocorre que eventual acatamento do recurso implicará a anulação de ato praticado por quem se encontrava, em 1969, na Chefia do Poder Executivo. Parece-me, assim, que somente o Excelentíssimo Senhor Presidente da República poderá acolher ou não a pretensão recursal.

Conclusão

74. Feitas essas considerações, parece-me lícito concluir que:
a) as disposições dos Atos Institucionais e da Constituição pretérita que impediam a revisibilidade dos atos praticados pelo comando da Revolução perderam qualquer eficácia com o advento da Constituição de 1988, sobrevivendo, hoje, como meras proposições sintáticas;
b) a Constituição de 1988 rege tanto os atos futuros quanto os atos pendentes;
c) é possível, hoje, rever os atos praticados com base nos Atos Institucionais, desde que não se encontrem cobertos pela prescrição;
d) o dies ad quem do prazo prescricional para revisão dos atos praticados sob a égide dos Atos Revolucionários ocorreu em 5 de outubro de 1993. Inclui-se nessa prescrição qualquer espécie de pretensão de natureza financeira;
e) no caso concreto, entretanto, o servidor ¬recorrente tomou todas as providências administrativas a seu alcance para evitar que a prescrição começasse a correr, ressalvadas as pretensões de natureza financeira, que não foram objeto de irresignação por parte do servidor;
f) o ato demissório, falto de motivação, é, ipso facto, nulo e deve ser revisto pela administração;
g) no caso concreto, se acolhidas as ponderações aqui expendidas, o provimento do recurso implicaria a necessidade de a administração, por ato do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, (i) anular o ato que o reverteu ao serviço público com base na Lei de Anistia, (ii) declarar a nulidade do ato demissório e (iii) mandar republicar o ato de reversão fundando-se não mais na Lei de Anistia e sim na nulidade ora mencionada.
Sub censura.

PROCURADORIA-GERAL DA FAZENDA NACIONAL, em 08 de outubro de 1998.
JORGE AMAURY MAIA NUNES

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