terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Execução de obrigação de fazer e não fazer por título judicial

Sobre o cumprimento das obrigações de fazer e não fazer de que trata o art. 461 do CPC, escrevi um texto em fins de 1995, início de 1995, assim que ocorreu a alteração legislativa. Já é um texto velho, a carecer de algumas intervenções visando ao seu rejuvenescimento. Sem embargo, publico-o do que jeito que está, para que seja objeto da crítica de meus alunos.
Obrigado, desde logo.

A redação que a reforma do CPC deu ao dispositivo de regência foi a seguinte:

Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1º A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.

§ 2º A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287).

§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.

§ 4º O juiz poderá na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para cumprimento do preceito.

§ 5º Para efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial.

Já havia estudos anteriores a respeito do tema relativo ao cumprimento das obrigações de fazer e não fazer, cabendo traze à balha o que se discutiu por ocasião da elaboração do anteprojeto de 1985, que depois foi abandonado, cuja redação é elucidativa:

Anteprojeto de 1985:

Capítulo A-5

"Art. 889-A. Aquele que, por lei ou convenção, tiver direito de exigir de outrem que se abstenha da prática de algum ato, tolere ou permita alguma atividade, ou preste fato, poderá pedir a ao juiz que defira a tutela específica da obrigação ou determine providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1º A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente." (Com igual redação, Código de Defesa do Consumidor, art. 84, § 1º.)

§ 2ºA indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287)

§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.

§ 4º O juiz poderá, na hipótese do § 3º, ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para cumprimento do preceito.

§ 5º Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além da requisição de força pública."

Com relação à atual regência, não houve alteração redacional em relação ao projeto apresentado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual e pela Escola Nacional da Magistratura, que se valeu do Anteprojeto de 1985. A Exposição de Motivos deste último afirmava: "Previu-se a tutela específica das obrigações de fazer ou não fazer, deixando-se expresso, com isso, a prevalência da execução específica, obtenível, inclusive mediante o emprego das "astreintes", sem prejuízo da indenização por perdas e danos."

Ocorre que nesse anteprojeto, o artigo correspondente ao de que se cuida era ensartado no Livro III, "Do Processo de Cognição Sumária", cujo art. 795-A, dispunha, in verbis:

"Este livro disciplina o processo cautelar, seu procedimento e o das medidas provisórias, da antecipação da tutela e das providências assecuratórias de direito material".

Nesse Livro, num capítulo indicado como A-5 "Da Ação de Tutela Específica de Obrigações de Fazer ou Não Fazer", é que está lançado o art.889-A, antes transcrito. Do Anteprojeto de 1985 o texto foi trazido, com alterações, para o Código de Defesa do Consumidor, incrustado no art. 84, com a seguinte redação: " Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento." A expressão ou se procedente o pedido que consta hoje no artigo 461, só apareceu no anteprojeto apresentado pelo IBDP e pela ENM. Boas razões devem ter tido seus autores para proceder à inserção desse novo elemento no texto; não conseguimos, porém, atinar com elas. veja-se a redação do artigo: ...o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará as providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento

Se ao menos a expressão, se procedente o pedido estivesse anteposta a a tutela específica, poder-se-ia pensar que o legislador pretendeu realizar uma melhoria redacional em relação ao artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor, porque, lá, interpretação mais estreita poderia dar a entender que, proposta a ação, o juiz obrigatoriamente daria a tutela específica da obrigação, com o que não haveria pedidos improcedentes, na absurda suposição de que o autor sempre tem razão. Lamentavelmente, da forma como está redigido, o artigo conduz a absurdos hermenêuticos consideráveis: proposta ação que tenha por objeto obrigação de fazer, o juiz concede a tutela... ou, se procedente o pedido, determina providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. Data venia... o Estado-juiz somente concede a tutela se o autor for titular de uma relação jurídica material apta a subordinar o réu, impondo-lhe um fazer ou não fazer. Providências que assegurem resultado prático equivalente são aquelas adotáveis em substituição ao agir do réu, quando insuficientes os meios normais de coação de que dispõe o Estado para fazê-lo agir na forma que lhe impunha o direito material.

O texto padece dessa imprecisão redacional e somente alteração legislativa poderá escoimá-lo da impropriedade apontada. Sem embargo disso, parece induvidoso, até com espeque em estudos realizados relativos ao artigo corresponde a esse, no Código de Defesa do Consumidor, que o objetivo do legislador foi dilargar os poderes do juiz, sobretudo através de fundas alterações na concepção executiva do processo . Com efeito, parece que as técnicas de sub-rogação e de coação passaram a ter maior elasticidade, perdendo eficácia as regras do processo que convertiam as obrigações de fazer ou não fazer em perdas e danos (art. 633, art. 638, parágrafo único, art. 643, parágrafo único). Buscou-se, com isso, privilegiar o entendimento doutrinário que há mais de uma década já vinha sendo esposado no sentido de dar-se guarida ao princípio da máxima coincidência possível, isto é, no sentido de que a execução deveria buscar o resultado mais próximo possível daquele que seria obtido se a conduta determinada na regra jurídica tivesse sido seguida espontaneamente pelo legitimado passivo.

A esse respeito, comentando o Código de Defesa do Consumidor, assevera Kazuo Watanabe:

“No plano do provimento jurisdicional, ao juiz foi conferido o poder de adotar todas as providências adequadas e legítimas à tutela das obrigações de fazer ou não fazer, sendo-lhe dado desde: a) impor multa diária, independentemente de pedido do autor (sem prejuízo, evidentemente, do efetivo cumprimento da prestação), se a peculiaridade do caso indicar que a multa é suficiente ou compatível com a obrigação (art. 84, § 4º), até b) determinar medidas que sejam adequadas à obtenção do resultado prático equivalente ao do adimplemento da obrigação se não for possível o atingimento da tutela específica... o provimento do juiz na tutela das obrigações de fazer ou não fazer não se restringirá à mera condenação (provimento condenatório na concepção tradicional) mas abrangerá a expedição de mandamentos ou ordens (ação mandamental), que se descumpridas, à semelhança das injunctions do sistema anglo-saxão ou da “ação inibitória” do sistema italiano, poderá configurar o crime de desobediência, como ato de afronta à justiça, e não apenas à parte contrária, e ainda ensejará a adoção de técnicas de sub-rogação de obrigações em outras que permitam a obtenção do resultado prático equivalente....

Cuida-se, ao revés, de norma auto-aplicável, no sentido de que dela se podem extrair desde logo várias conseqüências. A primeira delas, certamente, é a realização processual dos direitos na exata conformidade do clássico princípio chiovendiano, segundo o qual “o processo deve dar, quanto for possível praticamente, tudo aquilo e somente aquilo que ele tenha direito de conseguir. A segunda, que é consectária da anterior, é a da interpretação do sistema processual pátrio de modo a dele retirar a conclusão de que existe, sempre, uma ação capaz de propiciar , pela adequação de seu provimento, a tutela efetiva e completa de todos os direitos dos consumidores”( Código de Defesa do consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991 pág. 521)

Quadra o registro de que antigas afirmações encontradiças em sede de doutrina, a respeito do processo de execução (pelo menos no que respeita a essa execução de obrigação de fazer decorrente do art. 461), hoje não podem mais ser aceitas pacificamente.

Com efeito, não se pode mais afirmar peremptoriamente, quanto à execução da obrigação de fazer, que seja ela regida por um sistema de ônus e constrições. Essa execução não parece mais decorrer do clássico modelo tradicional da sentença condenatória, tomado por empréstimo do direito italiano. Ao revés, dessa vez, tudo leva a crer que a sentença mandamental encontrou, como categoria, espaço na classificação das sentenças. Ovídio Batista da Silva já menciona que "A experiência obtida em outros sistemas jurídicos, particularmente o italiano, está a indicar que o campo das obrigações de fazer e não fazer está sendo invadido pelas ações mandamentais..."(Curso, pág. 261)

A inserção do artigo 461 no Livro I, que trata do processo de conhecimento, dá a entender que, doravante, haverá uma execução defluente de obrigação de fazer por título executivo hábil a ensejar uma execução ex intervallo, como base no Livro II do Código de Processo Civil (confronte-se o comentário do Professor Kazuo Watanabe, na obra antes citada, pág. 528.) e uma ação a que a doutrina equivocadamente está a apelidar de executiva lato sensu, onde o juiz no próprio preceito avia, por si ou por outrem, os meios hábeis à consecução dos resultados pretendidos pela norma de direito material (impedimento de ensaiar um conjunto musical num prédio de apartamentos, apreensão dos instrumentos, interdição do imóvel, etc. Parece-nos que esse tipo de tutela, de caráter inibitório, é marcadamente mandamental).

Assim, é de considerar-se o fato de que o artigo 632 a 645 do Código de Processo Civil continuam em vigor e que é preciso encontrar espaço para ambos. A maneira de fazê-lo é reduzir o âmbito de vigência das regras do 632 a 645 para a regulação apenas das execuções por título extrajudicial.



A regra do § 1º, como já antecipado, prende-se ao princípio da máxima coincidência possível entre o direito postulado em juízo e a situação que deveria ter ocorrido se o obrigado houvesse tido a conduta imposta na norma de direito material. Seria importante confrontar o disposto nessa regra com o artigo 638 do Código de Processo Civil que determina que, "nas obrigações de fazer, quando for convencionado que o devedor a faça pessoalmente, o credor poderá requerer ao juiz que lhe assine prazo para cumpri-la. Dispõe o Parágrafo único desse artigo que: "Havendo recusa ou mora do devedor a obrigação pessoal do devedor converter-se-á em perdas e danos, aplicando-se outrossim o disposto no artigo 633."

Parece fora de dúvida que a conversão em perdas e danos não segue mais a regra desse parágrafo, que se encontra tacitamente derrogado.


Quanto à regra contida no parágrafo segundo, mais uma vez, o Código tomou partido em discussão doutrinária e jurisprudencial ao permitir a cumulação de perdas e danos com o preceito cominatório previsto no artigo 287. Mesmo antes, porém, já era majoritário o entendimento nesse sentido. Calmon de Passos, já ensinava:

"O art. 287 cuida da cominação de pena pecuniária para o caso de descumprimento da sentença. Indaga-se: ela deve ser invocada quando inexistente outra cominação específica prevista na lei ou no contrato? Ou ela pode ser acrescida a outras previamente estabelecidas?... e responde:

"A cominação do art. 287 não exclui outras previsões de caráter reparatório, não é incompatível com perdas e danos, mas a elas se soma. Não pode, contudo, somar-se a cominação legal ou contratual já fixada com fins coercitivos."

O escólio de Jaime Campos não dissente do magistério do mestre baiano:

"não se deve, portanto, confundir a multa de recalcitrância com qualquer outra pena, com a multa contratual ou qualquer outra cláusula ou perdas e danos, vez que a pena pecuniária busca a eficácia do constrangimento. Tem por objetivo compelir o devedor a cumprir a sentença e não colima substituir a própria obrigação devida que se solve pelo ato próprio ou pela apuração das perdas e danos".

Elucidativo, outrossim, o entendimento de Severino Muniz, em trabalho monográfico a respeito do tema:

"Também se nos afigura necessário dizer que as astreintes não se equiparam às perdas e danos. Têm função coercitiva, visando compelir o devedor a cumprir sua obrigação de fazer, positiva ou negativa."

A regra contida no parágrafo terceiro merece especial atenção , embora não constitua novidade em termos de Direito brasileiro. Com efeito, com pequenas variações essa é a regra do artigo 7º do Lei nº 1533/51, que cuida da concessão de liminar em mandado de segurança: relevância do fundamento da demanda e possibilidade de ineficácia do provimento final, caso deferido. A providência excogitada é semelhante àquela prevista no atual artigo 273, I, combinado com o § 4º do mesmo artigo do CPC. Ambos cuidam de antecipação de tutela, com o desenho doutrinário da chamada tutela de urgência. Qual, pois, a distinção entre ambos ou, melhor dizendo, qual o espectro de incidência de um e outro?

A primeira anotação que pode ser feita é que a regra do artigo 273 é de caráter geral, pressupõe prova inequívoca, isto é, acima de qualquer controvérsia. É até possível que o juiz se convença da verossimilhança a que se reporta o caput do artigo 273, sem prova inequívoca, porque verossímil é o que tem aparência de verdade, que não repugna à verdade, com probabilidade de ser verdadeiro, plausível. Não poderá, porém, deferir a tutela de que trata esse artigo. A recíproca não é verdadeira: a prova inequívoca (id est, a que não deixa sobejar dúvida) conduz, muito mais do que à verossimilhança, à certeza do direito da parte. E só na segunda hipótese está autorizada a tutela antecipatória (é claro, se ocorrente uma das duas hipóteses previstas nos incisos do artigo em causa). No caso do art. 461 não se cuida de prova inequívoca; exige-se menos (relevância do fundamento da demanda e periculum in mora).

Demais disto, na hipótese do art. 273, I, prescinde-se da citação do réu e, valendo-se o magistrado de instituto importado do processo cautelar, periculum in mora, defere a tutela substancial. Registre-se, en passant, que tanto faz seja o dano irreparável ou de difícil reparação para que a tutela seja concedida.

A hipótese do artigo 461 tem pertinência somente com o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Nela, valeu-se o legislador de fórmula que nos acompanha desde a Lei nº 191, de 16 de janeiro de 1936, que em seu artigo 8º, § 9º, dispunha:

"Quando se evidenciar, desde logo a relevância do fundamento do pedido, e decorrendo do ato impugnado lesão grave irreparável ao direito do impetrante, poderá o juiz, a requerimento do mesmo impetrante, mandar preliminarmente, sobrestar ou suspender o ato aludido."

Relevância do fundamento da demanda, ou do pedido, certamente que é menos do que prova inequívoca. Isso, a rigor, não seria de assustar ninguém. O que nos provoca seriíssimas preocupações é o fato de que, a uma primeira análise, não é fácil identificar com precisão o que seja isso! À falta de precisão conceitual, e como sói ocorrer nessas circunstâncias, cuidou a doutrina de atribuir um certo poder discricionário ao juiz para definir o que isso significa. Nesse sentido, e versando sobre o artigo 7º da Lei 1533, de 31.12.51, não faltou quem se pronunciasse sobre o alto grau de subjetividade e de discricionariedade que a fórmula sugere, o que provavelmente será repetido agora.

Nesse sentido, por exemplo, Adhemar Maciel afirma:

"Faceta interessante é a discricionariedade na concessão da liminar. Dos dois requisitos, para sua obtenção, um, o da relevância do fundamento do pedido, é de cunho inteiramente subjetivo."

Data venia, não se pode aplaudir a doutrina que atribui a essa decisão o color de ato defluente de um poder discricionário. Juiz não exerce, em princípio, poder discricionário. A esse respeito já antecipamos nosso pensamento nas anotações que fizemos ao artigo 33. E não exerce porque não há, no exercício da jurisdição, espaço para a utilização de critérios de conveniência e oportunidade, que são as notas identificadoras da discricionariedade. No mais das vezes, o que parcela da doutrina identifica com exercício do poder discricionário por parte do julgador não passa de atribuição de sentido a conceitos (rectius, termos) indeterminados.

A propósito, Teresa Arruda Alvim Pinto leciona, com sua proverbial argúcia, leciona:

"Acreditamos que não se deve identificar a discricionariedade com a "liberdade de que goza o Juiz na fixação de conceitos juridicamente indeterminados, como, v.g., "perigo iminente", "boa-fé", fumus boni juris, relevância do fundamento etc....

Não tem sentido afirmar-se que ao deferir ou indeferir um pedido de liminar estaria o juiz exercendo poder "discricionário".

Cármen Lúcia Antunes Rocha, examinando a questão dos conceitos indeterminados (especificamente sobre a questão da relevância do fundamento), acentua:

"... na matéria, presentemente estudada, florescem citações sobre a discrição do julgador como "o prudente arbítrio" de que se deveria valer ele para apurara a existência ou não, do relevante fundamento do pedido e concessão de liminar. Mas o arbítrio não tem qualificativo; não se altera, em sua essência, pelo adjetivo de que se acompanhe; não se aprimora nem se humaniza pela aparência enganosa de juridicidade de que um novo título o envolva...

O dever de interpretar a norma jurídica atribuindo-se aos conceitos vagos ou indeterminados o único sentido hábil e útil a realizar o fim nela assentado não constitui tarefa porejada de subjetividade, antes cuida-se de desempenho que não possibilita escolha, mas captação e inteligência do comportamento único e insubstituível que o faz conter-se nas balizas da legalidade....

...Assim, não se admitirá a medida liminar sem a necessária relevância do fundamento, nem se aceitará como válido ou incontrastável o seu indeferimento quando se apresentar este elemento e a ele se adicionar o segundo pressuposto legal exigido, qual seja, o risco de se tornar ineficaz a decisão a final proferida.

No mesmo sentido, e com a admirável e justa veemência que caracteriza seus pronunciamentos, Calmon de Passos afirma:

"Discricionariedade só existe em matéria de conveniência e de oportunidade, não no que diz respeito à legalidade do ato. E a discricionariedade vem sendo progressivamente constrita, inclusive, em termos de Poder Executivo, porque não se aceita que o administrador tenha arbítrio, seja exclusivo juiz de sua valoração, dado que os valores postos legalmente e os freios legalmente formalizados para contê-lo operam como parâmetros limitativos dessa proclamada discricionariedade, irmã quase gêmea, e gêmea univitelina do arbítrio, da prepotência e da arrogância.. E enquanto assim pensam e atuam os administrativistas, alguns processualistas endeusam a discricionariedade e outras palavras imprecisas e mágicas, que terminam, como todas as mágicas, apenas empulhando o espectador."

Presentes e demonstrados os dois requisitos, deverá o juiz conceder a tutela. Se não julgar demonstrado um ou outro, deverá determinar a justificação prévia, neste caso devendo ser citado o réu, procedendo-se na forma do disposto no artigos 861 a 866 do CPC. Importante notar, outrossim, que não fica ao alvedrio do juiz determinar ou não a realização da justificação prévia. Se não puder conceder a tutela liminarmente, deverá determinar a justificação. Somente após, se não demonstrados a relevância do fundamento e o periculum in mora, é que poderá o juiz deixar de antecipar a tutela. De qualquer sorte, e qualquer que seja o teor da decisão, caberá recurso de agravo.
A regra do § 4º cuida do preceito cominatório, já previsto no artigo 287, no 644 e no 645 do CPC. Caracteriza-se ele pelo fato de possibilitar ao autor a obtenção de um provimento, sem que haja necessariamente a oitiva do réu, para que este faça ou deixe de fazer alguma coisa, sob pena de incorrer em certa sanção pecuniária. O preceito cominatório é essencialmente um instrumento posto à disposição do Direito Processual por meio do qual o Judiciário pratica atos de coação para que o sujeito passivo da relação jurídica substancial cumpra a obrigação de fazer ou não fazer.

É de crer-se que a inserção desse parágrafo pretende lançar uma pá de cal em antiga, tortuosa e interminável discussão doutrinária, ao dispor que nas ações que tenham por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz poderá, tanto na hipótese de antecipação de tutela quanto na de procedência do pedido reconhecida por sentença, impor multa diária ao réu independentemente de pedido do autor — se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para cumprimento do preceito.



Com efeito, até então, e em face do que dispunha o art. 287 c/c art. 644, as posições doutrinárias eram inconciliáveis. Parcela, da doutrina entendia que, se se tratasse de obrigação de não fazer e de fazer personalíssima, infungível, se o autor não pedisse a cominação da pena deveria ser indeferida a inicial , justamente porque, não pedida, não poderia o juiz concedê-la de ofício, com o que qualquer provimento jurisdicional seria inapto para realizar o eventual direito do autor. Explica-se: para integrar o direito do autor, para executar uma sentença condenatória, vale-se o Estado-juiz de meios de coação e de sub-rogação. Através da primeira modalidade, constrange o executado para que ele realize o direito do credor (daí a ameaça da imposição de multa diária ao devedor se ele não realizar a prestação no prazo que lhe for assinado). Por via da segunda, meio de sub-rogação, o próprio Estado-juiz realiza a prestação, independente de qualquer atividade do devedor, embora a suas expensas (busca e apreensão de bens, penhora, etc.). É intuitivo que, quando se tratar de obrigações de fazer infungíveis, é impossível a utilização de meios de sub-rogação, restando apenas o recurso aos meios de coação. Se não pedida, nessas circunstâncias, a multa, o Estado-Juiz ficava, segundo entende Calmon de Passos, de mãos atadas. No mesmo sentido é o magistério de Araken de Assis:

"É razoável a interpretação que compatibiliza os artigos 287 e 644 no sentido de que o pedido de multa é obrigatório para a execução específica de obrigação de fazer ou de não fazer infungível — levando a sua ausência a um inevitável indeferimento da inicial, ressalvada a hipótese de existir pedido sucessivo de condenação em perdas e danos, caso em que o crédito se demudaria em quantia certa já no título — e é facultativo se o fazer é fungível porque existe o meio executório da transformação."

Agora, em face da dicção do § 4º, em princípio, não mais cabe discutir se se trata se obrigação de fazer fungível ou infungível, nem se pode mais cogitar de indeferimento da inicial por inépcia se não requerida a imposição das astreintes. Impô-las-á o juiz de ofício.

Outro aspecto a considerar (e é uma vertente interpretativa bastante razoável) é o de que, para parcela da doutrina, essa regra veio corrigir o equívoco topológico que representava a colocação dos artigos 644 e 645 no Livro II do CPC. Sobre esses dois artigos anotava Alcides de Mendonça Lima:

"Pontes de Miranda já sustentava que 'a ocasião e o lugar adequados para a aplicação da multa e a condenação em perdas e danos líquidos, ou em perdas e danos dependentes de liquidação, são a sentença de condenação; de modo que o art. 999 [CPC de 1939], referindo-se ao processo de execução, é de pouca aproveitabilidade. O texto do art. 645 revela, contudo, como as normas se acham 'extraviadas no processo de execução' (BARBOSA MOREIRA). A cobrança deve ser feita na execução da sentença condenatória; mas, como a origem é a própria sentença, a sede própria seria no capítulo VIII, do Título VIII, do Livro I, entre os artigos 458 e 466" .


Bem a propósito, a regra se encontra, agora, no artigo 461. Só que o legislador não revogou o artigo 644 (deu-lhe, porém, nova redação, como será visto no momento oportuno), o que impõe seja buscada a compatibilização entre eles. Não é mister que exija alta indagação. O caput do novo artigo 644 só deverá encontrar aplicabilidade — dir-se-ia supletiva — se o juiz, no processo cognitivo, omitir-se quanto à fixação do preceito cominatório.

Um comentário:

  1. Boa noite, professor Amaury! Mesmo sendo bastante elucidativo o texto postado, tenho uma dúvida quanto à incidência dos arts 273 e 461, § 3º: se "A hipótese do artigo 461 tem pertinência somente com o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer" e com a obrigação de dar coisa distinta de dinheiro (art. 461-A, §3º), é correto concluir que os requisitos mais rígidos do art. 273 (prova inequívoca) estão restritos ao deferimento de tutela antecipada em processo que versa sobre obrigação por quantia certa? Aproveito para louvar-lhe pela iniciativa de manter este blog, que tem sido de grande valia para mim ao longo dos anos. Abraços!

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