segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Execução: primeiros apontamentos



Em Teoria Geral do Processo, quando estudamos as primeiras classificações sobre a atividade desenvolvida pelas partes e pelo juiz, percebemos, de forma bastante singela, que há situações em que a preocupação das partes é tentar demonstrar ao magistrado o direito que alegam possuir. Em contrapartida, o magistrado preocupa-se em investigar os fatos narrados na petição inicial e na contestação, para, ao fim, inteirado quanto a certeza dos fatos, atribui o bem da vida ao autor ou ao réu.

Essa atividade corresponde ao que a doutrina apelidou, justamente, de processo de conhecimento, expressão também adotada pelo direito positivo, que corresponde, no caso de procedência do pedido do autor, a sentenças de natureza declaratória, constitutiva, condenatória (a que depois Pontes de Miranda acrescentou duas novas categorias, executiva e mandamental).

Além da atividade de cognição que visa ao acertamento do direito das partes, há, no âmbito do processo civil, outra atividade jurisdicional, que já parte da certeza do direito (decorrente da investigação que o magistrado realizou ou da  presunção atribuída pelo ordenamento positivo a certos títulos), a que o eminente professor Celso Neves apelida de atividade jurissatisfativa, e que não se limita apenas a  procurar a certeza quanto aos fatos para atribuir no campo normativo, o bem da vida a A ou a B, mas, sim, a provocar, no mundo sensível, uma alteração de situação tal que implique a efetiva atribuição do bem da vida ao vencedor da demanda.
Essa atividade jurissatisfativa é exercida por meio de técnicas executivas, normalmente, porém não necessariamente, dentro de um processo de execução, e tem recebido novo apelido quando decorre de uma sentença proferida no processo de conhecimento: cumprimento de sentença.

É certo que o código de processo civil ainda em vigor tem, no curso das alterações por que passou, desde 1994, suprimido, sempre que pode, tanto a expressão sentença condenatória quanto execução de sentença, como se o legislador reformista estivesse tentando expurgar do ordenamento positivo seres malditos, capazes de gerar danos à sociedade, responsáveis por todas as mazelas sofridas pela prestação tardia da atividade jurisdicional. Por certo que essas expressões não possuem a força nefasta que lhes é atribuída, nem a sua supressão é capaz de eliminar ou alterar a natureza da atividade executiva, a ser realizada pelo Estado-juiz como fito de dar efetividade, no mundo dos fatos, àquilo que foi decidido no plano normativo (da norma jurídica individual apelidada de sentença). Diz-se, por isso, normalmente, que o processo de conhecimento o juiz caminha dos fatos para a norma e, no processo de execução, caminha da norma para os fatos.

O étimo da palavra ajuda a compreensão do fenômeno: execução, como lecionava o saudoso Alcides de Mendonça Lima, corresponde pelo sentido ao verbo latino exsèqui, mas provém da forma românica executare (pelo particípio exsecutus).  A raiz seq ou sec indica o sentido de seguir, conseguir, executar, execução, perseguir... (conferir, Comentários, vol. VI, tomo I, Forense, 1977, p. 20). Modernamente, e sem muita precisão técnica, podemos arrolar como executiva toda atividade processual tendente a realizar efetivamente o direito daquele que, por ato  judicial ou por outro título legitimante,  tem o direito de impor a outrem que com ele esteja em relação jurídica uma conduta positiva ou negativa, por vontade própria ou por constrangimento estatal. De fato, promovida a execução, por meio da qual foi exigida da parte passiva uma obrigação de fazer, não fazer, dar e pagar (e a obrigação de pagar nada mais é do que uma especial forma de obrigação de dar), o executado pode simplesmente aquiescer a cumprir a obrigação constante no título executivo (judicial ou extrajudicial) ou pode ignorar ou, até, resistir à pretensão executiva exercida pelo suposto credor.
Na hipótese da indiferença ou resistência à pretensão exercida pelo credor, caberá ao Estado-juiz lançar mão do aparato da força legítima para realizar o direito do credor. Os meios de pode valer-se o Estado para consecução do objetivo execucional são vários, e sua utilização dependerá do tipo da prestação obrigacional perseguida em juízo.  Fala-se, em sede de doutrina, em execução própria e execução imprópria, dependendo da utilização da técnica A ou da técnica B, classificação que, a nosso ver não colabora em nada para fins da compreensão do fenômeno executivo. Fala-se, também, e às vezes no mesmo sentido,  de execução direta e indireta, para caracterizar a atividade do Estado-juiz. No primeiro caso, incidindo de forma imediata sobre o patrimônio do executado, por meio da sub-rogação do Estado em alguns dos bens do executado cujo valor seja capaz de honrar o crédito perseguido. No segundo caso, execução indireta, cogita-se de atividades do Estado que, sem incidir imediatamente sobre os bens do devedor, são capazes de infligir-lhe receios suficientes que o estimulem a cumprir a obrigação. São técnicas de coerção, de que podem ser mencionados, como exemplo, o preceito cominatório, multa cominatória, astreintes, e a prisão do devedor por alimentos.
Poder-se-ia pensar, na execução direta, em técnicas de desapossamento, como, por exemplo, nas execuções de dar (art. 621), por meio da expedição de mandado de imissão na posse de bem imóvel, ou do mandado de busca e apreensão, na execução de dar coisa móvel.
Poder-se-ia pensar, também, na possibilidade da transformação, em situações tais como aquelas decorrentes da execução de obrigação de fazer infrutífera, em que há a convolação da obrigação original em obrigação de pagar, já porque a obrigação foi prestada por terceiro ou realizada pelo próprio credor, já porque foi substituída pelo pagamento em pecúnia dada a impossibilidade do adimplemento da obrigação original.
Na execução de obrigação de pagar, o Estado-juiz pode valer-se da técnica do desconto em folha, sobretudo quando se tratar de execução por prestação alimentícia. Na hipótese de sub-rogação, relativa à generalidade das execuções por quantia certa, pode ocorrer a expropriação do bem, com uma das seguintes consequências: (i) o credor exequente fica com o bem para si, ocorrendo, aí, a figura da adjudicação; (ii) o credor requer ao magistrado que seja deferida a alienação do bem pro particular; (iii) o credor requer que o bem seja levado á hasta pública, leilão ou praça; (iv) o credor fica com o bem em usufruto até a completa satisfação do crédito exequendo.
Princípios que regem a execução
É claro que o direito é um sistema de regras; não há, entretanto, que desconsiderar os princípios que ornam o ordenamento e que são capazes de elucidar o alcance e dimensão das regras e que colaboram decisivamente para a sua correta interpretação e aplicação. Vale a ressalva de que são aceitas aqui, sem maior juízo crítico, algumas normas diretamente encartadas no Código de Processo Civil, que, para parcela da doutrina talvez pudessem ser consideradas como normas-regra e não como normas-princípio.
São estes os princípios normalmente mencionados nos livros de doutrina: princípio do título, princípio da autonomia, princípio da patrimonialidade, princípio da máxima coincidência possível, princípio da menor onerosidade, princípio da disponibilidade, sendo certo que os tratadistas e manualistas não se ajustam a respeito de quais e quantos são esses princípios.
Princípio do título
É velha a lição da doutrina: nulla executio sine titulo, para significar que o título executivo é o bilhete de ingresso da execução. Sem ele, não há execução que possa prosperar. Há, em sede doutrinária, larga discussão sobre a natureza  do título executivo, ora afirmando-se trata-se de documento, ora de ato documentado. Araken de Assis bem demonstrou a insuficiência de ambas as teorias, não sendo necessário, nas dimensões deste trabalho, adunar outros argumentos além daqueles já esgrimidos pelo processualista gaúcho.
Título executivo para os fins de proporcionar o início da execução será somente aquele a que a lei atribuir essa condição. Particulares não podem criar títulos executivos além dos assim considerados pela lei federal. No nosso direito processual civil, os títulos executivos podem ser judiciais (sentenças/acórdãos e decisões interlocutórias que antecipam os efeitos da tutela), especificados no art. 475-N do Código de Processo Civil e extrajudiciais, tais assim os definidos no art. 585 do Código de Processo Civil, além daqueles criados na robusta legislação extravagante a respeito do assunto.
Ao assunto voltaremos de forma pormenorizada logo após o exame dos demais princípios.
Princípio da autonomia
No auge do cientificismo do Direito Processual civil, cristalizou-se o entendimento de que o processo de execução possuía total autonomia em relação ao processo de conhecimento. As raízes desse entendimento são profundas e, provavelmente decorrem das origens romanistas do nosso direito e da histórica desconfiança dos iluministas franceses e relação aos juízes (que compravam seus cargos).
Nessa vereda, o Código de Processo Civil de 1973 na sua versão original, possuía três livros iniciais, cuidando cada um de um tipo de tutela, dotada de autonomia: o livro I para o processo de conhecimento; o livro II para o processo de execução; e o livro III para o processo cautelar, além do livro IV para os procedimentos especiais e o V para disposições finais e transitórias, que escaparam da taxionomia inicial.
Dentro dessa concepção, elaborada à imagem e semelhança de Liebman, o processo de execução possuía absoluta autonomia em relação ao processo de conhecimento. A execução, mesmo se consequente a um processo de conhecimento em que proferida sentença condenatória, supunha, sempre, a necessidade da instauração de uma nova relação processual (agora executiva) com o objetivo de realizar o direito conferido ao credor no processo de conhecimento. Começava-se um novo processo.  Não por outro motivo, o legislador editara, na versão original do art. 463 (Livro I do CPC), norma asseverando: ao publicar a sentença de mérito, o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional.
É verdade que os fatos não pedem licença a modelos teóricos: a parte que vai a juízo buscar indenização por danos causados ao seu patrimônio, não quer obter uma sentença condenatória, em que o devedor seja reconhecido como tal e instado a reparar o prejuízo. Essa separação não faz nenhum sentido para o autor. O que ele efetivamente almeja é obter no mundo sensível, no mundo real, uma situação que efetivamente signifique que o prejuízo foi ressarcido, apenas e tão somente isso. Não interessa a ele obter uma sentença condenatória e, após, iniciar novo processo, embora de outra natureza, até porque a experiência demonstrou que a consequência prática da eleição desse modelo autonomista era uma grossa demora na entrega do bem da vida, na conclusão da chamada atividade jurissatisfativa.
Com o advento das leis 8.952, de 1994, 10.444, de 2002, 11.232, de 2005, que instituiu um processo de conhecimento em que a última fase é o exato cumprimento (rectius, execução) da sentença, apelidado de processo sincrético, não parece fazer muito sentido falar em princípio da autonomia do processo de execução. Houve, com o advento das leis antes mencionadas, uma clara redução do âmbito de vigência material do Livro II do Código de Processo Civil de 1973, que regia, na sua versão original, toda a execução por crédito (fosse decorrente de título judicial, fosse decorrente de título extrajudicial) e  hoje regula apenas e tão somente a execução por título extrajudicial e, por outra razões, a execução da sentença condenatória contra a fazenda pública e contra o devedor de alimentos.
Autonomia haverá, portanto, somente em relação a essas últimas espécies de execução. Registre-se, por honestidade acadêmica, que o professor Araken de Assis oferece resistência à desconsideração do princípio da autonomia mesmo naquelas hipóteses em que houve integração da fase executiva ao processo de conhecimento, identificando, aí, pelo menos uma espécie de autonomia funcional (Manual da Execução, 14ª edição, Revista dos Tribunais, p. 110).
 princípio da patrimonialidade
Também apelidado de princípio da responsabilidade patrimonial, esse princípio quer significar que a execução dos tempos atuais possui o caráter real e não pode mais incidir sobre o corpo do devedor. A rigor, essa é uma conquista do vetusto direito romano. Com efeito, desde 326 a.C. que foi editada a Lex Poetelia Papiria para impedir a execução sobre o corpo do devedor civil. Até então, o credor poderia até mesmo matar o devedor inadimplente, ou vendê-lo como escravo trans tiberim (além do Rio Tibre); após a edição da lei, vedada a manus iniectio, estabeleceu-se a ideia de execução de caráter exclusivamente patrimonial, que hoje vem consignada no art. 591 do CPC: o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as estrições estabelecidas em lei.
Vale o apontamento de que esse princípio encontra exceções e abrandamentos no próprio Código de Processo Civil, consistentes na prisão de devedor por alimentos e nas técnicas executivas de que cogita o art. 461, na sua redação atual, que permite ao magistrado a adoção de várias medidas que extrapolam as fronteiras da patrimonialidade e ingressam na seara da pessoalidade: v.g., remoção de coisas e pessoas.
 princípio da máxima coincidência possível
A ideia que anima o princípio é a de que o credor que tem razão deve obter, com a execução, exatamente aquilo a que tem direito, tal como consignado na sentença ou no título executivo extrajudicial. O Estado deve assegurar-lhe, sempre que possível, esse resultado.
É certo que, algumas vezes, a prestação ordinariamente exigida se tornar impossível, ou porque a coisa a ser entregue se perdeu, pereceu, ou a obrigação a ser prestada é infungível e encontra invencível resistência por parte do devedor. Em situações que tais, deve o Estado dar ao credor, como diretor do processo executivo, a solução mais próxima da ideal (art. 461, caput) “que assegurem o resultado prático equivalente”, ou, na impossibilidade, permitir a convolação em indenização pecuniária, se assim o desejar o credor.
  princípio da menor onerosidade
O princípio da menor onerosidade possível tem pertinência com a ideia de que a execução visa à satisfação do direito do credor sem que isso signifique, entretanto, que deva ser instrumento de sua vingança pessoal. Não por outro motivo, o art. 620 do CPC deixa claro que, quando a execução puder ser realizada por mais de uma forma, o juiz deve determinar que seja feita pelo modo menos gravoso para o devedor.
A menor onerosidade conecta-se com a ideia do respeito à dignidade da pessoa humana, no sentido de que a execução não pode e não deve ser realizada quando, para a realização do direito de crédito do exequente, o devedor tiver de ser reduzido à condição análoga à de escravo, sem o mínimo necessário para sua subsistência.
Sabiamente, o legislador processual para atingir esse desiderato, colocou fora do alcance da execução certas parcelas patrimoniais do devedor (art. 649) que lhe garantam a condição humana, declarando, sobre tais bens, a absoluta impenhorabilidade, isto é, a impossibilidade de sobre eles incidir constrição do Estado para o fim da satisfação de eventual direito do credor.
 princípio da disponibilidade
A execução existe para satisfação do direito do credor. Não se lhe pode impor, entretanto, que lance mão do processo executivo, nem que continue na condução daquele que haja começado. Não por outro motivo, dispõe o CPC, no art. 569: o credor tem a faculdade de desistir de toda a execução ou de algumas medidas executivas. Fique claro, entretanto, que, se o executado houver oposto embargos à execução (isto é, uma ação de conhecimento, de natureza incidental, que normalmente visa a desconstituir o título ou demonstrar a sua inexigibilidade) será necessária a sua concordância dado que, a partir do ajuizamento da demanda incidental, também o executado passou aa ter direito a uma prestação jurisdicional sobre o título executivo que amparava a execução.
Depois eu conto o resto.
 
 

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