Já apontamos, em
outro momento, que a indiferença ou de resistência à pretensão exercida pelo
credor pode suscitar a provocação ao Estado-juiz para que esse lance mão do aparato
da força legítima para realizar o direito creditório. Os meios de que pode
valer-se o Estado para consecução do objetivo execucional são vários, e sua
utilização dependerá do tipo da prestação obrigacional perseguida em juízo.
Fala-se, em sede de doutrina, em execução própria e execução imprópria,
dependendo da utilização da técnica A ou da
técnica B, classificação que, a
nosso ver não colabora em nada para fins da compreensão do fenômeno executivo.
Fala-se, também, e às vezes no mesmo sentido,
de execução direta e indireta, para caracterizar a atividade do
Estado-juiz. No primeiro caso, incidindo de forma imediata sobre o patrimônio
do executado, por meio da sub-rogação do Estado em alguns dos bens do executado
cujo valor seja capaz de honrar o crédito perseguido. No segundo caso, execução
indireta, cogita-se de atividades do Estado que, sem incidir imediatamente
sobre os bens do devedor, são capazes de infligir-lhe receios suficientes que o
estimulem a cumprir a obrigação. São técnicas de coerção, de que podem ser
mencionados, como exemplo, o preceito cominatório, multa cominatória, astreintes, e a prisão do devedor por
alimentos.
Poder-se-ia
pensar, na execução direta, em técnicas de desapossamento, como, por exemplo,
nas execuções das obrigações de dar (art. 806, § 2º), por meio da expedição de
mandado de imissão na posse de bem imóvel, ou do mandado de busca e apreensão,
na execução de dar coisa móvel.
Poder-se-ia
pensar, também, na possibilidade da transformação, em situações tais como
aquelas decorrentes da execução de obrigação de fazer infrutífera, em que há a
convolação da obrigação original em obrigação de pagar, já porque a obrigação
foi prestada por terceiro ou realizada pelo próprio credor, já porque foi
substituída pelo pagamento em pecúnia dada a impossibilidade do adimplemento
original. É com este quadro que nos ocupamos no presente artigo: obrigações de
fazer e obrigações de entregar coisa.
Conceito de obrigação
Lançados esses elementos
introdutórios, e esclarecido que a investigação centra-se na execução das obrigações
de fazer e não fazer e nas obrigações de dar, sejam as decorrentes de título
judicial, sejam as decorrentes de título extrajudicial, convém traçar algumas
linhas preparatórias sobre o direito obrigacional. Deveras, somente uma sólida
base teórica haurida no direito civil permite a compreensão adequada da ideia
de obrigação e de seu cumprimento.
Obrigação, ou
direito pessoal, é, conforme clássico magistério de Josserand[i],
uma relação jurídica que atribui, a uma ou mais pessoas, a posição de devedores frente a outra ou outras, que
desempenham o papel de credores e a
respeito dos quais estão obrigadas a uma prestação, já positiva (obrigação de
dar ou de fazer), já negativa (obrigação
de não fazer).
É preciso, desde
logo, vincular o conceito de obrigação ao de relação jurídica e, ao mesmo
tempo, desvinculá-la da ideia de contrato. É certo que contrato e obrigação são
termos que podem caminhar e até caminham juntos na seara do Direito, mas um não
se reduz ao outro em nenhuma circunstância, nem
na doutrina nacional (por todos, ORLANDO GOMES), nem na doutrina alienígena.
HENRI DE PAGE, sem favor nenhum o maior civilista
belga, bem explicita o discrímen que deve ser feito, nestes termos:
Em realidade obrigação e contrato são
duas noções muito distintas. A obrigação é o gênero, e o contrato, a espécie.
Há uma quantidade de obrigações que estão fora dos contratos. Falando de
modo estrito, o contrato, ou convenção, não é ele mesmo uma obrigação, mas
uma fonte de obrigações. Ele tem por efeito seja provocar o nascimento
de obrigações entre partes, seja de modificar, seja de extinguir obrigações já
existentes.[ii]
(tradução livre)
O conceito de obrigação é muito mais largo, muito mais
vasto, do que o de contrato. Nesse sentido, ROBERTO RUGGIERO, ilustre professor
da Universidade Real de Roma, deixa assentado que “obrigação, na sua mais larga
acessão (sic), é uma palavra que
exprime qualquer espécie de vínculo ou de sujeição da pessoa qualquer que seja
sua fonte ou seu conteúdo.”[iii]
Mais bem explicando, o contrato, como exprimiu DE
PAGE, é uma fonte (não a única!), que permite a criação de obrigações, as
quais, se válidas, somente se extinguem pela via normal do adimplemento, ou
pelo cumprimento de obrigação substitutiva (indenização), ressalvada a hipótese
de se tratar de obrigação impossível sem culpa do devedor. É claro, nas
obrigações impossíveis, caberia discutir se a impossibilidade era contemporânea
à contratação (o que poderia redundar na invalidade do contrato), ou se era
impossibilidade sucessiva, o que não exime o sujeito passivo de alguma espécie
de adimplemento, ainda que mediante atendimento de pedido subsidiário em
eventual ação judicial.
As obrigações de fazer e de dar: distinção e interferência do
momento
A distinção
entre obrigações de fazer e de dar é tema que vem torturando a doutrina desde priscas eras, não sendo matéria de
fácil desate. Tem sido dito que toda obrigação consiste numa prestação de
fazer, um facere, no sentido de que,
muitas vezes, o legitimado passivo primeiramente faz a coisa para depois dá-la
ao legitimado ativo. Admita-se,
entretanto, que não exista uma única linha discriminatória. Em algumas
situações, as fronteiras podem ser mais claras, mas parece certo afirmar que,
em muitas circunstâncias, a zona demarcatória não tem linhas muito bem
definidas. A obrigação de dar supõe um ato de transferência de posse ou
propriedade, enquanto que a obrigação de fazer consiste num agir humano, um
serviço do homem, cujo resultado é a produção de certo bem, ou a realização de
certos “fatos” pelo devedor, em benefício do credor.
O saudoso Alcides de Mendonça Lima, amparado em Carvalho de Mendonça (M.I.) gostava de
evidenciar que a distinção entre uma coisa e outra, justamente para exigir o
seu implemento, está condicionada ao momento em que se propõe a execução
pertinente. Se a conduta processual é tomada quando ainda não feita a coisa, a
execução deve seguir os moldes de uma obrigação de fazer. Se, entretanto, o
obrigado já confeccionou o bem e não o entregou, a conduta correta é a propositura
de uma ação de execução de obrigação de dar.
Carvalho de Mendonça sugere uma
interessante forma de distinguir uma da outra.
Deveras, ao examinar as obrigações de dar coisa certa, formula esta
consideração: “A palavra dar em
direito de crédito tem um sentido geral exprimindo a obrigação de transferir,
não somente a propriedade, como também a posse. Tal expressão constitui o
perfeito antagonismo das obrigações de dar com as de fazer e não-fazer.”[iv],
que não exprimem, isoladamente, a necessidade da transferência.
Noutra vereda,
convém alertar que o Código de Processo Civil ficou meio indeciso sobre a forma
ideal de tratar desse assunto. Deveras, devemos ter presente, no Direito
brasileiro, que as obrigações de fazer, não fazer, e dar (o código prefere “entregar
coisa”) ora decorrem de um título executivo judicial, ora decorrem de um título
executivo extrajudicial. No primeiro caso, trata-se de cumprimento de sentença
(rectius, execução de sentença) que
foi regrado no Livro I, Título II da
Parte Especial. Pois bem, em um único
capítulo (VI), o legislador cuidou “do cumprimento de sentença que reconheça a
exigibilidade de obrigação de fazer, de não fazer ou de entregar coisa”.
No segundo caso,
concernente ao processo de execução (leia-se, execução de título
extrajudicial), tratado também na Parte Especial, Livro II, Título II, o
legislador tratou da matéria em dois capítulos diversos: no Capítulo II, cuidou
da execução para entrega de coisa, enquanto que no capítulo III cuidou da
execução das obrigações de fazer e não fazer.
Quando trata de
título judicial, regula primeiramente o cumprimento de sentença que reconheça a
exigibilidade de obrigação de fazer ou não fazer. Quando trata de título
extrajudicial, cuida em primeiro lugar da execução para entrega de coisa certa
e incerta.
Isso é mera
escolha do legislador. O que importa é ter presente que às vezes o dar implica um prévio fazer e que a
escolha do procedimento adequado está vinculada ao momento da propositura da
ação.
DA OBRIGAÇÃO DE
FAZER E NÃO FAZER
O código de
Processo civil estabeleceu, no art. 497 e seguintes, o comando relativo ao
julgamento das ações relativas às prestações de fazer, não fazer e de entregar
coisa. Já aí o legislador estabeleceu, para o caso de procedência do pedido, o
agir do magistrado condutor do feito:
(i) conceder a tutela específica vindicada na inicial; (ii) determinar
providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático
equivalente.
A
origem desse regramento, ao que me parece, é um anteprojeto de alteração do
CPC/1973, contributo esse que foi oferecido à crítica da comunidade acadêmica
em fins do ano de 1985. De fato, a comissão de processualistas que dele se
encarregou propunha a inserção de um artigo, ensartado no Livro III, "Do Processo de
Cognição Sumária", cujo art. 795-A, dispunha, in verbis:
"Este
livro disciplina o processo cautelar, seu procedimento e o das medidas
provisórias, da antecipação da tutela e das providências assecuratórias de
direito material".
Nesse
Livro, a comissão encarregada do anteprojeto lançou um dispositivo, cuja
semelhança com o regramento atual não deixa margem a dúvida. Leia-se, ad litteram:
Capítulo A-5
"Art. 889-A.
Aquele que, por lei ou convenção, tiver direito de exigir de outrem que se
abstenha da prática de algum ato, tolere ou permita alguma atividade, ou preste
fato, poderá pedir a ao juiz que defira a tutela específica da obrigação ou
determine providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do
adimplemento.
§ 1º A conversão da
obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor
ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático
correspondente." (Com igual redação, Código de Defesa do Consumidor, art.
84, § 1º.)
§ 2ºA indenização por
perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287)
§ 3º Sendo relevante
o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do
provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após
justificação prévia, citado o réu.
§ 4º O juiz poderá,
na hipótese do § 3º, ou na sentença, impor multa diária ao réu,
independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a
obrigação, fixando prazo razoável para cumprimento do preceito.
§ 5º Para a tutela
específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz
determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de
coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além
da requisição de força pública."
Esse material foi
aproveitado pelo legislador do Código de Defesa do Consumidor (art. 84) e,
após, com modificação para pior, serviu de inspiração para a nova redação do
art. 461 do CPC/1973 (alteração datada de 13 de dezembro de 1994), que, com
alguns corretos ajustes redacionais, comparece no novo código como sendo o art.
497, sob a epígrafe: Do Julgamento das Ações Relativas às Prestações de Fazer,
de não Fazer e de Entregar Coisa.
[i] JOSSERAND,
Louis. Derecho Civil. Tomo II, vol. 1, p.2,trad. para o espanhol por Santiago
Cunchillos y Manterola.
[ii] DE PAGE, Henri. Traité Élémentaire de Droit
Civil Belge. Tome Deuxième.
Bruxeles: Établissements Émile Bruylant, 1948, 2ème édition
[iii]
RUGGIERO, Roberto. Instituições
de Direito Civil. Vol. III. Tradução da 6ª edição italiana por Paolo Capitanio.
Campinas: Bookseller. 1999, p. 33.
[iv] Mendonça,
Manuel Inácio Carvalho de. Doutrina e Prática das Obrigações. Tomo. I. Rio de
janeiro: Forense, 1956. 4ª. edição. Aumentada e atualizada por José de Aguiar
Dias. p. 165
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