segunda-feira, 15 de abril de 2019

EXECUÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER, NÃO FAZER E DE DAR





Já apontamos, em outro momento, que a indiferença ou de resistência à pretensão exercida pelo credor pode suscitar a provocação ao  Estado-juiz para que esse lance mão do aparato da força legítima para realizar o direito creditório. Os meios de que pode valer-se o Estado para consecução do objetivo execucional são vários, e sua utilização dependerá do tipo da prestação obrigacional perseguida em juízo. Fala-se, em sede de doutrina, em execução própria e execução imprópria, dependendo da utilização da técnica A ou da técnica B, classificação que, a nosso ver não colabora em nada para fins da compreensão do fenômeno executivo. Fala-se, também, e às vezes no mesmo sentido,  de execução direta e indireta, para caracterizar a atividade do Estado-juiz. No primeiro caso, incidindo de forma imediata sobre o patrimônio do executado, por meio da sub-rogação do Estado em alguns dos bens do executado cujo valor seja capaz de honrar o crédito perseguido. No segundo caso, execução indireta, cogita-se de atividades do Estado que, sem incidir imediatamente sobre os bens do devedor, são capazes de infligir-lhe receios suficientes que o estimulem a cumprir a obrigação. São técnicas de coerção, de que podem ser mencionados, como exemplo, o preceito cominatório, multa cominatória, astreintes, e a prisão do devedor por alimentos.

Poder-se-ia pensar, na execução direta, em técnicas de desapossamento, como, por exemplo, nas execuções das obrigações de dar (art. 806, § 2º), por meio da expedição de mandado de imissão na posse de bem imóvel, ou do mandado de busca e apreensão, na execução de dar coisa móvel.

Poder-se-ia pensar, também, na possibilidade da transformação, em situações tais como aquelas decorrentes da execução de obrigação de fazer infrutífera, em que há a convolação da obrigação original em obrigação de pagar, já porque a obrigação foi prestada por terceiro ou realizada pelo próprio credor, já porque foi substituída pelo pagamento em pecúnia dada a impossibilidade do adimplemento original. É com este quadro que nos ocupamos no presente artigo: obrigações de fazer e obrigações de entregar coisa.



Conceito de obrigação

Lançados esses elementos introdutórios, e esclarecido que a investigação centra-se na execução das obrigações de fazer e não fazer e nas obrigações de dar, sejam as decorrentes de título judicial, sejam as decorrentes de título extrajudicial, convém traçar algumas linhas preparatórias sobre o direito obrigacional. Deveras, somente uma sólida base teórica haurida no direito civil permite a compreensão adequada da ideia de obrigação e de seu cumprimento.

Obrigação, ou direito pessoal, é, conforme clássico magistério de Josserand[i], uma relação jurídica que atribui, a uma ou mais pessoas, a posição de devedores frente a outra ou outras, que desempenham o papel de credores e a respeito dos quais estão obrigadas a uma prestação, já positiva (obrigação de dar ou de fazer), já negativa (obrigação de não fazer).

É preciso, desde logo, vincular o conceito de obrigação ao de relação jurídica e, ao mesmo tempo, desvinculá-la da ideia de contrato. É certo que contrato e obrigação são termos que podem caminhar e até caminham juntos na seara do Direito, mas um não se reduz ao outro em nenhuma circunstância, nem na doutrina nacional (por todos, ORLANDO GOMES), nem na doutrina alienígena.

HENRI DE PAGE, sem favor nenhum o maior civilista belga, bem explicita o discrímen que deve ser feito, nestes termos:

Em realidade obrigação e contrato são duas noções muito distintas. A obrigação é o gênero, e o contrato, a espécie. Há uma quantidade de obrigações que estão fora dos contratos. Falando de modo estrito, o contrato, ou convenção, não é ele mesmo uma obrigação, mas uma fonte de obrigações. Ele tem por efeito seja provocar o nascimento de obrigações entre partes, seja de modificar, seja de extinguir obrigações já existentes.[ii] (tradução livre)

O conceito de obrigação é muito mais largo, muito mais vasto, do que o de contrato. Nesse sentido, ROBERTO RUGGIERO, ilustre professor da Universidade Real de Roma, deixa assentado que “obrigação, na sua mais larga acessão (sic), é uma palavra que exprime qualquer espécie de vínculo ou de sujeição da pessoa qualquer que seja sua fonte ou seu conteúdo.”[iii]

Mais bem explicando, o contrato, como exprimiu DE PAGE, é uma fonte (não a única!), que permite a criação de obrigações, as quais, se válidas, somente se extinguem pela via normal do adimplemento, ou pelo cumprimento de obrigação substitutiva (indenização), ressalvada a hipótese de se tratar de obrigação impossível sem culpa do devedor. É claro, nas obrigações impossíveis, caberia discutir se a impossibilidade era contemporânea à contratação (o que poderia redundar na invalidade do contrato), ou se era impossibilidade sucessiva, o que não exime o sujeito passivo de alguma espécie de adimplemento, ainda que mediante atendimento de pedido subsidiário em eventual ação judicial.

As obrigações de fazer e de dar: distinção e interferência do momento

A distinção entre obrigações de fazer e de dar é tema que vem torturando a doutrina  desde priscas eras, não sendo matéria de fácil desate. Tem sido dito que toda obrigação consiste numa prestação de fazer, um facere, no sentido de que, muitas vezes, o legitimado passivo primeiramente faz a coisa para depois dá-la ao legitimado ativo.  Admita-se, entretanto, que não exista uma única linha discriminatória. Em algumas situações, as fronteiras podem ser mais claras, mas parece certo afirmar que, em muitas circunstâncias, a zona demarcatória não tem linhas muito bem definidas. A obrigação de dar supõe um ato de transferência de posse ou propriedade, enquanto que a obrigação de fazer consiste num agir humano, um serviço do homem, cujo resultado é a produção de certo bem, ou a realização de certos “fatos” pelo devedor, em benefício do credor.

O saudoso Alcides de Mendonça Lima, amparado em Carvalho de Mendonça (M.I.) gostava de evidenciar que a distinção entre uma coisa e outra, justamente para exigir o seu implemento, está condicionada ao momento em que se propõe a execução pertinente. Se a conduta processual é tomada quando ainda não feita a coisa, a execução deve seguir os moldes de uma obrigação de fazer. Se, entretanto, o obrigado já confeccionou o bem e não o entregou, a conduta correta é a propositura de uma ação de execução de obrigação de dar.

Carvalho de Mendonça sugere uma interessante forma de distinguir uma da outra.  Deveras, ao examinar as obrigações de dar coisa certa, formula esta consideração: “A palavra dar em direito de crédito tem um sentido geral exprimindo a obrigação de transferir, não somente a propriedade, como também a posse. Tal expressão constitui o perfeito antagonismo das obrigações de dar com as de fazer e não-fazer.”[iv], que não exprimem, isoladamente, a necessidade da transferência.

Noutra vereda, convém alertar que o Código de Processo Civil ficou meio indeciso sobre a forma ideal de tratar desse assunto. Deveras, devemos ter presente, no Direito brasileiro, que as obrigações de fazer, não fazer, e dar (o código prefere “entregar coisa”) ora decorrem de um título executivo judicial, ora decorrem de um título executivo extrajudicial. No primeiro caso, trata-se de cumprimento de sentença (rectius, execução de sentença) que foi regrado no Livro  I, Título II da Parte Especial.  Pois bem, em um único capítulo (VI), o legislador cuidou “do cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer, de não fazer ou de entregar coisa”.

No segundo caso, concernente ao processo de execução (leia-se, execução de título extrajudicial), tratado também na Parte Especial, Livro II, Título II, o legislador tratou da matéria em dois capítulos diversos: no Capítulo II, cuidou da execução para entrega de coisa, enquanto que no capítulo III cuidou da execução das obrigações de fazer e não fazer.

Quando trata de título judicial, regula primeiramente o cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou não fazer. Quando trata de título extrajudicial, cuida em primeiro lugar da execução para entrega de coisa certa e incerta.

Isso é mera escolha do legislador. O que importa é ter presente que às vezes o dar implica um prévio fazer e que a escolha do procedimento adequado está vinculada ao momento da propositura da ação.

DA OBRIGAÇÃO DE FAZER E NÃO FAZER

O código de Processo civil estabeleceu, no art. 497 e seguintes, o comando relativo ao julgamento das ações relativas às prestações de fazer, não fazer e de entregar coisa. Já aí o legislador estabeleceu, para o caso de procedência do pedido, o agir do magistrado condutor do feito:  (i) conceder a tutela específica vindicada na inicial; (ii) determinar providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

A origem desse regramento, ao que me parece, é um anteprojeto de alteração do CPC/1973, contributo esse que foi oferecido à crítica da comunidade acadêmica em fins do ano de 1985. De fato, a comissão de processualistas que dele se encarregou propunha a inserção de um artigo,  ensartado no Livro III, "Do Processo de Cognição Sumária", cujo art. 795-A, dispunha, in verbis:

"Este livro disciplina o processo cautelar, seu procedimento e o das medidas provisórias, da antecipação da tutela e das providências assecuratórias de direito material".

                        Nesse Livro, a comissão encarregada do anteprojeto lançou um dispositivo, cuja semelhança com o regramento atual não deixa margem a dúvida. Leia-se, ad litteram:

Capítulo A-5

"Art. 889-A. Aquele que, por lei ou convenção, tiver direito de exigir de outrem que se abstenha da prática de algum ato, tolere ou permita alguma atividade, ou preste fato, poderá pedir a ao juiz que defira a tutela específica da obrigação ou determine providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1º A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente." (Com igual redação, Código de Defesa do Consumidor, art. 84, § 1º.)

§ 2ºA indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287)

§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.

§ 4º O juiz poderá, na hipótese do § 3º, ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para cumprimento do preceito.

§ 5º Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além da requisição de força pública."


                        Esse material foi aproveitado pelo legislador do Código de Defesa do Consumidor (art. 84) e, após, com modificação para pior, serviu de inspiração para a nova redação do art. 461 do CPC/1973 (alteração datada de 13 de dezembro de 1994), que, com alguns corretos ajustes redacionais, comparece no novo código como sendo o art. 497, sob a epígrafe: Do Julgamento das Ações Relativas às Prestações de Fazer, de não Fazer e de Entregar Coisa.


[i] JOSSERAND, Louis. Derecho Civil. Tomo II, vol. 1, p.2,trad. para o espanhol por Santiago Cunchillos y Manterola.
[ii]  DE PAGE, Henri. Traité Élémentaire de Droit Civil Belge. Tome Deuxième. Bruxeles: Établissements Émile Bruylant, 1948, 2ème édition
[iii] RUGGIERO, Roberto. Instituições de Direito Civil. Vol. III. Tradução da 6ª edição italiana por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller. 1999, p. 33.

[iv] Mendonça, Manuel Inácio Carvalho de. Doutrina e Prática das Obrigações. Tomo. I. Rio de janeiro: Forense, 1956. 4ª. edição. Aumentada e atualizada por José de Aguiar Dias. p. 165

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