domingo, 9 de dezembro de 2012

Julgamento do STF e perda de mandato parlamentar


Todos os amigos que acompanham minhas investidas nas redes sociais, em especial no Facebook, podem testemunhar que sempre torci, como cidadão, para que, a ser verdade o que a imprensa apregoava, todos os culpados fossem exemplarmente punidos, respeitadas as garantias constitucionais atribuídas a qualquer pessoal julgada no Brasil, sem part pris de qualquer espécie.
Acompanhei pela televisão a maioria das sessões de julgamento e, pela leitura das peças do processo que relator e revisor empreenderam, mantive contato com grande parte das provas produzidas, a ponto de concluir que a condenação era um imperativo do Direito, um resgate da cidadania e da dignidade do povo e da política deste País, tão vilipendiados, um e outra, nesta quadra republicana.
Coloca-se, agora, a questão relativa à perda do mandato dos parlamentares que foram apenados com sentença transitada em julgado. Discute-se, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, se a perda de mandato é automática, como quer o Ministro Relator e atual presidente da Casa, ou se depende de processo instituído no âmbito do parlamento, como quer o Ministro revisor.
 No âmbito da dissidência, o argumento externo, aquele que é mostrado à sociedade, decorre, ao que parece, de uma dupla regência constitucional, encartada nos artigos 15 e 55 da Carta Política, que reproduzo abaixo:
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
I - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;
II - incapacidade civil absoluta;
III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;
IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;
V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.
 
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
I - que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;
II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;
IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;
VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
..............
§ 2º - Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 3º - Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
 
Sabido dos simplesmente iniciados nos estudos de Direito, que ainda não ultrapassaram o 5º semestre do curso superior, não se podem presumir antinomias entre normas de um mesmo sistema (sobretudo normas que possuem a mesma idade e a mesma estatura, como se dá no caso presente). Cabe ao intérprete, em caso de conflito aparente, tentar identificar com exatidão o âmbito de vigência (material, pessoal, espacial e temporal) de cada uma para superar a hesitação inicial.
            Na hipótese em apreço, parece claro que a norma do art. 15, que está lançada no Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo IV, Dos Direitos Políticos, é aplicável a todos os brasileiros, em princípio. É dizer, qualquer brasileiro poderá perder seus direitos políticos como decorrência de sentença penal condenatória transitada em julgado. Como, então, excluir desse universo, os parlamentares condenados na ação penal 470? O raciocínio excludente é absurdamente simples e verdadeiro. O preceito normativo do art. 55, encartado no Título IV, da organização dos Poderes, Capítulo I, Do Poder Legislativo, Seção V, Dos Deputados e dos Senadores, estabeleceu critério diferente daquele para os comuns mortais e criou uma espécie de redução do âmbito de vigência pessoal da norma do art. 15, que vale para todos, menos, no caso, para deputados e senadores (se se tratasse de eventual crime praticado por presidente da república, comum ou de responsabilidade, a simples incoação da ação penal estaria subordinada à deliberação prévia da Câmara).
             Vale lembrar: Perderá o mandato o Deputado ou Senador, (VI) que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. Ocorre que o § 2º desse art. 55 (e parágrafos têm função de explicitar ou excepcionar o caput) deixa claro que, no caso do inciso VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
            Ora, ainda que, se decorresse exclusivamente da minha vontade, os condenados já devessem estar na cadeia e sem nenhuma espécie de provento ou subsídio pago pelos cofres públicos (i.e, pelo meu, pelo seu, pelo nosso dinheiro), o certo é que a norma do art. 55 não autoriza, de nenhuma forma, a perda automática de mandato de parlamentares como consectário de condenação imposta pelo Supremo Tribunal Federal. Antes que qualquer neoalguma coisa saque algum neoprincípio da cartola, que pode desde já ser apelidado de princípio do voluntarismo, aduzo que o art. 55 da Constituição, § 2º, estabelece regra de competência, que, portanto, é de interpretação estrita.
            Não há, aí, espaço para transformar o § 2º do art. 55 da Constituição em mera proposição sintática, sem regência alguma (regendo, quiçá, um conjunto vazio), apenas e tão somente porque os atuais ministros da corte resolveram, ao arrepio daquilo que defluiu da vontade do constituinte originário, que o STF seria um superpoder, acima dos demais e infenso a controles, apenas controlador.
            Para além do argumento externo, há uma luta (antigamente, dizia-se uma luta surda) franca e aberta, voluntarista, que pretende a afirmação do Poder Judiciário como fiador e concretizador da democracia ou de garantidor e implementador das condições de possibilidade do processo democrático. Não tenho mais idade para acreditar no mito do ditador bonzinho, nem creio que a sociedade brasileira, que ainda é jovem, mas não é burra, continue assistindo, num impávido estado de catatonismo, à importação de conceitos hauridos da Europa continental, certamente inaplicáveis ao Judiciário brasileiro (construído em outras bases) e que, se aplicados à nossa realidade, rompem perigosamente o delicado equilíbrio da separação de poderes.
            Os maiores arautos do novo papel do Judiciário são justamente ministros das cortes superiores e doutrinadores que almejam esses cargos, numa espécie nada subliminar de advocacia pro domo sua, que merece o repúdio da sociedade e o repensar das formas de nomeação e investidura dos juízes das cortes superiores.
            Quem quiser continuar a incensar justiceiros que buscam atuar para além dos poderes constitucionais que lhes são deferidos, que o faça. Eu, de minha parte, não abro mão da minha cidadania em favor de quem foi ungido ao poder, com mandato vitalício, sem minha participação, nem da maior parcela da sociedade brasileira.

13 comentários:

  1. Mesmo para um leigo, claro e preciso. Parabéns

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  2. Professor, concordo integralmente com seu texto, inclusive no que diz respeito à (barulhenta) luta pela proeminência do Judiciário sobre os demais Poderes.
    Como um apaixonado por história, analiso que a origem do dispositivo constitucional - que deixa ao Parlamento a decisão a respeito da perda do mandato - foi o receio dos constituintes de 88 em haver cassação de mandatos por via transversa. Lembremos que, em 87/88, era recente o fim da ditadura militar e ainda forte o trauma das cassações. O Constituinte pretendeu, com a norma, proteger a vontade popular.
    Passados mais de 24 anos da promulgação, caberia interpretar a Constituição, afastando a clara, ao menos para mim, intenção do legislador originário? Sou cuidadoso com tal movimento. Sei que a interpretação não deve ser apenas histórica, o que não justifica simplesmente desconsiderar essa abordagem.
    E lembro que o STF, em 2011 - sim, ano passado! -, discutiu a matéria e decidiu caber à Câmara dos Deputados definir a perda ou não do mandato (AP 481).
    Se é verdade ser possível interpretar a Constituição afastando-se da intenção do Legislador e de suas razões históricas, não me parece razoável ser tão mutável e dinâmica a realidade no intervalo de apenas doze meses, sob pena de parecer casuísmo.
    A propósito, segue o link para o acórdão da AP 481: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2258773

    PS. Na AP 481, chegou-se a argumentar nem caber ao STF provocar a Câmara, mas deixar o assunto para os partidos políticos.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Prezaod Ivo,
      Antes de mais nada obrigado. Depois, sim, o dado histórico é e sempre poderá fazer parte do sistema de interpretação. Pensei em fazer alusão a isso quando da elaboração do minitexto. Não o fiz justamente para não deixar que ele crescesse. Poderia, a esse respeito, lembrar que as declarações de direitos passaram a constar dos primeiros estatutos políticos como forma de preservação contra o statu quo anterior e ganharam a condição de perpetuidade. No caso da Constituição brasileira, esse não é o único receio que surgiu na carta política (o simples elenco de direitos do art. 5º o demonstra; da mesma forma, a primeira versão da Constituição Portuguesa também era eivada de defesas desse tipo, algumas das quais excluídas em revisões (constitucionalmente previstas)periodicamente realizadas.
      É claro que não se desconhece a possibilidade de mudança constitucional, quando as situações de fato no seio social a tanto impuserem. Esse é um postulado necessário de atualização das constituições, sobretudo das mais antigas, que regulavam estruturas sociais ou mais arcaicas ou menos complexas, cujas pautas relacionais se modificaram com o passar do tempo. Não é o caso, ao menos por enquanto, da Constituição brsileira que, para além de ser muito jovem, tem sido objeto de constante revisão por parte do nosso incansável poder constituinte derivado.
      Abraço.

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  4. Professor, parece-me ambígua a interpretação dos dois artigos em conjunto. Se por um lado o § 2º do artigo 55 se refere ao inciso VI, por outro não há especificação quanto ao inciso IV (que se refere à perda ou suspensão dos direitos políticos). Neste caso, em qualquer condenação em ação penal com sentença transitada em julgado, o sujeito perderia também os direitos político, de forma a se encaixar nos dois incisos. Este fato não gera um paradoxo? Gostaria de saber sua opinião sobre.

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  5. Prezado Professor,

    comungo da dúvida do colega acima. Penso que a suspensão dos direitos políticos, aludida no inciso IV, do art. 55, seja um consectário natural da condenação de certos crimes, caso contrário a existência de tal dispositivo legal seria inócua.
    Um grande abraço

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  6. Caro Professor Amaury,

    Claro, preciso e objetivo, como sempre...

    Com relação ao suposto conflito entre os incisos IV e VI e a situação aparentemente paradoxal que surgiria com o trânsito da sentença criminal, creio que o inciso IV se aplicaria, relativamente ao parlamentares federais, às hipóteses previstas nos incisos I, II, IV e V do art. 15 e, consequentemente, o inciso III do mesmo dispositivo teria pertinência com o inciso VI do art. 55, que logicamente o exclui, como o senhor mesmo já assentou...

    O curioso, a meu sentir, preciso aprofundar o estudo sobre o tema, seria a respeito da afirmação de ser efeito natural da sentença penal condenatória a suspensão dos direitos políticos. É a letra do art. 15, no qual não se prevê a distinção entre as sentenças penais que não suspendem e as que suspendem os direitos políticos.
    Passando à legislação infra, vê-se que o CP (arts. 91 e 92) não falam em direitos políticos, mas perda de mandato (cargo ou função...).
    A distinção entre as sentenças que importam em suspensão dos direitos políticos (e as que não) era feita pela legislação revogada pela reforma legislativa de 1984, que previa a suspensão dos direitos políticos como pena acessória (interdição de direitos) e que essa sempre se daria nas hipóteses em que fosse cominada penas privativas de liberdade. A interpretação corrente, então, era a de que as penas restritivas de direito não gerariam a suspensão dos direitos políticos...

    No entanto, como a redação do art. 15 não faz essa distinção, prevendo como consequência necessária de qualquer sentença criminal com trânsito em julgado a suspensão, e o CP não cuida do tema, pois só se refere a mandato, não há suporte legal para a distinção que alguns Ministros do STF estão tentando fazer, qual seja, a de que o inciso VI se aplicaria à hipóteses em que a sentença não suspender os direitos políticos.

    O que o senhor acha? Fui muito confusa no raciocínio?

    Abraços,
    Adriana Leineker

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    1. Ao contrário, Adriana. Está muito claro o pensamento. O estudo da História do consitucionalismo seria suficiente para dirimir as, digamos assim, "dúvidas" dos Ministros da casa.
      Em arremate, digo que gostaria de ver o parlamento determinar a perda do mandato de todos os parlamentares condenados, mas não posso concordar com a usurpação dessa competência!
      PS. Estou devedor de um comentário a um texto teu. Pagarei meu débito em breve.

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    2. Acredito que o passo que o STF não teve coragem de dar no julgamento do Caso Battisti dará, ao que tudo indica, com esse entendimento a respeito da perda automática do mandato... Dá medo...
      Quanto ao débito, sei que o senhor deve estar repleto de tarefas. Quando puder, é só me avisar que irei ao seu encontro lá na faculdade.
      Obrigada, Professor!

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  7. Prezados Anônimo e Antônio,
    Parece-me que os dispositivos são perfeitamente compatíveis, alguns até com história no constitucionalismo brasileiro. Vejamos: no primeiro comentário, que muito me honra, está expresso o entendimento de que, para haver coerência do sistema, o inciso IV do art. 55 (Perde o mandato de senador ou de deputado aquele que perder ou tiver suspensos os direitos políticos. Daí, a indagação sobre se com a condenação, o sujeito perderia também os direitos políticos, de forma a se encaixar nos dois incisos. Já o autor do segundo comentário, de forma mais incisiva, conclui que a suspensão dos direitos políticos (inc IV do art. 55) seria consectário natural da condenação. Caso contrário, a existência de tal dispositivo seria inócua.
    Respondo: não; no caso de deputados e senadores, nem a condenação implica a perda de direitos políticos, nem o dispositivo se torna inócuo. Quanto ao primeiro problema, deixei claro, no texto, que, pelo art. 15, a suspensão dos direitos políticos, de qualquer brasileiro, pode ocorrer, dentre outros motivos (quatro, para ser exato)pela condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem os efeitos da condenção, mas que, quando se tratasse de parlamentar, a perda do mandato somente poderia ser decidida pela respectiva casa, pelo voto secreto da maioria absoluta de seus membros. E por que assim acontece? Dada a necessidade de preservação do equilíbrio entre os poderes.Não fosse assim, a balança penderia para o lado do Judicário,justamenter o que tem maior défict de legitimidade. Para que se tenha uma ideia, até a simples instauração da persecução penal contra deputados e senadores depende de prévia licença do parlamento.Em troca, ninguém vê um juiz ser apeado do cargo que ocupa por deliberçaão da câmara ou do senado, ou do executivo. A não ser que se trate de crime de responsabilidade(art. 52).
    Da mesma forma, prezado Antônio, a regra não se tornaria inócua. Explico: há várias hipóteses de perda e suspensão de direitos políticos além da decorrente de condenação criminal (v.g, cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado, adveniência de incapacidade civil absoluta, recusa de cumprir obrigação a todos imposta, ou prestação alternativa) Disso, segundo penso, resulta claro, que a exigência do §2º do art. 55, de deliberação do parlamento, não esvazia o inciso IV que incidirá nas outra hipóteses. Fique claro que haverá, aí, a necessidade de um miniprocesso, de natureza declaratória, conduzido pela mesa da casa respectiva.
    Mais uma vez, obrigado pelo comentário e
    Um abraço do
    Amaury

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  8. Professor, a suspensão dos direitos políticos (em razão de condenação criminal), presente no artigo 15, é decretada automaticamente pelo STF, mesmo que a perda de mandato seja deliberada pela casa legislativa nesse caso de condenação criminal? Porque se a suspensão desses direitos for decretada, poder-se-ia invocar o inciso IV do artigo 55, que é tratado no § 3º desse mesmo artigo (e não mais no § 2º), onde diz que a perda do mandato será apenas DECLARADA pela mesa da casa legislativa?
    Obrigado, Professor Amaury.

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    1. Lendo sua resposta à um outro comentário acima encontrei minha resposta. Obrigado

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