sexta-feira, 1 de novembro de 2019

A Tutela Provisória no CPC 2015 e suas perplexidades

Jorge Amaury Maia Nunes
No artigo que inaugurou esta coluna, dedicamos um breve comentário ao Livro V, da Parte Geral do novo CPC, que cuida da Tutela Provisória (de urgência e de evidência), para indicar que, nele, pulularam inovações — em especial a estabilização da decisão do art. 304 —, não sendo ainda possível saber se as soluções preconizadas foram as melhores.
Convém, neste novo artigo, tentar verticalizar um pouco mais o exame do tema, ainda que com o risco de, mais tarde, rever o que estamos a escrever neste momento. Pecado maior do que o erro é a omissão deliberada. Vamos começar, então, com o que nos parece menos problemático e, após, avançaremos para a chamada vexata quaestio da estabilização da decisão e das possibilidades de objetá-la. Não será preocupação do presente exame a questão relativa à tutela de evidência (ou, como pretende o legislador processual, tutela “da” evidência), que ficará para outra oportunidade.
No novo CPC, pretendeu-se dar um tratamento único às tutelas de urgência, antecipatória e cautelar, como se ambas fossem provisórias. Afinal, este é o título do Livro V: Da Tutela Provisória, embora somente a tutela antecipada possua caráter autenticamente provisório. A tutela cautelar, no estrito sentido do termo, é temporária e não provisória, porquanto não será substituída por uma decisão definitiva sobre o mesmo mérito. É que o mérito da cautelar é específico (cabe no binômio periculum damnum irreparabile e fumus boni juris) e não se confunde com o mérito da ação a que se apelida de principal.
Provisória é a tutela antecipada que dá, agora, o bem da vida vindicado. E é provisória porque está em oposição à tutela definitiva, que é a fixada em sentença proferida após a realização de atividade cognitiva exauriente. É bem de ver que, sob os auspícios da reforma de fins de 1994, o legislador processual tratou de estender a chamada antecipação de tutela ao procedimento comum, sendo lugar comum na doutrina a afirmação no sentido de que, presentes os pressupostos autorizadores do art. 273, o juiz anteciparia os efeitos práticos da decisão que poderia vir a ser deferida. Em outras palavras, propiciaria a entrega o bem da vida no mundo físico, nada obstante, no mundo da criação da norma jurídica individual (sentença), a matéria ainda permanecesse em estado de pendência, à espera da realização da cognição exauriente.
Da simples regência da matéria no novo Código, e apesar do discurso ensaiado pelo legislador, percebe-se, primo ictu oculi, que essas duas tutelas continuam a ser diversas, ainda que se tenha tentado uniformizar os pressupostos para seu deferimento. O discurso é negado pela própria evidência normativa. Deveras, basta ter em conta que o legislador sentiu-se obrigado a abrir no Título II, do Livro V, três capítulos: o primeiro para disposições gerais; o segundo para cuidar da tutela antecipada requerida em caráter antecedente; e o terceiro para cuidar da tutela cautelar requerida em caráter antecedente, de cuja leitura percebe-se, claramente, a diferença do tratamento dispensado a um e outro tipo de tutela.
Ao que parece, o legislador pretendeu afastar-se do discrímen histórico — conforme antiga lição de Ovídio Araujo Baptista da Silva, no seu Do Processo Cautelar, 3ª. edição, Rio de Janeiro: Forense, 2001, pp. 13/14 — que havia, desde o direito medieval, entre os conceitos de periculum damnum irreparabile e periculum in mora, este último relativo a certas causas que, dada a sua simplicidade, relevância, ou urgência da matéria a ser examinada, a prudência e a lógica recomendavam que fossem tratadas por um procedimento sumário. O primeiro, perigo de dano irreparável, relativo a qualquer causa em que se impusesse uma resposta jurisdicional expedita, em decorrência da irrupção de um elemento de risco de dano iminente. Afirma Ovídio, ainda com arrimo na doutrina italiana, que o primeiro conceito responde ao risco da tardividade, enquanto que o segundo responde ao risco da infrutuosidade.
Em favor da separação conceitual, cabe lembrar, também, do clameur de haro (invocação a ROLLON, primeiro duque da Normandia), no direito francês, que tem vinculação com o periculum damnum irreparabile, mas não com o periculum in mora, como parece defluir da lição de GARSONNET (Traité Theorique et Pratique de Procédure, deuxième édition, tome huitième, Paris: Librairie de la Société du Recueil Géneral des lois et des arrêts, 1904, p. 284). Essas duas referências históricas, do direito francês e do direito italiano medieval, dão luzes bastante fortes da distinção que existe ou deve existir entre a tutela cautelar e a tutela da tardividade.
Como parece esmaecida a distinção entre os dois institutos, temos de lidar com o Código de 2015, com as cautelas devidas, e não esquecidos de que razões históricas iluminam a existência desses dois tipos de tutela.
Na regência do Código de 1973, a tutela cautelar pode ser instaurada antes ou no curso do processo principal, enquanto que a chamada antecipação de tutela pressupõe que já tenha sido aviado o processo principal, na medida em que esta, antecipação, é ato judicial do processo, externado por meio de uma decisão interlocutória que entrega ao autor, desde logo, os efeitos práticos obteníveis em uma eventual sentença de procedência, desde que o juiz entenda presentes os requisitos previstos no art. 273 (prova inequívoca, rectius, prova convincente, e verossimilhança da alegação, rectius, alto grau de probabilidade de a demanda ser resolvida em favor do autor).
No Código de 2015, dada a pretendida uniformização de regência, é possível, antes do aviamento da ação principal, tanto a formulação de requerimento de tutela antecipada, quanto o requerimento de tutela cautelar. Em outros termos, as duas modalidades de tutela podem ser requeridas em caráter antecedente.
Como a tutela cautelar antecedente ou preparatória já tem uma larga identificação nos fastos do Direito, os questionamentos sobre a sua adoção, também pelo novo código, não serão certamente de monta, nem parece que haverá alguma resistência de parte dos cultores do direito. O mesmo não se diga, entretanto, em relação à tutela antecipada requerida em caráter antecedente. De fato, o aspecto novidadeiro do procedimento engendrado trará muitas dúvidas e hesitações quanto ao alcance e à dimensão do novel instituto. Convém explicitar a regência do procedimento e os questionamentos que se oferecem à meditação.
Diz o artigo 303 do CPC de 2015 que, quando a urgência for contemporânea ao momento em que a ação pode ser proposta, o autor pode formular petição inicial em que conste somente o requerimento da tutela antecipada (desde que seja indicado qual pedido de tutela final será formulado em momento posterior), com a indicação da lide, do direito que se busca realizar, do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo (em certo sentido, trata-se de uma cópia parcial do art. 801 do CPC de 1973, que cuida da petição inicial do processo cautelar, aqui adaptado para o pedido de antecipação de tutela) e do valor da causa, que deverá considerar o pedido de tutela final. Há a possibilidade de emenda da inicial, no prazo de cinco dias, se o magistrado entender que não há nos autos, ainda, elementos suficientes para a concessão da tutela antecipada.
O legislador cuidou, aqui, de emenda da petição inicial. Hipótese diversa é a de aditamento. Com efeito, na petição de requerimento de tutela antecipada de que trata o art. 303, o autor deverá indicar, claramente, que pretende valer-se da regência do caput do artigo e que aditará a inicial, se concedida a antecipação, no prazo de quinze dias ou em outro maior que venha a ser concedido pelo magistrado. No aditamento, poderá complementar a argumentação, juntar novos documentos e confirmar o pedido de tutela final.
Se entender presentes os requisitos exigidos (probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo), o magistrado concederá a tutela antecipada, caso em que (i) o autor deverá aditar a inicial, como mencionado acima e, se não o fizer, o processo será extinto sem resolução de mérito; (ii) o réu será citado e intimado para a audiência de conciliação ou mediação de que trata o art. 334 do novo CPC. Se não chegarem a bom termo na audiência ou se esta não se realizar por desinteresse de ambas as partes, ou porque a natureza do direito em discussão não permite autocomposição, abrir-se-á o prazo para contestação.
Questão delicada é a que sugere a regência do art. 304, seguinte. De fato, esse fragmento da lei processual trata da “estabilização” da decisão que concede a antecipação de tutela, na hipótese de não-interposição do recurso de agravo de instrumento, caso em que, diz o § 1º, o processo será extinto. Daí decorre que haverá uma tutela não exatamente provisória, mas que também não é definitiva. O tratamento dispensado à matéria pelo legislador é algo exótico: pela letra da lei, se o réu não opuser recurso de agravo de instrumento, ainda que haja ofertado contestação, a decisão será estável. Então, qual o sentido de continuar com o processo de cognição exauriente? Nenhum.
Anote-se, a esse respeito, que o legislador, com certo receio da novidade que instituiu, não afirmou ser uma hipótese de extinção do processo com resolução de mérito, ou sem resolução de mérito. Preferiu ficar em perigoso silêncio. Ocorre que essa abulia legiferante, em vez de evitar ou apaziguar problemas teórico-práticos, teve o condão de suscitar uma miríade de intrincadas questões de difícil solução, tais como as debuxadas acima.
Uma primeira análise sugere, de logo, que ofende a lógica e o bom-senso, a regra que impõe seja o processo extinto, apenas pela falta de recurso, porque isso leva à inaceitável conclusão de que, num mesmo processo, a cognição precária deve prevalecer em relação à cognição verticalizada, exauriente, própria dos juízos ordinários. Ora, é da natureza dessas decisões proferidas em juízos meramente de probabilidade, a sua reversibilidade. Não por outro motivo, o art. 294 do novo CPC dispõe que a tutela provisória pode ser revogada ou modificada a qualquer tempo e sua execução segue as normas do cumprimento provisório da sentença (art. 297, parágrafo único).
Além disso, o texto da lei e a sua hesitação põem em evidência vários outros graves percalços que deverão ser sentidos quando da aplicação do procedimento em exame. O primeiro deles concerne ao fato de que não há, na doutrina do processo civil brasileiro, um conceito pronto do que seja tutela antecipada estável ou estabilizada. Parece ser algo mais constante do que a simples antecipação de tutela, precária, provisória, mas menos seguro do que a coisa julgada material. Tanto é assim que o próprio § 2º do art. 304 prevê a possibilidade de que qualquer das partes venha demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada.
Demandar no mesmo ou em outro processo, como parece sugerir MARINONI (Marinoni, Luiz Guilherme, et. al. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 317), numa espécie de simples prosseguimento da ação antecedente, ou em ação completamente autônoma, mas perante o mesmo juiz, como deflui da literalidade dos §§ 2º e 4º do art. 304? E se a parte não demandar no prazo decadencial de dois anos, qual a consequência? O que fazer em relação a essa decisão estável? Reconhecer o seu trânsito em julgado e admitir, a partir daí, a fluência do prazo para propositura de eventual ação rescisória, ou, de outro lado, permitir que aquele contra o qual foi produzida a tutela provisória possa discutir, em qualquer outro processo que não o de que trata o próprio art. 304, mas no mesmo grau de jurisdição?
Quanto a esses questionamentos, soa rigorosamente absurdo entender que um procedimento sumário (e é natural a criação de procedimentos sumários, de estrutura vária, no ordenamento jurídico) seja concebido de sorte a permitir a sua extinção, mesmo ante a oferta de contestação, pelo simples fato de não haver sido tirado recurso de uma decisão de natureza precária. Aduza-se, em favor de nosso entendimento, o fato de que a necessidade de contestar somente ocorrerá se frustrada a autocomposição e após o aditamento ofertado pelo autor (até porque, não ofertado o aditamento, o processo será extinto sem resolução de mérito, com cessação da eficácia da tutela antecipada que foi concedida), situação em que, pela lógica, terá ocorrido a ordinarização do procedimento, a sugerir a necessidade de realização de cognição exauriente.
Decorre do exposto acima que, sem embargo do texto expresso do art. 304, c/c § 1º do mesmo artigo, que dispõe sobre a extinção do processo se não houver interposição do recurso de agravo, a única possibilidade de interpretação que se conforma com o princípio do devido processo legal hospedado em nosso texto constitucional, e do respeito ao contraditório efetivo, princípio erigido em base dessa reforma processual, é aquela que privilegia o entendimento de que toda e qualquer forma de resposta do réu, em especial a contestação, é suficiente para (i) impedir a estabilização da tutela antecipada concedida e a extinção prematura do processo; e (ii) provocar o exercício da cognição exauriente por parte do órgão jurisdicional competente.
No concernente ao segundo questionamento, i.e, se houver efetiva extinção do processo porque ausentes recurso e respostas possíveis, sem que tenha ocorrido, também, no prazo decadencial de dois anos, a propositura da ação (§ 2º do art. 304, c/c § 5º do mesmo artigo) para rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada, o que acontecerá?
O legislador parece encaminhar o tema, de forma adrede, para inadmissão de formação da coisa julgada material (§ 6º do art. 304: a decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilização dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do § 2º deste artigo), mas com a criação de uma estabilidade da decisão que concedeu a antecipação que, após a fluência do prazo de dois anos, não encontraria meios de impugnação.
A perplexidade é grande. Deveras há uma espécie de fetiche que se impõe à doutrina brasileira, no sentido de que somente têm aptidão para produzir coisa julgada as decisões proferidas em processo de cognição exauriente, razão por que negava, peremptoriamente, que sentença proferida em processo cautelar (em que a cognição é sumária) fizesse coisa julgada material. Cabe registrar que esse entendimento encontrou bem sucedida oposição, sendo mesmo de crer serem em maioria os doutrinadores que acolhem a coisa julgada material nessa hipótese. Resenha feita, há mais de dez anos, por GELSON AMARO DE SOUZA, indicava o crescente número de doutrinadores que aderiam explícita ou implicitamente a esse entendimento (SOUZA, Gelson Amaro de. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002) e outros que, mesmo sem admitir explicitamente a formação da coisa julgada material, pregavam o cabimento da ação rescisória de sentença proferida em processo cautelar.
Admitindo, como admitimos, que a coisa julgada material se opera sobre o teor declaratório da decisão, parece-nos viável a formação de coisa julgada nos processos sumários, todos eles calcados, sejam quais forem os efeitos preponderantes da decisão proferida, em parte substancialmente declaratória. Em outras palavras, não é crível admitir como correto o raciocínio no sentido de que juízos de cognição sumária dispensam o teor declaratório da decisão. Antes de dar algo, antecipar algo, ou antecipar os efeitos práticos de algo, o magistrado, obviamente, declara as razões de fato e de direito que o autorizam a tanto, declara o que constitui o suporte que lhe permite a regulação da situação controvertida que lhe foi submetida a exame. É no mínimo uma petição de princípio afirmar que processos sumários não admitem sentença com força de coisa julgada.
É certo, entretanto, que o tema da coisa julgada em processos sumários (especificamente, dos processos sumários determinados) lamentavelmente não se comporta nos espaços angustos de um artigo com dimensões limitadas pela necessidade editorial, mas isso não obsta a anotação rápida no sentido de que não há nenhuma categoria lógica que a impeça essa ocorrência, como não impede, por exemplo, a formação de coisa julgada na ação de mandado de segurança (típico procedimento sumário), ou nos embargos de terceiro senhor e possuidor. Em outro momento, ao discutir a coisa julgada no novo CPC, exploraremos esse ponto de forma mais verticalizada.
Em arremate, que não queira o legislador apelidar de coisa julgada a estabilidade dessa decisão, tudo bem, mas isso não será óbice ao cabimento de ação rescisória, quando por outro motivo não seja, em face do que dispõe o § 2º do art. 966, do novo Código, que admite a rescisória, mesmo que não se trate de sentença transitada em julgado.

Ou isso, ou haverá de ser admitido o cabimento de outra ação de procedimento ordinário que não aquela mencionada no § 2º do art. 304, porque inocorrentes os efeitos próprios da coisa julgada (positivos e negativos) e, também, em homenagem ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, cujo menoscabo não está ao alcance do legislador processual.

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