terça-feira, 1 de maio de 2012

O ESTADO CONSTITUCIONAL - Parte I

Estado constitucional: nascimento e evolução


Já foi dito por muitos que as Constituições escritas são apanágio do Estado moderno . Com isso, situa-se o nascimento do Estado, como hoje se o concebe, a partir dos fins do Sec. XVIII. Observa CANOTILHO, porém, que a primeira tentativa de constituição escrita verificou-se ainda na INGLATERRA com o Agreement of the People (1647-1649), embora seja o Instrument of Government (1653), de Cromwell, considerado como a primeira verdadeira constituição escrita, aproximando-se das fórmulas constitucionais autoritárias da época contemporânea. Não se deve esquecer, também, que os dinamarqueses apontam como sua primeira Constituição a que foi editada no ano de 1.665, sob o reinado de Frederico III.

É certo, todavia, que a pré-história do Constitucionalismo vai bem mais longe. CANOTILHO, por exemplo, anota que alguns autores pretendem situá-la no século XIII, mais precisamente em 1215, quando os barões ingleses impuseram a João sem Terra a Magna Carta (Magna Charta Libertatum).

Talvez se possa retroceder um pouco mais na História. Na antiguidade Clássica, ARISTÓTELES já distinguia, consoante demonstra MEIRELLES TEIXEIRA , dentre as normas que constituíam a tessitura do Estado, a que denomina politeia e as normas comuns, nómoi, que se deviam subordinar às primeiras. Demais disto, o estagirita já tinha o seu próprio conceito de constituição, que seria "o princípio segundo o qual estão organizadas as autoridades públicas, especialmente aquela que é superior a todas e soberana." , conceito esse que, se analisado estritamente pela ótica do constitucionalismo de hoje, certamente padeceria do fato de assimilar constituição a governo, o que, aliás, é expressamente admitido pelo filósofo grego.

Nada obstante, tem-se por induvidoso que ARISTÓTELES já previa a partição do poder entre classes, base da teoria da constituição mista, que viria mais tarde a se associar ao conceito de separação dos poderes, o que representa irrefragável contribuição à formação do Estado Constitucional.

Admite-se, contudo, que o Constitucionalismo moderno é fruto do pensamento do final do século XVII e dos acontecimentos políticos da centúria subsequente: a independência dos Estados Americanos e a Revolução Francesa neste caso, a divulgação das ideias de LOCKE, naquele .

Não se olvide aqui a existência de dois contributos político-filosóficos igualmente importantes: a obra de MONTESQUIEU, especialmente o seu O Espírito das Leis, de 1747/48, e o trabalho de Emmanuel Sieyès, Qu'est-ce que le Tiers État?, publicado no início de 1789. Ambos influíram decisivamente para a evolução do constitucionalismo. Quanto ao primeiro, é conhecida de sobejo a importância da teoria da separação dos poderes para o moderno Direito Constitucional, que se cristalizou no artigo 16 da Constituição francesa de 1791, na parte pertinente à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: "Toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos do homem nem determinada a separação de poderes, não possui constituição." ; quanto ao segundo, deve-se-lhe a distinção, anteriormente apenas intuída por outros pensadores, entre poder constituinte e poder constituído, este delegado, incapaz de modificar as condições de sua delegação e, por isso mesmo, de alterar a constituição.

Não nasceu o Estado Constitucional moderno, permita-se-nos o truísmo, de uma sentada só. Foi fruto de lenta evolução dos costumes das sociedades políticas, as quais nem sempre caminhavam no mesmo diapasão. Fatores de toda ordem, sociais, geográficos, culturais, seguramente contribuíram para que essa caminhada não se processasse da mesma maneira. Não é desprezível, por exemplo, o registro de a Inglaterra, até por sua condição insular, ter desenvolvido uma monarquia parlamentar, ou experimentado uma curta República, quando no continente vigorava uma monarquia absolutista.

Essa diferente evolução do Estado Inglês foi provocada basicamente por fatores endógenos, da própria organização da sociedade inglesa. Daí a Magna Carta, de 1215, que, provocada pelos barões ingleses, gerou as primeiras limitações ao exercício do poder do monarca. No mesmo diapasão, a Petition of Rights, de 1628, deferida por CARLOS I , que se compara, no dizer de BURNS , à Magna Carta, como a segunda grande carta das liberdades inglesas.

O Instrument of Government de 1653, constituição elaborada por oficiais de OLIVER CROMWELL — O Lorde Protetor —, intitulado como a primeira constituição escrita, já se disse, foi um documento autoritário e de vida breve. Já em 1660 restabelecia-se a Monarquia na Inglaterra.

O outro evento importante da história do constitucionalismo inglês só veio a se dar com a Revolução Gloriosa de 1.688/89, quando foi deposto Jaime II, o último soberano da dinastia dos Stuarts. Foram convidados a assumir o trono a filha de JAIME II, MARIA , e seu marido GUILHERME DE ORANGE. Sua assunção ao trono, contudo, ficaria condicionada à aceitação do Bill of Rights que, mais do que uma declaração de direitos, representava profunda restrição ao poder de governo do monarca, significando o triunfo do parlamento sobre o rei, pondo fim à monarquia absoluta na Inglaterra.

As bases teóricas do constitucionalismo francês, já assentado, têm sustentação nas obras de MONTESQUIEU e de SIEYÈS, sendo certo, porém, que a primeira constituição escrita da França decorreu de um processo revolucionário sangrento, diversamente do que aconteceu na Gloriosa Revolução inglesa, quando as forças que alçaram GUILHERME DE ORANGE  ao poder não dispararam um tiro sequer. Convém consignar que a grande contribuição do constitucionalismo francês foi a difusão da ideia da necessidade da existência da garantia dos direitos do homem para que uma sociedade possa afirmar que possui constituição. Evoluiu-se, pois, do conceito primeiro de constituição como organização dos poderes do Estado para o de constituição como limitação desses mesmos poderes, por via do reconhecimento dos direitos do cidadão em face do Estado.

Não se olvide que o movimento pelo constitucionalismo francês recebeu também direta influência da independência das colônias inglesas do novo continente, num processo de retroalimentação: é que o constitucionalismo americano, de sua vez, buscou parte de sua base teórica no pensamento de MONTESQUIEU.

Para comprovar isso, MADISON, delegado da Virginia, e quem mais contribuiu, segundo RALPH GABRIEL, para dar forma à Constituição, anota, a propósito do princípio da separação dos poderes, acolhido implicitamente pela Constituição dos Estados Unidos, que: "O oráculo que sempre se consulta e cita a esse respeito é o celebrado Montesquieu. Se não foi ele o autor deste valioso preceito da ciência política, teve ao menos o mérito de expô-lo e recomendá-lo de modo mais eficaz à atenção da humanidade."

Evidentemente que a ideia do nascente constitucionalismo norte-americano, fincado no princípio da separação de poderes visava a instalar neste lado do Atlântico um governo democrático. Não nos esqueçamos, porém, que se tratava de uma democracia possível para os padrões culturais da época e que, hoje, muito provavelmente, não atenderia às exigências democráticas: (i) a uma, porque intentava construir uma nova aristocracia em substituição à ancestral inglesa; (ii) a duas porque, na origem dessa possibilidade, estava um regime que preservava o sistema de escravidão negra, coisas absolutamente incompatíveis com a ideia de isonomia substancial que orna o atual conceito democrático.

Anote-se, em outra vertente, que, enquanto os constituintes norte-americanos, com receio da monarquia absolutista, cunharam o presidencialismo, sobretudo como forma de responsabilizar o gestor da coisa pública, os constituintes franceses de 1791 optaram pela monarquia constitucional, que, afinal, foi abolida pela Convenção, em 1793.

Após esses eventos, já se tem como determinada a formação da concepção do Estado Constitucional. Isso não quer dizer que esse evolver tenha concluído seu ciclo. Ao contrário, esse caminhar é constante e se faz mediante ondas. Tem-se, por exemplo, o surto constitucional do entre guerras (Constituição da Alemanha e Constituição da Áustria) e o surto do pós-guerra (Alemanha, Itália, Japão). Nada, porém, é tão inusitado que permita contraditar a tese de que o Estado Moderno ganhou contornos definitivos a partir do século XVIII, com o primeiro ciclo de constituições escritas.

Sem embargo disso, e não fosse outro o objeto do nosso estudo, seriam cabíveis, aqui, alguns aprofundamentos sobre as diversas leituras que têm sido feitas sobre o conceito de Estado, até o atingimento do conceito de Estado Democrático de Direito, cuja compreensão será necessária para o perfeito entendimento do controle de constitucionalidade brasileiro. De qualquer sorte, impende ter em conta que, se a ideia originária de Estado de Direito não admite simplificações excessivas, outro tanto deve ser dito em relação a Estado Democrático de Direito.

A expressão “Estado de Direito” (Rechtsstaat), elucida ANNE-LAURE VALEMBOIS , foi criada por JOAHNAN WILHELM PLACIDUS, em 1798 e a teoria que lhe corresponde se desenvolveu no âmbito das preocupações filosóficas e políticas relativas à limitação do arbítrio dos governantes, por obra, sobretudo, dos juristas e filósofos alemães.

Não basta dizer que o Estado de Direito indica um estado submetido ao direito, como afirma criticamente ANNE-LAURE VALEMBOIS , até porque isso implica uma espécie de tautologia. Segundo SYLVIA CALMES, uma das propostas de definição mais interessantes seria devida a K. STERN, nestes termos: “O Estado de Direito significa o exercício do poder estatal sobre a de leis promulgadas constitucionalmente, com o fim de garantir a liberdade, a Justiça e a segurança jurídica. ” O próprio K. STERN, na reedição de sua obra (Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Band I, Grundbegriffe und Grundlagen des Staatsrechts, Strukturprinzipien der Verfassung,1984), houve por bem alterar os termos da definição: “O Estado de direito significa que o exercício do poder estatal não é admissível (zulässig) senão sobre a base da constituição e das leis promulgadas constitucionalmente quanto ao aspecto formal e material, com o fim de garantir a dignidade do Homem, a liberdade, a justiça e a segurança jurídica.”

Poder-se-ia asseverar, sem muitos questionamentos, que essa concepção, sobretudo na sua primeira versão, contemplaria um calendário liberal, uma concepção liberal de Estado. Aliás, as primeiras aproximações entre constituição e Estado foram arranjos do liberalismo. Somente num segundo momento, com o advento da ideia do Eestado-de-bem-estar, já no ciclo constitucional pós-segunda guerra mundial, é atingido o estado social, de promessas muitas vezes irrealizadas, até que, em momentos mais próximos, passou-se a buscar o estado democrático de direito.

Essa expressão foi e é objeto de dissenso acadêmico, havendo quem prefira a fórmula portuguesa: Estado de Direito Democrático. Pensamos que não há razões fecundas a justificar a desavença. Deveras, qualquer que seja a ordem dos vocábulos, o que se pretende figurar é que, para esse tipo de Estado, não basta a instituição estar vinculada a um regime de legalidade, mas sim que esse regime seja fruto de processos democráticos constitucionalmente previstos, no nosso caso, fruto da chamada democracia representativa.

O Estado democrático de direito culminaria com a densificação constitucional dos direitos fundamentais: civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Não basta, entretanto, proclamar esses direitos, como fruto da vontade política. É necessário, como adverte JORGE MIRANDA, estabelecer um quadro institucional em que essa vontade se forme em liberdade e em que cada pessoa tenha a segurança da previsibilidade do futuro... em que o poder político pertença ao povo e seja exercido de acordo com o princípio da maioria, mas subordinado, formal e materialmente à Constituição com a consequente fiscalização jurídica dos atos de poder .

Depois eu conto o resto...

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